Que Cabo Verde é um país difícil de gerir e de governar, não parece matéria de grande discussão e de divergência insuperável. Somos um país pequeno, pobre, com um clima, em muitos aspetos, adverso e sem grandes condições naturais para impulsionar o seu desenvolvimento.
Muito do que foi conseguido por Cabo Verde ao longo destes 47 anos de independência foi graças ao esforço dos cabo-verdianos, mas, também, em grande medida, fruto da ajuda dos nossos parceiros de desenvolvimento.
Na realidade, conseguimos em 1975 a independência política, mas ficou uma outra independência para ser conquistada: a económica, que, no entanto, tarda em chegar. Este é o grande e o maior desafio que este país tem pela frente, e que todos deveriam estar conscientes e, sobretudo, empenhados em vencer.
O debate sobre o Estado da Nação que vai decorrer nos próximos dias deve/deveria ser o momento para refletirmos sobre como estamos e para onde queremos ir.
Um país em que uma parte do seu orçamento do estado é financiado por ajudas orçamentais de países estrangeiros;
Em que uma fatia importante do seu orçamento é financiada com recurso ao endividamento;
Em que o serviço da dívida atinge um ponto crítico e o seu efetivo cumprimento pode conduzir ao incumprimento de outras obrigações;
Em que, para complicar ainda mais a situação, ocorrem fenómenos com impactos enormes no país e na vida das pessoas como são a crise sanitária e a guerra na Europa, para além da crise resultante da seca persistente que afeta grandemente a população que vive no campo.
Num país onde registam essas situações, elas deveriam suscitar em todos nós reflexão e preocupação para que encarássemos os desafios que o quadro descrito apresenta como uma questão existencial, enquanto ente soberana.
Só o impacto da crise sanitária fez com que houvesse uma queda no PIB de 14.8% em 2020. Pode até parecer, para muitos, uma coisa insignificante ou que apenas tem valor estatístico, sem reflexo na economia, nas finanças públicas e na vida das pessoas. O significado desta queda substancial do PIB traduz-se, de forma simples, no empobrecimento do país.
Ora, um país, que já de si é pobre, e que tem esse nível de empobrecimento em apenas um ano, deveria tocar o sinete de alarme para que todos estivessem conscientes da gravidade da situação. Entre perdas brutais de receitas fiscais e a necessidade e a urgência em se adotar medidas para salvar o emprego e apoiar as famílias mais atingidas pela crise sanitária, viu-se obrigado a deitar mãos de instrumentos como cortes nas despesas, congelamento e endividamento.
Este é o estado da nação, que deveria suscitar em todos nós uma reflexão serena, profunda e responsável. Este é o momento, como disse John Kennedy aos americanos: Não exijam o que o vosso país pode fazer por vós - exijam o que vocês podem fazer pelo vosso país.
Este é, realmente, o momento de nos questionarmos o que podemos fazer por Cabo Verde para que possa ultrapassar a situação em que encontra.
Recentemente, por ocasião da comemoração de mais um aniversário da nossa independência, os principais atores políticos do país, nos seus discursos proferidos, puseram-se de acordo quanto à situação crítica em que o país se encontra e quanto as vias, as melhores, para superar a situação.
Importa destacar o que disseram:
Presidente da República: “Tal como no passado, Cabo Verde saberá ultrapassar estas adversidades, com um djunta mon entre todos os seus filhos… O momento é de solidariedade e de entreajuda, consubstanciadas num maior espírito de assunção e prática do bem-estar comum”.
O PAICV: “Estamos a celebrar a data maior da História de Cabo Verde num momento em que os efeitos das crises registadas nos últimos tempos se fazem sentir de maneira ameaçadora sobre toda a nação cabo-verdiana.
Estas crises, de proporções gigantescas, só serão enfrentadas com sucesso, se conseguirmos reunir os cabo-verdianos à volta de objetivos consensuais, concebidos e trabalhados através do diálogo, da cooperação e solidariedade nacionais”.
O MPD: “Este é o momento de darmos primazia ao dialogo e à concertação, em detrimento de exploração, em alguns casos sem sentido, das diferenças;
A situação exige que priorizemos o essencial em vez investirmos no trivial e marginal;
É momento para que todos nos juntemos, para trabalharmos em conjunto, na busca de caminhos e soluções para superarmos as dificuldades desta difícil conjuntura”.
O que ressalta, de forma evidente, de essas intervenções?
1) Que estamos perante uma situação de crise grave com impacto enorme sobre o país e a população;
2) Que o momento exige que se concentre no essencial (há como um apelo implícito ao estabelecimento de uma trégua na postura confrontacional) para centrar todas as baterias no combate à crise e inverter a situação reinante;
3) Que é necessário “um djunta mon”, uma união de esforço de todos, no quadro de uma atuação conjunta para fazer face e ultrapassar a crise.
No entanto, faltou materializar em termos concretos o que é necessário ser feito para o país neste momento e para o futuro.
Não se teve coragem de dizer, face ao diagnóstico comummente partilhado, que é hora de estabelecimento de acordo político e social, baseado num programa de ação, não circunscrito ao combate à crise atual, mas que abarque reformas estruturais de longo prazo.
