Cabo Verde entre os PALOP menos penalizados

PorJorge Montezinho,12 abr 2025 9:32

Temos de agradecer aos falantes de português do outro lado do Atlântico (aos brasileiros) a brilhante palavra 'tarifaço' – uma mistura entre tarifa e tiraço – que está a atingir o mundo, país a país (nem os pinguins se safam). Os PALOP também não escaparam às tarifas recíprocas. Angola será taxada em 32%, Moçambique em 16%. Já a Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde vão ser taxados em 10%.

No início deste mês, o Presidente Donald Trump declarou o dia 2 como o “dia da libertação” dos EUA e anunciou um conjunto de tarifas (“recíprocas”) contra mais de 180 países que, segundo o Presidente, “libertariam” o país dos produtos estrangeiros e cuja data “ficaria recordada para sempre como o dia em que a indústria americana renasceu e o destino da América foi recuperado”.

Nem as ilhas Heard e McDonald ficaram de fora, dois dos lugares mais remotos da Terra, apenas acessíveis através de uma viagem de barco de duas semanas a partir de Perth, na Austrália e lar exclusivo de pinguins e focas – mas não tema, leitor, a resistência já está no terreno, seja através do hashtag #PenguinsAgainstTrump, ou na nova conta nas redes sociais @PenguinsAgainstTrump, na plataforma Threads, com a descrição: "Um grupo de pinguins que vive nas ilhas Heard e McDonald – Não sabemos porque estamos a ser taxados – Adoramos peixe e odiamos fascistas".

Mais a sério, as tarifas apresentadas são maiores do que se poderia esperar, o que constitui o maior choque imposto às economias mundiais desde o segundo pós-guerra, sobretudo, se tivermos em conta que o comércio internacional cresceu exponencialmente desde então e que se vive, hoje, uma situação de grande interdependência entre as economias.

“Dado o contexto conjuntural desta imposição de tarifas e a expectativa sobre os seus efeitos imediatos, olhemos para os chamados efeitos de curto prazo (‘efeitos estáticos’) e deixemos de lado os de longo prazo (‘efeitos dinâmicos’)”, diz ao Expresso das Ilhas o economista e investigador João Estêvão.

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“Os efeitos serão sentidos em Cabo Verde, sobretudo, de forma indirecta”

“Em termos de curto prazo”, continua o académico, “a aplicação de novas tarifas americanas aos produtos importados terá como consequência imediata o aumento dos preços dos produtos importados pelos EUA. A expectativa da administração norte-americana é que a subida de preços dos produtos importados torne mais atractiva a produção interna desses produtos, ou de produtos substitutivos, o que poderá incentivar o sistema produtivo interno e reduzir a dependência em relação aos produtos estrangeiros”.

“A este efeito esperado de ‘reindustrialização’ poderá juntar-se um aumento das receitas alfandegárias e, consequentemente, um atenuamento do elevado défice orçamental dos EUA”, sublinha o economista. “Alguns economistas, como o prémio Nobel Paul Krugman, consideram que é errada a ideia de que a imposição de tarifas pode ajudar a revitalizar a indústria transformadora norte-americana, dado que a economia norte-americana é, desde há muito tempo, fortemente dominada pelos serviços e que tal ‘retrocesso’ não é possível nas condições actuais da economia dos EUA e da economia mundial”, reforça João Estêvão.

“Um efeito de curto prazo, ainda, é a incerteza gerada pela imposição inicial das tarifas pelos EUA e suas eventuais consequências sobre retaliações tarifárias de outros países. A incerteza no mundo da economia gera instabilidade nos mercados financeiros, como já se sente nas principais praças financeiras, todas em queda. Mas a incerteza tem impactes significativos nas decisões de longo prazo, na medida em que reduz a propensão das empresas para investir, adiando ou cancelando muitos investimentos produtivos e tecnológicos, com efeitos penalizadores sobre a evolução da produtividade e sobre o crescimento económico e a criação de emprego”, refere o economista.

A imposição de tarifas reflecte, no contexto da economia mundial, o que se chama de “poder de mercado” de uma economia de grande dimensão, como a americana. Sendo um grande importador de muitos produtos mundiais, o exercício do seu “poder de mercado” através da imposição de tarifas traduz-se numa redução significativa da procura mundial desses produtos e, consequentemente, numa tendência para redução dos preços de exportação nos países exportadores.

