A concessão vai ser gerida pela nova empresa Cabo Verde Inter-Ilhas na qual a Transinsular vai ter 51% do capital social e nove armadores nacionais os restantes 49%. No quadro do acordo assinado, da actual frota o que estiver apto será integrado na nova empresa e os restantes navios serão vendidos ou abatidos. Quanto aos trabalhadores acontecerá algo análogo, sendo indemnizados com possível contribuição do Estado aqueles que não se ajustarem à nova oferta de trabalho. Com a mudança deixa-se de ter um sector marítimo tradicionalmente dinamizado por vários operadores privados para se ter essencialmente um grande operador cobrindo todo o arquipélago. No processo, alterações no que tem sido a economia do sistema, a sua localização, os seus agentes e fornecedores e as suas exigências em mão-de-obra vão eventualmente acabar por se verificar. Espera-se que já se tenha previsto o impacto delas e planeadas as vias para as amortecer.
Há décadas que os sucessivos governos andam à busca de soluções de transportes marítimos que permitissem ao país minimizar a sua condição arquipelágica e unificar o seu mercado interno. Soluções estatizantes, mistas ou só com operadores privados não resultaram em fornecer o serviço desejado ao nível de segurança, previsibilidade e frequência. A única rota, a de S. Vicente/Santo Antão, que sempre se conseguiu manter por si própria é a excepção que revela o que falta às outras. Não há carga nem número de passageiros suficientes para viabilizar a circulação entre todas as ilhas na frequência desejada. Vários factores contribuem para que seja assim, designadamente o facto de o país ter uma pequena população, o mar entre ilhas ter caracter oceânico e não encorajar viagens, a estrutura produtiva ser diminuta e os bens transaccionáveis perecíveis e em pequena quantidade. Para colmatar as insuficiências não faltaram intervenções do Estado seja de forma directa com embarcações, seja de forma indirecta com subsídios dados a privados para cobrir rotas com as de Fogo/Brava, Santiago/Maio e Santiago/Boa Vista. Segundo dados de um estudo do Banco Mundial, os subsídios chegaram a atingir valores de cerca de cem mil contos em 2010, não incluindo o subsídio concedido à Fast Ferry.
A verdade é que toda esta intervenção do Estado e a iniciativa e perseverança dos operadores privados têm-se mostrado incapaz de manter um serviço sustentável de transportes marítimos. A chamada à realidade aconteceu de forma dolorosa na sequência de desastres que envolveram encalhes sucessivos de navios, desaparecimentos inexplicáveis e afundamentos que culminaram na morte de passageiros e tripulantes resultantes da perda do navio Vicente. Era evidente que o sector dificilmente conseguia suportar-se respeitando o exigido pelos regulamentos em termos físicos, de recursos humanos e de segurança. Não ajudava em nada que os armadores além de se depararem com uma economia sem grande dinâmica de crescimento ainda tinham de lidar com ineficiências nos portos e taxas portuárias excessivas. Apesar das intenções manifestadas em unificar o mercado, as medidas políticas governamentais dirigidas ao sector não tinham a coerência nem se articulavam de forma a garantir a sua sustentabilidade e muito menos o investimento na sua renovação e modernização.
Foram então opções governamentais a vários níveis que na prática impediram que uma actividade económica bastante enraizada na história e uma clara vocação do país não pudesse ser potenciada e transformada numa fonte de riqueza nacional. A essa falha junta-se o subaproveitamento dos recursos da pesca para relembrar o quanto se perdeu na aposta num modelo de desenvolvimento que reforçou a dependência e o virar para dentro. Também o quanto se perdeu em não incentivar a iniciativa privada e em não abrir o país para investimento traduzido em capitais, know-how e mercados que lhe permitisse ultrapassar os constrangimentos de falta de escala, de escassez de recursos naturais e de distância dos grandes mercados. O resultado é mesmo quando chegou finalmente o turismo, movimentando anualmente centenas de milhares de pessoas, a estrutura económica do país nos vários sectores não tinha como aproveitar devidamente o que essa procura massiva de produtos e serviços podia proporcionar. Não havia estrutura produtiva adequada, nem canais de distribuição, standards de qualidade, nem transportes adequados para a servir com fiabilidade e de forma competitiva.
Agora o governo apresenta uma solução compreensiva para a questão dos transportes marítimos na espectativa que o resto irá fazer a sua parte na engrenagem que faz mover a economia. A solução encontrada tem custos e não despicientes para quem estava no sector. A questão é saber se de facto com os transportes resolvidos irá verificar-se um aumento significativo da produção de bens dirigidos ao global do mercado interno e ao mercado do turismo que justifique esses custos actuais e também os futuros se se tiver de continuar os subsídios por falta de suficiente carga e passageiros. O que aconteceu no sector dos transportes marítimos está-se a verificar noutros ou futuramente vai se fazer sentir em mais outros. É o que dá insistir em políticas que permitem a alguns a extracção de valor a seu favor, que facilitam a reprodução de um ambiente destrutivo de valor e não incentivam na economia a criação de valor. Todos ficam mais pobres. E soluções tardias, por si sós, podem não trazer a salvação esperada.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 899 de 20 de Fevereiro de 2019.