Maioria dos americanos apoia cortes a ajuda externa

PorJorge Montezinho,1 mar 2025 8:07

A campanha de intoxicação da opinião pública está a dar resultado, pesquisa revela que mais de 60% dos norte-americanos afirma que o financiamento para ajuda humanitária é “desperdiçado em corrupção ou taxas administrativas”. Mas os Estados Unidos não são caso único, em Portugal, um dos principais parceiros de Cabo Verde no apoio público ao desenvolvimento, um estudo mostra que apesar de considerarem que ajudar os países mais pobres é importante, a maioria dos portugueses quer alguma coisa em troca.

“Não devemos menosprezar o poder destrutivo da estupidez”, escreve Ryan Cooper, na The American Prospect, no artigo Musk e Trump estão a provocar o colapso imperial mais idiota da história. “A USAID”, sublinha o editor-chefe da revista de política pública “a maior distribuidora de ajuda humanitária do mundo, fez um trabalho tremendo — até agora. A agência foi quase desmantelada, desencadeando estragos em todo o globo. O HIV e a tuberculose resistente a medicamentos estão agora a espalhar-se sem controlo em muitos países que dependem da medicação da USAID, provando que os Estados Unidos não são confiáveis e ameaçando surtos dessas doenças nos próprios Estados Unidos”.

Opinião que não é partilhada pela maioria dos americanos. Uma pesquisa do Financial Times revela que mais de 60% dos americanos acredita que a ajuda externa dos EUA é desperdiçada “em corrupção ou taxas administrativas”.

A pesquisa destaca a insatisfação pública generalizada com a maneira como a ajuda externa é alocada e administrada. A USAID, em particular, tem sido criticada por financiar programas internacionais caros com resultados questionáveis.

O futuro da agência é incerto depois de Elon Musk, chefe do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), anunciar, a 3 de Fevereiro, que juntamente com o presidente Donald Trump iam reformular a estrutura da agência.

Trump assinou uma ordem executiva para parar o financiamento para a ajuda externa assim que tomou posse. A medida provocou a reacção de muitos democratas, apesar de alguns terem expressado apoio à redução dos gastos com ajuda externa.

Elon Musk, um crítico da USAID no X (antigo Twitter), acusou a agência de “financiar a agenda DEI [diversidade, equidade e inclusão] no exterior enquanto a América vai à falência em casa”.

A USAID alocou mais de 40 mil milhões de dólares em ajuda externa durante o ano fiscal de 2023, de acordo com o Congresso.

A hipotética má gestão e a falta de transparência da agência geraram pedidos de reforma, com muitos americanos a apoiar o esforço do governo para eliminar o desperdício e garantir que o dinheiro dos contribuintes é usado de forma eficaz.

Mas há um problema, Elon Musk está a enganar os americanos sobre os gastos do governo, como já explicou a CNN. O próprio Musk quando questionado sobre declarações imprecisas admitiu que “algumas das coisas que eu digo estarão incorretas e devem ser corrigidas”. Mas “algumas” é um eufemismo. O bilionário fez ou ampliou inúmeras afirmações falsas ou enganadoras, principalmente no X, plataforma da qual é dono.

Por exemplo, enquanto o governo trabalhava para desmantelar a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), Musk partilhou um post de um utilizador do X que alegava que “a USAID gastou dinheiro dos impostos para financiar viagens de celebridades à Ucrânia, tudo para aumentar a popularidade de Zelensky entre os americanos”. O post incluía um vídeo, feito para parecer que era do canal de entretenimento E! News, que listava grandes quantias que várias celebridades supostamente receberam para visitar a Ucrânia. O vídeo era uma invenção.

Ou o mais famoso das logros. Quando a secretária de imprensa Karoline Leavitt anunciou, na primeira conferência na Casa Branca, que o governo Trump detectou e frustrou um gasto planeado de 50 milhões de dólares “para financiar preservativos em Gaza”, atribuiu a suposta descoberta, em parte, à equipe DOGE de Musk. Musk promoveu de seguida as palavras de Leavitt no X, escrevendo que era a “ponta do iceberg” e que “muito desse dinheiro acabou nos bolsos [do] Hamas, não realmente em preservativos”. Mas toda esta alegação era um puro disparate e a Casa Branca nunca teve qualquer prova do que afirmou.

Quando questionado, Musk assumiu que algumas coisas que disse estavam erradas, mas, na mesma altura, criticou os EUA por supostamente enviarem 50 milhões de dólares em preservativos para Moçambique — o que também nunca aconteceu.

