Conforme vem salientado na literatura[1] cada domínio de atuação da humanidade tem as suas descobertas fundamentais. Na área da mecânica foi a roda; no domínio das ciências foi o fogo; em política foi o voto; e na economia a invenção do dinheiro tem sido o que revolucionou as possibilidades de intercâmbio entre pessoas e entre estados.
Neste último caso, através de empréstimos internacionais os estados têm a possibilidade de mobilizar recursos produzidos em outros países no intuito de alavancar o seu próprio crescimento económico, o que hoje em dia vem sendo facilitado pelas baixas taxas de juros praticadas no mercado financeiro internacional.
Porém, na sequência do crescimento significativo da dívida pública em África subsaariana desde os últimos oito anos, há muitos observadores que receiam que esteja a avizinhar-se uma nova crise da dívida, uma vez que a trajetória de criação de riqueza e de empregos não tem sido a par da trajetória do endividamento.
Isso coloca de forma premente a questão da sinergia entre a dívida pública e o processo de crescimento económico.
O novo perfil da dívida africana
Depois das iniciativas internacionais HIPC (Heavily indebted poor countries – Países pobres altamente endividados) e do MDRI (Multilateral debt relief initiative – Iniciativa de redução das dívidas multilaterais) que em 1996 e 2005 respetivamente levaram ao perdão da dívida para muitos países que se encontravam numa situação insustentável - a maioria dos quais africanos - estamos novamente a assistir a uma aceleração do endividamento, mas com caraterísticas diferentes.
Com efeito, a dívida mediana em África subsariana em proporção do PIB passou de 31% em 2012 a 53% em 2017[2]. Essas dívidas passarão a ser: (i) de cariz mais comercial, ou seja, a taxas de juro não concessionais; (ii) com maior proporção de dívida externa em relação à doméstica, se bem que a dívida doméstica tenha também crescido; (iii) muitas vezes com garantias ligadas a recursos naturais tais o petróleo; e (iv) com uma panóplia de credores além dos tradicionais bancos multilaterais, do FMI e dos membros do Clube de Paris.
De acordo com uma avaliação recente do FMI[3] sete países africanos já se encontram em situação de sobre-endividamento (Eritreia, Gâmbia, Moçambique, República do Congo, São Tomé e Príncipe, Sudão do Sul, Zimbabué), enquanto nove outros se encontram em alto risco de sobre-endividamento (Burundi, Cabo Verde, Camarões, República Centro-Africana, Chade, Etiópia, Gana, Serra Leoa e Zâmbia).
Em certos casos, a diversificação das fontes de empréstimo se tem traduzido por menos espaço de negociação dos termos da dívida, e também por menos transparência no que diz respeito a aplicação efetiva das verbas.
Enfim, um aspeto saliente do novo perfil da dívida africana é o desalinhamento entre o prazo de reembolso dos empréstimos e o horizonte económico da aplicação das verbas. Em outras palavras, muitos países têm emprestado a curto prazo para aplicação em despesas que, por natureza, só gerarão rendimento a longo prazo, o que contribui a agudizar a questão do serviço da dívida.
Os possíveis efeitos negativos da dívida pública crescente
O corolário do crescimento e do novo perfil da dívida africana é que os estados têm de consagrar uma fatia das suas receitas cada vez maior ao pagamento de juros. Os dados do Banco Mundial[4] apontam, por exemplo, que entre 2010 e 2017 o peso dos juros anuais em percentagem às receitas do estado passaram de 4,3% a 16,5% para Angola; de 4,7% a 8% para Cabo Verde; e de 3% a 8.3% para Moçambique. Em termos concretos isso significa, obviamente, menos recursos disponíveis para o investimento público em setores capazes de fomentar a transformação da economia em prol de maior produtividade empresarial, acrescentada competitividade enquanto destino de investimento ao nível global e mais ampla diversificação das exportações. Isso adicionando-se a limitação de meios para o financiamento dos programas de cariz social, educação ou saúde, e para dar resposta a situações de emergência dentro do território nacional.
Por outro lado, o crescente volume da dívida estatal tem o efeito do “crowding-out”, ou seja, da marginalização, do investimento privado uma vez que o estado estará a competir com os privados no mercado financeiro interno principalmente. Este cenário pode ter como consequência não só a estagnação dos meios produtivos das empresas nacionais, e, portanto, a limitação do seu crescimento e da sua contribuição na criação de empregos, mas também a fragilização sistémica do tecido financeiro nacional por via da sobre-exposição dos bancos comerciais à dívida dos governos centrais.
Da necessidade de zelar pela produtividade da dívida
As finanças constituem uma matéria prima para fomentar o crescimento, seja duma empresa como da economia nacional. Logo, não se pretende eliminar o recurso a dívidas, mas sim em limita-las em proporções sustentáveis em relação ao orçamento e receitas do estado.
A redução do peso do serviço da dívida passa por vários eixos, incluindo sobremaneira: (i) um aumento das receitas endógenas do estado, por via dum alargamento da base tributária e de maior eficácia e eficiência na arrecadação de receitas; e, (ii) uma maior produtividade da dívida.
Uma dívida será considerada produtiva se a aplicação das verbas por ela disponibilizadas garantir a geração de rendimentos superiores aos juros que serão cobrados e, em devido tempo, o reembolso do principal.
Se a avaliação da produtividade dum empréstimo estatal é bem mais complexa do que a duma empresa privada, o conceito não deixa de ser relevante e útil para ama aplicação criteriosa de recursos financeiro limitados.
A título de exemplo, empreendimentos de fomento de unidades sanitárias para o turismo medical, de logística de transporte ou de sistemas de irrigação podem ser objetos de análise técnica e financeira que avaliarão de forma clara e balizada a produtividade da respetiva dívida.
No caso geral de financiamento de infraestruturas pelo erário público, o que em África tem sido o maior driver (fator) do crescimento da dívida pública, a produtividade efetiva dos empréstimos será altamente condicionada pelo rigor da preparação dos projetos, dos processos de contratação pública, e da fiscalização técnica & financeira durante a fase de implementação.
Havendo estes pressupostos, será possível alcançar uma maior produtividade da dívida pública, abrindo caminho para a ampliação das receitas do estado e maior crescimento.
*o autor escreve de acordo com as regras do AO90
[1]Sir Geoffrey Crowther (1907-1972). Cit. in Ciaran Walsh, Key management ratios, 2003.
[2]Coulibaly, B., Gandhi, D., & Senbet, L. (2019, Abril). Is sub-Saharan Africa facing another systemic sovereign debt crisis? Brookings - Africa Growth Initiative.
[3]Fundo Monetário Internacional. (2019, Dezembro 2). Sustainable development & debt - Finding the right balance.
[4]Banco Mundial (2020). Indicadores globais de desenvolvimento: Finanças dos governos centrais (http://wdi.worldbank.org/table/4.12#)
Joseph Martial Ribeiro é cabo-verdiano, residente em Luanda, representante do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), Ph.D. em hidrologia (Ecole Polytechnique de Montreal, Canada, 1994); MBA (University of Cumbria, Reino Unido, 2017); Diplomado em ciências políticas (Universidade de Londres, Reino Unido, 2014); e Engenheiro Civil (Ecole Polytechnique de Thiès, Senegal, 1989). É autor de três livros em Gestão de projectos e de vários artigo de natureza científica no domínio da hidrologia). O artigo reflecte apenas as opiniões pessoais do autor. |