“Mas”, avisa João Estêvão, “os EUA defrontam outras potências com elevado ‘poder de mercado’ (China, União Europeia) na economia mundial, o que levará, necessariamente, a uma reacção dessas potências. A resposta à elevação das tarifas que lhes são impostas poderá gerar um efeito em cadeia, de tal forma que fique em perigo o funcionamento normal da economia mundial e que se possa caminhar para uma recessão global. Além disso, uma tendência dessas potências mundiais poderá ser o desvio para outros países dos excedentes de exportação gerados pelas tarifas norte-americanas, o que poderá levar esses países a ensaiarem, também, o estabelecimento de tarifas dirigidas aos produtos desviados para os seus mercados”.

O regresso das pressões inflacionistas

Segundo especialistas, o “Dia da Libertação” destruiu os fundamentos sobre os quais o comércio internacional global e a própria imagem dos EUA no mundo assentam. Para os mesmos, a saraivada de taxas aduaneiras trumpianas vai arrefecer a economia e aumentar a inflação em todo o mundo, o que lhes faz temer uma recessão tanto nos EUA como a nível global.

“Na verdade”, explica o economista João Serra, “quando uma economia de grande dimensão, como a dos EUA, impõe tarifas alfandegárias significativas sobre bens importados, ocorre, de forma imediata, um aumento dos preços internos desses produtos, desencadeando pressões inflacionistas e criando efeitos recessivos abrangentes”.

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“Os EUA não são um dos principais parceiros comerciais de Cabo Verde”

“A partir da implementação das novas tarifas impostas pelo governo Trump, tem-se registado um conjunto de efeitos que transcendem as fronteiras dos EUA e atingem, de forma directa ou indirecta, várias economias abertas e interligadas”, refere o antigo governador do Banco de Cabo Verde.

O economista Jonuel Gonçalves lembra que “Paul Krugman considera que o choque tarifário de Donald Trump não visa exactamente alcançar objectivos económicos, mas sim um motivo político: fazer rastejar os países. Neste caso, obrigá-los a correr para Washington de chapéu na mão, pedindo negociações. Segundo a Casa Branca, no fim da semana passada, cerca de 50 já tinham feito esse pedido”, diz ao Expresso das Ilhas.

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“O choque tarifário tem um motivo político: fazer rastejar os países”

Entretanto, Jerome Powell, director geral do FED (Sistema de Reserva Federal, que funciona como Banco Central) já declarou que o " tarifaço" vai causar mais inflação e reduzir a taxa de crescimento.

“Os desequilíbrios na balança comercial norte-americana decorrem da competitividade de outras economias, com oferta de produtos nos EUA em condições qualidade-preço mais vantajosas para o consumidor que a produção local. Não é caso único, no mundo há dezenas de casos semelhantes”, sublinha o economista angolano.

“A reacção do mercado financeiro norte-americano deriva da percepção de que as tarifas aplicadas ao mundo vão cair sobre os consumidores USA, até porque, mesmo sendo a maior economia do mundo, não tem como substituir no curto prazo, produtos importados essenciais à própria indústria norte-americana, desde peças para carros ou máquinas e semicondutores”, garante Jonuel Gonçalves.

PALOP com taxação desigual

Os Governos de São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde já desvalorizaram o impacto da tarifa nas exportações para os EUA. “As tarifas não vão incidir sobre a remessa de imigrantes, seguramente. Isto é mais de relações comerciais, Cabo Verde não tem relações comerciais intensas de importação e exportação com os Estados Unidos”, afirmou a semana passada o Primeiro-ministro Ulisses Correia e Silva.

“As medidas protecionistas anunciadas pelo presidente Trump têm como objectivo, primordialmente, dificultar a entrada de produtos estrangeiros nos EUA. Ora, os EUA não são um dos principais parceiros comerciais de Cabo Verde, uma vez que o comércio exterior deste país, tanto em importações como em exportações, está fortemente orientado para a Europa”, começa por referir João Serra.

