Nas restantes ilhas ensaia-se o caminho de regresso à normalidade. Apesar de não se ter ainda uma ideia clara e segura de que o país já terá passado o pior, especialmente quando casos positivos de contágio de coronavírus aumentam todos os dias na cidade da Praia, a decisão de diminuir as restrições nas outras ilhas foi recebida com evidente satisfação.
Vários outros países em particular na Europa posicionam-se no mesmo sentido e vão nesta e nas próximas semanas procurar reactivar a economia que ficou praticamente congelada durante os estados de emergência. A diferença com Cabo Verde é que passaram por semanas traumáticas com milhares de mortes e isso vai-se fazer sentir na atitude das pessoas e na forma como vão se comportar ao longo do processo. Certamente que não haverá euforia, mas sim contenção perante o que todos percebem que pode vir a se repetir no caso de uma segunda vaga e possivelmente de outras do vírus até o surgimento de uma vacina e a criação de imunidade de grupo.
A tarefa que se vai colocar a todos de reactivar a economia será de facto colossal. Como a ameaça do coronavírus vai-se manter por algum tempo, entre dois a três anos segundo a especialista Laurie Garrett numa entrevista ao New York Times, restrições diversas vão dificultar a retoma e manter o desemprego a níveis elevados enquanto novas formas de organização da produção de bens e serviços não forem estabelecidas. Os constrangimentos nas viagens vão impactar fortemente no turismo e na circulação global de homens de negócios, cientistas, desportistas e ainda na participação em eventos internacionais. A tendência já presente de algum nacionalismo económico poderá vir a acentuar-se com efeitos negativos no comércio internacional, com a reformulação das cadeias de valores, mudanças nos circuitos de abastecimento e outras manifestações de desglobalização.
Os países menos desenvolvidos serão os mais prejudicados, aprofundando-se ainda mais a dependência num ambiente político internacional mais complicado, porque marcado por rivalidades entre potências num mundo que deixou de ser unipolar, mas ainda sem a estabilidade de um mundo multipolar. À perda de receitas devido a quebras nos preços de matérias-primas e outras commodities ainda se irá juntar a diminuição brusca de remessas e o peso da dívida pública significativamente aumentada pela crise da covid-19. Para se ultrapassar uma crise desta magnitude provavelmente terá que reinar um espírito do tipo do Plano Marshall do pós Segunda Guerra Mundial que traga à luz novas relações de solidariedade mas acompanhadas de responsabilidade. Não há espaço para repetição de erros do passado que deixaram as populações em pior estado do que se encontravam antes das ajudas principalmente agora que a pandemia veio relembrar de forma brutal o quanto toda a humanidade está interconectada.
No caso de Cabo Verde, há que pelo menos ver a dimensão do que se perdeu, discernir as vias para recuperar a capacidade de crescer nos níveis anteriores e de se reinventar para se ajustar com vantagens no mundo pós-covid-19. À partida, nota-se que sem o turismo o desemprego que já se aproximava de um dígito disparou com particular impacto nas ilhas do Sal e da Boa Vista. Actividades conexas paralisaram-se e os cofres do Estado sofreram um rombo com a perda em impostos e taxas. Por aí vê-se que a procura externa, na forma do turismo, de exportações de bens e serviços e de aviação é o que nestes anos tem sido o grande motor da economia. É evidente que não se vai reconstruir de repente, mesmo depois da passagem desta primeira vaga da covid-19 e em voltando levará algum tempo para ter a dimensão do antes considerando os novos constrangimentos no que respeita a viagens, estadias e ajuntamentos. Por outro lado, sabe-se que não há procura interna que possa substituir os seus efeitos mesmo com todos os estímulos possíveis.
O grande desafio, quando se planeia voltar à normalidade que não será a de ontem, é como conseguir ganhos de eficiência no funcionamento do Estado, das empresas e dos mercados para que os custos de factores como água, energia e comunicações e o preço dos alimentos e outros bens se mantenham a níveis aceitáveis. Não se tem que fazer como de outras vezes que foram criadas linhas de crédito, dados benefícios fiscais e oferecidas garantias e depois não se obtiveram os resultados prometidos em dinâmica económica, emprego e exportações Como se veio a justificar depois, falhou a transmissão monetária, não havia capacidade para apresentar projectos, os potenciais investidores estavam em falta com a banca ou simplesmente não havia mercado que garantisse retorno dos investimentos. Agora não há muita margem para erros ou desperdício de recursos.
Provavelmente sem precedentes é a situação das populações nas ilhas turísticas que se debatem com o desemprego bem como as populações rurais que se viram limitadas na comercialização dos seus produtos pela covid-19 ou dos trabalhadores nas fábricas e na construção civil impedidos de trabalhar por razões de confinamento e distanciamento social. E a piorar a situação acrescenta-se a mais que provável baixa nas remessas dos emigrantes que enviadas da Europa e dos Estados Unidos constituem um complemento significativo do rendimento de muitas famílias. Garantir um rendimento mínimo a todos neste momento difícil da vida nacional e internacional e com o espectro da doença contagiosa e mortal à espreita é talvez o maior desafio que se coloca a qualquer governo, particularmente em Cabo Verde.
Assegurar o presente, porém, não chega. Esperar para se recomeçar no ponto em que se ficou no antes da covid-19 é ilusório. Retomar estratégias de ontem como se nada de fundamental mudou, pode revelar-se desastroso. Caso para ser visto é, por exemplo, o da aviação internacional que depois das enormes perdas e das restrições que irão ser impostas nas viagens vai levar anos para se recuperar. Pergunta-se em que pé ficarão a proposta do hub da Ilha do Sal e as privatizações no sector. Mesmo nos transportes internos é evidente que muitos dos pressupostos poderão ter-se alterado e há que ter presente todos os cenários considerando que as ligações aéreas e marítimas são vitais para o país.
Também há que ver os constrangimentos actuais com outros olhos. Se motivado pela condição de ilhas, tivesse sido feito aposta estratégica no funcionamento do Estado de forma descentralizada recorrendo às tecnologias de informação e comunicação, face à pandemia, não haveria grande quebra na produtividade e o teletrabalho dirigido para o mercado interno e externo já estaria mais avançado. Se estrategicamente se tivesse focalizado em formar profissionais de saúde, enfermeiras e outros prestadores de cuidados, profissões com alta procura em todo o mundo, muitos jovens hoje estariam bem posicionados para o mercado nacional e internacional.
Tirando de lado o que se poderia ter feito, há que agir no imediato para aumentar a capacidade de produção interna de alimentos (agricultura, pecuária e pesca) e ao mesmo tempo assegurar circuitos de distribuição e mercados que garantem rentabilidade. Há que continuar a aposta no turismo e avançar com investimentos estratégicos nas ilhas do Sal e da Boa Vista na habitação e no sistema sanitário que já deviam ter sido feitos. Finalmente, a pandemia veio relembrar a importância essencial de se poder socorrer as ilhas a qualquer momento e nesse sentido a importância de se ter uma guarda costeira profissional com meios marítimos e aéreos adequados para a busca e salvamento e garantia de segurança nas nossas costas e mares. A discussão do próximo orçamento rectificativo podia ser um bom começo na reflexão sobre como construir o “novo normal” que irá vigorar no pós covid-19.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 962 de 6 de Maio de 2020.