Ontem parei na televisão para assistir o documentário “Elephant-King of the Kalahari” – e, como de outras vezes, pensei em Cabo Verde já que tudo ou qualquer coisa que se refira a gentes, almas ou terras transportam-me necessariamente para as ilhas, o que deve acontecer, e é legítimo, penso, com a generalidade das pessoas. Umas vezes para comparar, outras para lembrar, outras apenas para sonhar no balanço das horas. Sonhar, pensar por exemplo na data da nossa Independência, o 5 de julho. Estamos de parabéns.
O elefante tem numa reserva no Botswana a sua maior pátria. Perguntar-me-ão como é possível associá-lo às ilhas. Eu não sei responder, mas o quotidiano da selva seja a violência, seja a ternura, o nascer vermelho da terra, o azul da noite, o verde irregular das plantas dançando ao vento ou o amarelo do deserto, seja a dura luta pela sobrevivência convocam a emoção. Assim como me comovem os animais que ficam definitivamente para trás, ou aqueles que num último esforço arrastam-se por uma gota de água. Onde é que já vimos isso? Lembra-se?
O que me motivou a rever o filme foi ter acabado de saber que em apenas um dia, vinte e quatro horas, (portanto já se passaram apenas dois dias sobre a notícia), tinham aparecido mortos mais de trezentos e cinquenta elefantes, quase um quarto do total dos animais de Botswana, a maior reserva mundial. Não tendo sido caçadores assassinos pensou-se, e pensa-se, que a causa poderá ter sido a Covid-19, pela maneira dramática como os corpos se encontravam caídos. Até hoje, cinco de julho, nenhuma resposta foi encontrada e, entretanto, outras hipóteses vão sendo avançadas.
Que sinos tocarão pelos elefantes? Farão os jardins zoológicos um minuto de silêncio pela tragédia que se abateu sobre o maior mamífero terrestre do planeta? Sobre nós? Ou isso, simplesmente, não nos diz respeito? Ou os sinos são apenas usados para os treinos dos animas nos zoos? Lembra-se do elefante repetindo incansavelmente gestos com a tromba, ridiculamente humanizados para o nosso entretenimento?
No documentário a manada era chefiada por uma elefanta, eleita, claro está, não por ser fêmea, ou por ser o mais belo exemplar, ou pelo seu peso onde cabem todas as toneladas que possamos imaginar, ou por qualidades outras, ou por atributos que lhe queiramos dar, ou mesmo por uma qualquer lei de paridade à moda da selva, não. Foi escolhida porque era ela quem tinha melhores referências da comunidade e, sobretudo, lembranças dos caminhos que deveria percorrer para levar o grupo, na seca aterradora que se fazia sentir, até à água e à comida nos limites de vida em que estavam.
Ela sabia como lá chegar. As suas poderosas patas tinham guardado a memória dos caminhos para o local que em poucos dias, teria água, brotando do chão, primeiro em gotas, depois num fiozinho de água para mais tarde se transformar em riacho caudaloso. É um fenómeno, que vale a pena assistir, produzido no interior da terra, quando poderosas massas se chocam e empurram a água dos leitos submersos para a superfície. Acontece na África e acontece noutros continentes por razões óbvias. Como seria bom que a nossa natureza de ilhéus fosse beneficiada com um milagre desse tipo, mesmo sem territórios imensos, mesmo sem florestas ou flores, mesmo sem elefantes.
A elefanta foi eleita chefe da manada porque de entre todos os seus companheiros e companheiras que normalmente possuem uma memória privilegiada ela guardava profundas recordações de vida, informações ancestrais e insubstituíveis lembranças. Isso levou-me de novo a pensar nas nossas ilhas, na necessidade de termos memórias e na imperiosa necessidade de as passarmos aos mais jovens. Todos os cabo-verdianos maiores de quarenta e cinco anos, no limite, temos memórias da nossa Independência e podemos assisti-las desfilando, sobretudo por esses dias, em discursos e falas nos jornais ou redes sociais. Não estarão todas na mesma sintonia? Mas deviam estar? Cada um de nós tem a sua história de vida, apenas isso.
“Nós somos as nossas memórias” é a frase título desta crónica. Como estaríamos nesse longo período de confinamentos seguidos devido à Covid-19 se não tivéssemos memórias que nos apoiassem, recordações que nos motivassem a não desistir?
Sem dúvida que foram as memórias que trouxeram pessoas queridas para junto de nós quando o distanciamento não permitia, e não permite, abraços ou nomes. São elas que ajudam a lembrar vozes, a rever risos, a recordar lágrimas. São elas que nos mostram o caminho luminoso que temos de construir para o amanhã.
No documentário passado no Kalahari informações ancestrais indicam que o tempo devia ser de chuva e que o desassossego é inaudito quando atraso de meses acontece e o deserto se afunda. Os elefantes afligem-se, interrogam-se e, se calhar, fazem contas. Isso também me faz lembrar as ilhas, as mulheres e os homens das ilhas, teimosamente limpando a terra, cavando, semeando, chorando para depois repetirem tudo de novo enquanto um grão sobrar no fundo da caixa das sementes, enquanto o ano não tiver de todo soçobrado perante as evidências meteorológicas ou de calendário, enquanto o resto da vida que sobrou estiver presente, perante a falência do clima fantasiado. É essa resistência forjada na pedra, no tempo espinhoso e no suor ardente que, também, enforma a nossa alma cabo-verdiana. Heróis? De jeito nenhum, mas também, não o seu contrário. Somos apenas humanos, muitas vezes com mais quedas e atropelos do que gostaríamos, ou até que seriam expectáveis, mas em quarenta e cinco anos de independência, nós estamos, também, como as ilhas, de parabéns. É verdade que temos um País e uma História para continuar a construir e não vale a pena – é minha opinião e vale o que vale – apear uns para subir outros, porque esse livro chamado Cabo Verde tem imensas páginas onde cabemos todos. E como cabemos!
No documentário, perante o leão que avança esfomeado sobre a elefanta que acompanha os passos débeis da cria recém-nascida, a manada que se adiantou no passo apressa-se a recuar em tropel para socorrer mãe e filha.
Voltei a lembrar a minha terra. Os jovens cabo-verdianos devem conhecer as batalhas diariamente repetidas levadas a cabo pelas mulheres, pelos homens e pelas crianças. Eles têm que construir memórias que os ajudem a criar o seu sentido de pertença dessa grande nação que é a nossa.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 971 de 8 de Julho de 2020.