O país não poderá fazer as reformas estruturais (algumas dolorosas), sem que haja uma base politica e social ampla que suporte a implementação de tais reformas, e sem que quem esteja a implementá-las fique condicionado pela gestão do ciclo político-eleitoral.
Há necessidade de se estabelecer um pacto político/social, abarcando as forças políticas e as organizações sindicais e empresariais, com base num programa com medidas concretas que não só responderiam às necessidades no quadro da atual crise, mas que se projetariam para o futuro, com soluções de longo prazo ou seja: um verdadeiro programa de desenvolvimento para as próximas duas décadas.
Isso só será possível se tivermos ou soubermos construir uma visão partilhada do futuro; se tivermos dirigentes com clarividência e apurado sentido de responsabilidade para com o país e a sua gente; se tivermos, ainda, lideranças políticas esclarecidas e homens com um apurado perfil de estadistas.
Como afirmou, com propriedade, James Freeman Clarke “Um político pensa na próxima eleição; um estadista, na próxima geração”. Este é o tempo que precisamos mais de estadistas do que de políticos para tirarmos o país da crise e para projetarmos a independência económica de Cabo Verde. Não podemos, de forma categórica, afirmarmos a nossa soberania, se continuarmos a viver e a depender de ajudas. Temos de ser capazes de sustentar as nossas opções e de pagar as nossas contas. Esse objetivo demorará 10, 20 ou 30 anos para ser atingido? Que seja! O que importa é fixarmos o rumo e traçarmos as metas e trabalharmos de forma abnegada e persistente para as alcançar.
Esta geração tem esta responsabilidade, e completaria o ciclo da independência política herdada da geração anterior, com a independência económica fruto do trabalho e comprometimento desta geração.
Precisamos construir uma base sólida para responder às inquietações e necessidades deste tempo que se deve traduzir-se, nomeadamente em:
Questões de curto prazo: 1) medidas emergenciais para enfrentamento da crise pandémica, da seca e do impacto da guerra na Ucrânia; 2) definir e quantificar medidas emergenciais a serem adotadas e implementadas; 3) estabelecer metodologias, parcerias e etapas de execução.
Questões de longo prazo: 1) medidas para que o país deixe de depender da ajuda orçamental; 2) acordo para aumentar a produtividade no trabalho em Cabo Verde e para incrementar o crescimento da economia; 3) acordo para políticas de rendimentos e preços; 4) reforma da administração pública, redução das estruturas e reformas das despesas públicas; 5) reforma do setor agrário e promoção do desenvolvimento rural como território económico; 6) reforma do estado e promoção de politicas de descentralização, adequando e modelando a máquina do estado às caraterísticas e necessidades do país; 7) políticas da redução da dívida, baixando-a para patamares aceitáveis pela economia.
Outras medidas poderiam ser identificadas e introduzidas no programa, que deveria conter um quadro calendarizado de ações, um mecanismo de coordenação, indicadores de performance, instrumentos de monitorização e avaliação.
O país precisa e reclama por soluções e compromissos que lhe deem uma perspetiva e um rumo para o qual todos puxam na mesma direção.
Porque a necessidade de acordo político/social?
Em primeiro lugar porque as reformas e as transformações a serem operadas podem percorrer por várias legislaturas;
Em segundo, porque as politicas e as reformas devem ser prosseguidas independentemente das alternâncias politicas que possam ocorrer;
Em terceiro, é imperioso assegurar a continuidade das politicas para que possam atingir os resultados as metas traçadas;
E finalmente, porque entendo que nenhum partido político sozinho está em condições de operar essas transformações sozinho, tornando-se imperioso haver a necessária humildade para, em nome dos interesses superiores da nação, se construir compromissos políticos sólidos e duráveis.
A alternativa ao compromisso para as transformações é o adiamento, é o paliativo e é o começar de novo.
Um país pobre e com vulnerabilidades de toda a sorte não pode dar-se ao luxo de estar constantemente a começar de novo, a alterar de politicas ou de opções, não porque elas estão erradas, mas simplesmente para dar um toque de diferença ou de mudança.
Em Cabo Verde não podemos continuar a funcionar na lógica da velha normalidade, como se o mundo não estivesse numa reconfiguração profunda, um pouco imposta pela pandemia e muito determinado pela guerra na Ucrânia, onde, e por força disso, teremos de saber situar-nos e de sermos capazes de compreender as novas dinâmicas nas relações mundiais.
Esperemos para ver se no debate sobre o Estado da Nação que vai ter lugar nos próximos dias, o que os partidos políticos vão privilegiar:
Se os interesses nacionais ou os interesses partidários;
Se a procura de entendimentos e compromissos para se enfrentar a crise ou a postura de confrontação de radicalização de posições;
Se algum ator político terá a coragem de tomar a iniciativa de propor uma trégua e um acordo político ou se todos vão ficar a espera que alguém tome iniciativa.
Vamos todos ficar atentos para ver o que acontece!
O país também estará atento.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1078 de 27 de Julho de 2022.