O mundo em suspenso

Mentiras à parte, a verdade é que os cortes na USAID estão a provocar problemas bem reais. Escolas. Programas de vacinação. Medicamentos e equipamentos médicos. Organizações de comunicação social. Programas de alfabetização. Todos enfrentam obstáculos depois do governo Trump decidir esvaziar a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, criada pelo presidente John F. Kennedy, em 1961, e que actualmente fornecia assistência humanitária e de desenvolvimento em mais de 100 países.

Por exemplo, na África do Sul, país com o maior número de pessoas com HIV a nível mundial — mais de 8 milhões, segundo algumas estimativas — mas que com o apoio da USAID ao Plano de Emergência do Presidente para o Alívio da SIDA, ou PEPFAR, fez avanços significativos na prevenção e tratamento nos últimos anos. Os efeitos dos cortes da USAID já são sentidos na prática — e entre os mais vulneráveis.

“Embora o governo sul-africano pague a maior parte dos medicamentos antirretrovirais do país, recebe ajuda significativa de organizações sem fins lucrativos, que são financiadas pelo governo dos EUA, para fornecer profissionais de saúde às clínicas do sector público”, disse à NPR Mia Malan, editora do site de jornalismo de saúde Bekisisa. “Não adianta ter todos esses comprimidos se não conseguimos levá-los às pessoas que precisam deles. E para isso precisamos de profissionais de saúde”, acrescentou.

Embora a África do Sul seja um dos países mais ricos do continente e esteja a analisar um plano de contingência para preencher a lacuna, nações mais pobres como Moçambique e Malawi dependem quase inteiramente do PEPFAR — e perdê-lo pode ser catastrófico. E este é um cenário que se repete na Ásia e na América Latina, zonas do mundo onde a USAID está(va) também presente.

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A Europa a radicalizar-se

O mundo que precisa de ajuda olha à volta e começa a não saber de onde poderá conseguir o auxílio. Até porque parceiros tradicionais, como a Europa, começam também a ser corroídos pelo vírus do nacionalismo anacrónico e isolacionista.

O partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) foi o segundo mais votado nas eleições legislativas de domingo e vai liderar a oposição num dos maiores países da União Europeia (UE). Em Itália, Giorgia Meloni, cujo partido pós-fascista Fratelli d’Italia obteve uma vitória histórica nas eleições gerais de 2022, lidera o Governo desde Outubro desse ano em coligação com outro partido de extrema-direita, a Liga de Matteo Salvini, e o partido conservador Forza Italia.

Na Hungria, o ultraconservador Viktor Orbán, primeiro-ministro desde 2010, foi reeleito em Abril de 2022 para um quarto mandato consecutivo, na sequência da vitória esmagadora do seu partido, o Fidesz, nas eleições legislativas.

Nos Países Baixos, o líder de extrema-direita Geert Wilders, cujo Partido da Liberdade (PVV) ficou em primeiro lugar nas eleições de Novembro de 2023, assinou um acordo de coligação com três partidos de direita em Maio de 2024.

Na Eslováquia, o primeiro-ministro nacionalista Robert Fico (partido Smer-SD) regressou ao poder em Outubro de 2023. Fico, um dos poucos dirigentes da UE próximos da Rússia, tal como Orbán, aliou-se ao partido centrista Hlas-SD e ao partido de extrema-direita SNS.

Na Finlândia, o Partido dos Finlandeses, de extrema-direita, ficou em segundo lugar nas legislativas de Abril de 2023 e é membro da coligação governamental formada pelo conservador Petteri Orpo, cuja Coligação Nacional, de centro-direita, venceu as eleições.

Na Suécia, o partido de extrema-direita Democratas da Suécia (SD), que ficou em segundo lugar nas eleições gerais de 2022, não tem representantes no Governo, mas está estreitamente envolvido nas decisões do executivo.

Noutros países, a extrema-direita esteve perto do poder, mas ainda não o alcançou. Depois da vitória histórica nas eleições de Setembro de 2024, o Partido da Liberdade da Áustria (FPO), fundado por antigos nazis e agora liderado por Herbert Kickl, iniciou em Janeiro negociações para formar governo com o conservador OVP. As negociações fracassaram, sobretudo porque a extrema-direita queria virar o país numa direção eurocética, mas o OVP e o FPO já uniram forças para governar cinco das nove regiões da Áustria.

