O crescimento de 5,5% do PIB sem aparente efeito nos níveis de desemprego que, de acordo com o INE, permaneceram de 2017 para 2018 em 12,2% bem podia ser um dos tais momentos para reavaliações colectivas das políticas públicas. Infelizmente, como já tinha acontecido com a seca de 2017 não foi desta que a classe política se muniu da serenidade necessária para analisar as razões por detrás do aparente desfasamento entre crescimento e emprego e das vulnerabilidades que persistem no país, em particular no mundo rural. Pelo contrário, foi pretexto para mais um “round” de picardia política que nada acrescentou à preocupação geral sobre como criar empregos sustentáveis e com qualidade. A verdade é que, apesar dos tropeções na realidade que de tempos em tempos acontecem, é grande a tentação para se continuar no ilusionismo das promessas várias vezes repetidas e dos milhões que vêm de fora para resolver os problemas. O jogo do poder não deixa que a classe política desista do discurso populista e demagógico. A sociedade civil não mostra autonomia, vontade ou capacidade para forçar a saída deste paradigma de existência.
Assim, por exemplo, face à seca de 2017 que continuou em 2018 e deixou bem claras as vulnerabilidades do mundo rural pergunta-se o que é que mudou. Não parece que se tenha feito um balanço das políticas em direcção ao sector da agricultura e pecuária que há pouco se centravam nas barragens, na mobilização de água e no agronegócio. A seca e a pobreza revelada da população rural pôs tudo a nu mas há quem ainda insista que eram políticas correctas e que os investimentos realizados justificavam-se. Os resultados negativos indisfarçáveis em situação de crise não contribuem para alterar minimamente essa crença. Tão pouco dão sinal de mudar no essencial a abordagem da situação no mundo rural. Paradoxalmente continua-se a acreditar que é possível agir para ao mesmo tempo fixar as populações, criar empregos e aumentar a produtividade da economia rural. Agora quer-se mobilizar água recorrendo à dessalinização e focar estudos e projectos na constituição de cadeias de valor e no acesso aos mercados das ilhas turísticas. O puzzle a construir para que tudo isso dê certo ainda deve incluir transportes eficientes, regulares e a custos competitivos para além do devido condicionamento e a certificação dos produtos. Claro que o problema central de escala que se coloca em tudo o que diz respeito à produção no país não deixará de existir e afectar a competitividade de produtos. Entrementes, o que parece incompatível com a produção bem-sucedida para nichos de mercado, para o aumento da produtividade e a melhoria do rendimento no campo é manter o actual nível populacional ocupado na agricultura e até elevá-lo com os esforços de fixação e criação de empregos.
A história do desenvolvimento de diferentes países revela claramente a evolução da economia a partir da agricultura, pecuária e indústrias extractivas do sector primário para o sector secundário com a industrialização e posteriormente para o sector terciário dos serviços. Uma evolução que se suportou no aumento da produtividade e que foi acompanhada de deslocação da mão de obra primeiro para indústria e progressivamente para os serviços e que resultou na emergência de uma classe média e na diminuição geral da pobreza. Actualmente com a economia digital, o estabelecimento de cadeias de valores globais e o comércio livre entre as nações o potencial para expansão parece não ter limite e imparável a tendência para a concentração das pessoas nas cidades e nas grandes áreas metropolitanas. Claro que face a essas tendências há um esforço para se evitar o agravamento excessivo das desigualdades territoriais mas numa perspectiva dinâmica com alargamento do leque de ofertas locais sem comprometer as necessidades de mão-de-obra dos sectores em rápido crescimento. Em Cabo Verde parece não ser esse o entendimento. Aparentemente pretendeu-se contornar a fase da industrialização e desembocar diretamente nos serviços como, aliás, aconteceu num grande número de países africanos. O resultado vê-se na agricultura ainda basicamente de subsistência, numa grande população rural vulnerável e crescente população nas periferias das cidades ocupadas em atividades informais de baixa produtividade e de fraca capacidade de criação de emprego. Mesmo a parte formal dos serviços não tem suficiente dinâmica para criação massiva de empregos que historicamente a industrialização demonstrou ter.
Daí as persistentes e elevadas taxas de desemprego em África contrariamente ao que se verifica na Ásia que escolheu industrializar-se para exportação. Uma outra consequência pode ser vista no rendimento per capita desses países. Maurícias tem três vezes o rendimento per capita de Cabo Verde. Diferenças similares ou mais pronunciadas existem entre países asiáticos e africanos. E assim é porque enquanto Maurícias industrializava-se para exportação nos anos 70 e 80, Cabo Verde submetia-se a políticas que viravam o país para dentro, negava o investimento directo estrangeiro e hostilizava o sector privado nacional. As tentativas de industrialização dos anos noventa vieram relativamente tarde e não tiveram seguimento na década seguinte. Na África existe agora uma forte motivação para se industrializar como se pode ver com particular destaque na Etiópia, Quénia e Ruanda. Percebe-se finalmente que dificilmente se será bem-sucedido na luta contra a pobreza e na construção de um futuro de progresso sem indústrias competitivas. O sucesso da China está aí para demonstrar qual deve ser o caminho.
Pode-se pois concluir que na ausência de uma política de industrialização dificilmente um país ou uma economia consegue criar empregos em número e qualidade para baixar significativamente o desemprego. E certamente não é pela via do auto emprego, fazendo uso de receitas diversas de empreendedorismo e sonhando com start ups que se vai chegar lá. Sucessos por essas vias exigem na maior parte das vezes um ambiente de negócios favorável, um nível elevado de formalização da economia e existência de mercados estruturados que à partida não se pode assumir. Tem que se construir. Mesmo a formação profissional e um sistema de estágios massificado para trazer resultados positivos têm que se enquadrar dentro de um círculo virtuoso onde densidade empresarial, cultura industrial e de serviços e organização das profissões são ingredientes essenciais. Claro que para um país como Cabo Verde de pequena população e espalhada por nove ilhas a oportunidade que a emergência da sociedade do conhecimento e da economia digital podia oferecer devia ter sido logo identificada. Entre outras vantagens permitia contornar constrangimentos como localização geográfica e dispersão de recursos humanos e potenciar conhecimento e habilitações técnicas individuais. Mas isso só seria possível se se tivesse assumido realmente uma aposta séria na qualidade da formação e do conhecimento do cabo-verdiano. Investiu-se na massificação do ensino em detrimento da qualidade.
O resultado é que sem industrialização e com um sector de serviços ainda pouco dinâmico não estranha que a habilitação média do jovem desempregado seja o 9º ano de escolaridade. O aviso que isso iria acontecer vem de longe, como, aliás, todos os outros avisos que apontavam para falhas e incongruências de políticas públicas e que foram ignorados. Está-se perante mais um outro alerta de que o crescimento económico pode não estar a traduzir-se em mais emprego. O futuro dirá se será desta vez que o alerta será ouvido e que serenamente se irá debater e agir para que finalmente o desemprego deixe de ser estrutural e empregos cheguem a todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 906 de 10 de Abril de 2019.