O ano em que ‘descobrimos’ a ciência… e desconfiámos dela (sem motivos para isso)

PorNuno Andrade Ferreira,3 jan 2021 9:18

2020 foi o ‘grande ano da ciência’, mas muitos estão numa relação difícil com ela.

A pandemia, claro. Perante o desconhecido, procurámos respostas, esperando-as de quem as podia dar. Os cientistas empenharam-se em compreender, o mais rapidamente possível, aquilo que se estava a passar. A 10 de Janeiro, investigadores do Instituto de Virologia de Wuhan, dirigidos por Yong-Zhen Zhang, publicaram a primeira sequência genómica do vírus que viria a ser chamado de SARS-CoV-2. Estava resolvido o primeiro quebra-cabeças. Seguir-se-iam outros.

De onde veio? Como é que se transmite? É muito letal? Como é que se previne e trata?

Algumas destas questões foram sendo respondidas ao longo dos meses que se seguiram. Outras permanecem em aberto. Literalmente sentados em casa – para onde fomos mandados – assistimos ao debate conhecimento-convicções e participámos nele, de smartphone em punho. Pela primeira vez, vimos a ciência a acontecer em directo, com as suas contradições e poucas certezas, a sua dúvida permanente e a inquietação constante. Vimos e não compreendemos.

“O maior acontecimento na área da ciência é a constatação da fragilidade dos alicerces da ciência nas nossas sociedades. A forma como os governos têm lidado com a pandemia mostra o profundo enraizamento duma atitude supersticiosa em relação à ciência. O conhecimento científico é essencialmente usado para dar conforto a convicções, e isto inclui legitimar decisões políticas, e não para avaliar melhor as decisões que precisam de ser tomadas”, comenta o sociólogo e professor da Universidade de Basileia, na Suíça, Elísio Macamo.

Conscientes da dimensão do problema, pedimos uma solução: “Vacina, já”. Dos laboratórios, em dez meses, saíram as vacinas, para logo muitos se apressarem a recebê-las como “perigosas”, não obstante as evidências em sentido contrário, e “ineficazes”, apesar de todos os dados sugerirem o oposto.

Este sentimento anti-vacina, que não é novo, integra uma narrativa mais vasta, negacionista e conspiracionista, de quem continua a achar que o que está em causa é uma “gripezinha” e uma estratégia mundial de controlo populacional.

“São pessoas que têm uma visão que, infelizmente, não vai de encontro à realidade. Continuam a ser bastante reticentes em relação à utilização de máscaras. Continuam a colocar em causa a fiabilidade dos testes PCR. O problema é que a mensagem de desvalorização da covid-19 leva a que as pessoas não tomem os cuidados devidos, leva a que seja mais difícil controlar a pandemia e seja mais difícil o sistema de saúde dar resposta a outras doenças”, realça o médico João Júlio Cerqueira, autor do projecto de divulgação científica, Scimed.

Em curso desde há um par de semanas, a maior campanha de vacinação da história da Humanidade prolongar-se-á por todo o ano de 2021 e mais além. Até esta terça-feira, tinham sido administradas 4,6 milhões de doses. O número cresce a cada dia, mas está longe do valor necessário – na casa dos milhares de milhões – para se alcançar o ponto de viragem na emergência global de saúde pública

Três projectos concentram atenção particular. O consórcio AstraZeneca/Oxford (com aprovação pelas entidades reguladoras prevista para as próximas semanas) lidera as vendas, com mais de três mil milhões de doses já encomendadas – trata-se de uma solução barata e tecnicamente pouco exigente, ao nível da conservação e transporte. Por seu lado, o consórcio Pfizer/BioNTech e a Moderna, com vacinas em distribuição, chamaram a atenção pela tecnologia usada, capaz de abrir portas para ganhos incalculáveis num futuro não muito distante.

“Há cerca de vinte anos que as vacinas de mRNA têm sido estudadas devido ao seu enorme potencial para o tratamento do cancro e para a profilaxia das doenças infecciosas. Contudo, só em 2020 passamos a ter as primeiras vacinas de mRNA. Para além do sucesso na profilaxia da covid-19, este ano, as vacinas também mostraram resultados extremamente positivos no tratamento do cancro”, adianta Jailson Brito Querido, investigador da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

Chegamos a Dezembro e olhamos para Janeiro com a esperança de que seja o início de um novo ciclo. O que já sabemos, as ‘armas’ que temos – vacinas, distanciamento, máscaras, lavagem de mãos, etiqueta respiratória – e a expectativa de que novas soluções sairão em breve dos laboratórios – como retrovirais eficazes – dão-nos o alento necessário para enfrentar um 2021 desafiante.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 996 de 30 de Dezembro de 2020.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,3 jan 2021 9:18

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  3 out 2021 23:21

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