Em França, uma Frente Republicana formada para as eleições legislativas do verão de 2024 impediu o Rassemblement National (RN) de chegar ao poder. Mas o partido de extrema-direita - cuja líder Marine Le Pen foi derrotada nas duas últimas eleições presidenciais - é actualmente o maior partido num parlamento suspenso.

Na Bélgica, durante a campanha para as eleições legislativas de Junho de 2024, as sondagens previam a vitória do partido de extrema-direita Vlaams Belang (VB) na Flandres, a região mais populosa. O N-VA, o partido do actual primeiro-ministro, Bart De Wever, acabou por manter a liderança. Mas o VB aumentou os resultados tanto no parlamento flamengo (31 lugares em 124) como a nível federal, em cuja assembleia constitui o maior grupo da oposição, com 20 deputados.

Nas eleições gerais de Julho de 2024 no Reino Unido, o partido anti-imigração Reform UK, de Nigel Farage, obteve cerca de 14% dos votos e entrou no Parlamento com cinco lugares.

E em Portugal, o partido de extrema-direita Chega reforçou o estatuto de terceira força política do país, passando de 12 para 50 deputados, com um resultado de 18,1% nas eleições legislativas de Março de 2024.

Portugueses querem auxílio com ganhos

Exactamente em Portugal – com quem Cabo Verde tem um Programa Estratégico de Cooperação – um estudo, revelado em primeira mão pelo jornal Público, mostra que os portugueses consideram que ajudar os países mais pobres é importante, mas a maioria quer alguma coisa em troca.

Comparando com um estudo similar em 2006, se antes só uma percentagem mínima (2,1%) considerava que se gastava demasiado com a cooperação, esse valor subiu para 32,4% agora. E se há quase 17 anos, metade dos inquiridos (50,3%) era da opinião de que Portugal não investia os recursos suficientes nessa área, hoje essa opinião está reservada a uma minoria (7,3%).

Apesar do unanimismo em relação ao papel da cooperação internacional para o desenvolvimento (CID), o estudo não deixa de reflectir que o mundo mais optimista de 2006 deu lugar às nuvens de pessimismo de 2025 em relação ao estado da democracia e das relações internacionais. Com uma guerra na Europa, um conflito no Médio Oriente, a crise do multilateralismo, a disseminação do populismo e a tendência crescente para nacionalismos, não admira que a percentagem de pessoas que olham para a cooperação de forma altruísta tenha diminuído substancialmente até chegar a menos de metade.

Se em 2006, 74% estava de acordo que a cooperação para o desenvolvimento devia ser feita sem contrapartidas, hoje só 45% acredita que se deve dar sem pedir nada em troca. Uma opinião expressa ainda antes de Donald Trump chegar novamente à presidência dos Estados Unidos e começar a cortar a eito na cooperação internacional e a olhar para as relações internacionais apenas como um negócio em que os grandes ganham e os pequenos ou se subjugam ou perdem.

Portugal e Cabo Verde

O Programa Estratégico de Cooperação (PEC) para o período 2022-2026, assinado entre Portugal e Cabo Verde em Março de 2022, define seis grandes áreas de intervenção na cooperação entre os dois países: (i) Educação, Ciência, Desporto e Cultura; (ii) Saúde, Assuntos Sociais e Trabalho; (iii) Justiça, Segurança e Defesa; (iv) Ambiente, Energia, Agricultura e Mar; (v) Finanças Públicas, Economia, Digital e Infraestruturas; (vi) Áreas Transversais.

Este programa representa uma continuidade da cooperação nos domínios sectoriais prioritários, ajudando a promover o desenvolvimento de Cabo Verde e apoiando, também, na melhoria das condições de vida da população do país. O PEC tem um envelope financeiro indicativo de 95 milhões de euros para a execução dos programas, projectos e acções de cooperação.

Dados da ajuda pública ao desenvolvimento (APD) publicados pelo Instituto Camões mostram que, em 2023 – últimos números disponíveis – Cabo Verde foi o quarto país que mais APD bruto recebeu (16 milhões 547 mil euros), atrás de Moçambique, Angola e São Tomé e Príncipe, de um envelope total de mais de 177 milhões de euros para os PALOP e Timor-Leste.

Cabo Verde tem sido desde 2010 um dos principais beneficiários da APD portuguesa. Parte significativa dos montantes corresponde à utilização de linhas de crédito/empréstimos concessionais para construção de equipamentos e infraestruturas e investimentos nos sectores da habitação social e das energias renováveis. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1213 de 26 de Fevereiro de 2025.

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Autoria:Jorge Montezinho,1 mar 2025 8:07

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  2 mar 2025 22:20

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