“Apesar disso”, continua o antigo governador do BCV, “os reflexos dessas medidas afetam indiretamente Cabo Verde, por este ser um dos países com os quais a Europa mantém relações comerciais intensas. Assim, quando o protecionismo afeta a atividade industrial e a prestação de serviços, provocando uma desaceleração do crescimento económico ou alterações nas cadeias de abastecimento no continente europeu, os efeitos repercutem na infraestrutura comercial e nos custos dos produtos que chegam a Cabo Verde”.

“O impacto na economia cabo-verdiana passa, sobretudo, pelo aumento dos preços dos bens importados. Uma vez que a maior parte dos produtos consumidos e utilizados para investimento provém da Europa, verifica-se uma tendência para o encarecimento dos insumos e dos bens de consumo. Este aumento de custos deve ser atribuído à redução do volume global de comércio, à pressão inflacionista resultante de um ‘efeito bola de neve’ que se verifica quando produtores europeus veem reduzida a procura dos EUA e, consequentemente, ajustam os seus preços para tentar recuperar as margens de lucro, repassando parte desses custos para os mercados de exportação”, diz ainda João Serra.

“Em termos práticos”, conclui o economista “se o euro se depreciar face ao dólar em função das medidas protecionistas e dos reajustes nos fluxos comerciais globais, Cabo Verde terá de pagar mais escudos para adquirir a mesma quantidade de bens importados em dólares, agravando o défice da balança comercial. Além disso, para Cabo Verde, a depreciação do euro face ao dólar aumenta o custo do reembolso da dívida pública externa, para além de impactar o contravalor, em moeda nacional, do próprio stock de dívida externa contraída em dólares”.

Os impactos indirectos

Até 2019, as exportações cabo-verdianas para o mercado norte-americano representaram, em média, cerca de 1.5% do total das exportações cabo-verdianas. Entre 2020 e 2023, essa percentagem subiu par cerca de 5,6%, mas voltou a cair em 2024, ano em que representaram cerca de 3,7% do total.

“Os principais efeitos da nova política tarifária dos EUA serão intermediados pela relação económica de Cabo Verde coma União Europeia e com o resto da economia mundial”, diz João Estêvão. “Os principais efeitos resultarão da situação que for gerada, principalmente, na Europa e poderão ter incidência em diferentes níveis, influenciadas pela eventual recessão económica que poderá atingir os países europeus: sobre as exportações de bens e serviços para a Europa (incluindo as receitas de turismo); sobre o investimento directo europeu em Cabo Verde; sobre as remessas de emigrantes, estas pela situação económica e social que deverá atingir as comunidades cabo-verdianas emigradas; e pela evolução dos preços dos produtos importados”, sublinha o economista.

“O risco maior”, diz Jonuel Gonçalves “é uma recessão com poderosos efeitos de contágio à escala global. É aqui que reside o perigo maior para países como os PALOP, os africanos em geral e até os latino-americanos”.

“No caso dos três PALOP de menor dimensão, os 10% correspondem à vontade trumpista de exibir força de forma quase indiscriminada – quase, porque isenta a Rússia, com a qual quer estabelecer um pacto sobre hegemonia mundial”, refere o economista angolano. “Se o Pentágono conseguir convencer a dupla Trump-Vance da importância estratégica de África, esses 10% serão abolidos a países africanos que façam algum gesto de negociação, ou seja, reconhecimento do poder da actual Casa Branca”.

“Para países como Angola, as tarifas incidem sobre valores globalmente modestos, embora muito mais importantes que do trio Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé. Inclui petróleo e diamantes, para os quais, numa conjuntura normal, é fácil encontrar novos compradores, até por se tratar de volumes comparativamente baixos”.

“Porém, há aqui um risco sério para todos os PALOP. Se o quadro mundial que sair desta vaga tarifária agravar a guerra económica ou, pior, causar recessão, as trocas globais vão diminuir e encontrar novos destinos será mais difícil, salvo para países com alta e variada capacidade de oferta, a preços competitivos”, conclui Jonuel Gonçalves.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1219 de 9 de Abril de 2025.

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Autoria:Jorge Montezinho,12 abr 2025 9:32

Editado porAndre Amaral  em  12 abr 2025 18:20

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