Um outro facto novo foi toda essa movimentação ter sido essencialmente alimentada a partir das redes sociais que trataram de dar, difundir e interpretar informações sobre o acontecido ao Giovani. Várias narrativas sucederam-se para explicar o que se passou, teorias de conspiração serviram para neutralizar ou lançar dúvidas sobre notícias oficiais das autoridades portuguesas e das autoridades cabo-verdianas e conseguiu-se que o incidente que levou à morte do estudante fosse tido como uma consequência do racismo e, de alguma forma, como produto do racismo institucional português.
Para qualquer observador conhecedor das ilhas e em particular da sua história e cultura seculares do cabo-verdiano seria de quem menos se esperaria encontrar num imbróglio com cores raciais ou visado como representativo de uma parte num conflito de raças. Da mesma forma que também seria quem num cenário de crime grave, mas sem provas concludentes quanto aos autores e às motivações, menos estaria inclinado em ver logo à partida fundamentos racistas e em estar pronto a posicionar-se como vítima de perseguição racial. Muito menos ainda se esperaria que um bom número de pessoas, em particular jovens nas ilhas e no estrangeiro, comungasse da mesma visão tingida por cores raciais. A morte de Giovani é razão para uma tristeza sem fim, mas não pode ser pretexto para se legitimar algo que claramente configura um retrocesso na visão que o cabo-verdiano tem si mesmo e da sua relação com o mundo.
Se tomarmos a origem da morna nas primeiras décadas do século XIX pode-se afirmar que elementos-chave da consciência da nação cabo-verdiana, língua e música já estavam presentes há quase dois séculos. A vivência dura nas ilhas dilacerada por fomes periódicas que dizimavam milhares tinha criado um ecossistema favorável que quebrou as relações socioeconómicas do passado e criou uma realidade onde as gradientes da cor da pele deixaram de ser relevantes culminando no mundo que o mulato criou identificado por Gabriel Mariano e descrito e revivido por todos nos romances, contos e poemas de Baltasar Lopes, Manuel Lopes, Jorge Barbosa e de outros Claridosos. De facto, no mundo do cabo-verdiano não tem qualquer relevância o tom mais escuro ou mais claro da pele na escolha de qualquer pessoa para um cargo público, no ser eleito para qualquer órgão de soberania e no singrar em qualquer carreira. Nenhuma classe socioeconómica ou profissão distingue-se pela cor da pele.
Visto numa certa perspectiva, o ideal de um futuro de harmonia racial de há muito que nas condições específicas de Cabo Verde (carestia, isolamento, fomes periódicas) se tornou numa realidade e constituiu o substracto-base de uma consciência de nação que se consolidou muito antes da independência nacional. Outras sociedades em determinados momentos julgaram ter atingido esse patamar nas relações humanas só para pouco depois se constatar que ainda estão muito aquém desse objectivo. Quando Barack Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos uma onda de optimismo atravessou a América e muitos conjecturaram se os americanos já tinham passado a viver numa sociedade pós-racial. Hoje sabe-se que não é assim e que a realização desse ideal tende a ficar mais longe devido à reacção de quantos se viram ameaçados pelos reais avanços então verificados. Frustração similar verificou-se anteriormente com o Brasil que por algum tempo conseguiu projectar para o mundo a imagem de uma democracia racial, um mito que particularmente a partir dos anos oitenta se desmoronou, revelando as profundas desigualdades existentes e como são reproduzidas pela discriminação racial institucionalizada. Ora se tudo indica que Cabo Verde conseguiu o que para todos é o ideal de convivência entre as pessoas como justificar que se queira desfiar o novelo depois de tão delicadamente e fecundamente o ter criado e voltar à indignidade de ontem de julgar as pessoas pela cor da pele. Devia ser o contrário. Há que tornar a meada mais apertada e mais rica e obter assim a unidade de propósitos indispensável para fazer prosperar o país na liberdade, na diversidade e no pluralismo.
É verdade que Cabo Verde não está sozinho e que a especificidade da experiência do cabo-verdiano não se estabelece sem que de alguma forma afecte a sua relação com o mundo. No país vive-se um ambiente isento de tensões raciais que se traduz numa harmonia e tranquilidade que até seduz os estrangeiros e dá uma outra dimensão à sodade sentida quando se está ausente da terra mãe. Já menos positivo é o facto desse mesmo ambiente não o preparar para enfrentar o mundo lá fora onde em maior ou menor grau preconceitos raciais se manifestam nas relações pessoais e não se excluem actos discriminatórios mesmo à revelia da lei. É evidente que face a tais situações se o cabo-verdiano estiver seguro da sua identidade e do seu percurso não se deixará apanhar no torvelinho de relações modeladas por uma história de humilhação, violência e vitimização de base racial. Nem tão pouco irá cair na tentação de trazer para o país os estigmas, a violência e uma visão do mundo colorida por filtros raciais. Infelizmente não parece que é isso que actualmente acontece.
Vários factores têm contribuído para o cabo-verdiano perder de vista o percurso percorrido para ganhar consciência nacional. Sabe que a caminhada vem de longe porque não ignora que a sua língua, a sua música e sua literatura têm mais de um século de existência, mas repetem-lhe todos os dias qua a luta é recente e só batendo-se contra o inimigo colonizador nos vários campos vai afirmar a sua identidade. Na corrida em que artificialmente é colocado na busca de identidade acaba inevitavelmente por ir atrás de marcadores (culturais, origens, cor da pele, ideologias) que o distinguem do inimigo declarado e lhe permitem identificar quem está com ele na luta e quem é aliado do adversário. Ou seja, é lançado num caminho em que o mais certo é ver esvaziarem-se os ganhos de séculos na construção da cabo-verdianidade em busca de uma identidade forjada numa luta ilusória que só traz com ela insegurança pessoal, bairrismos e o regresso de complexos raciais. Como bem disse o doutor Gabriel Fernandes, com a política de reafricanização dos espíritos “… os actores políticos caboverdianos acabaram por exacerbar as diferenças internas abrindo um fosso entre os próprios caboverdianos, doravante percebidos, não em termos culturais-unitários, como parte integrante de uma entidade peculiar, mas sim político-dualísticos, sob o rótulo de anticolonialista ou de colaboracionista”.
É evidente que não é esse o caminho para unir a nação, construir a democracia e prosperar. De uma concepção de si próprio não “ a partir de dentro, da sua peculiaridade cultural, mas sim de fora, da sua compartilhada situação de africanos e dominados” só se pode ter estratégias de atracção de fluxos externos suportados numa permanente e criativa vitimização. Não fica espaço para a auto-responsabilização individual e colectiva que é essencial para a construção do carácter e da integridade que orgulharia a todos os que realmente forjaram a nação e nos legaram um género musical, a morna, que em Dezembro foi declarada Património Universal da Humanidade. Em memória do Giovani o que todos deviam fazer era preservar o legado da cabo-verdianidade e mostrar a todos que sim: é possível a harmonia racial no mundo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 946 de 15 de Janeiro de 2020.