Para o procurador-geral da república a insatisfação com o actual estado da justiça é geral. Também o bastonário da ordem dos advogados faz vincar que a persistir o número actual de pendências não se terá “paz social”. Já para a ministra da justiça, que reconhece a velha questão da morosidade, existem constrangimentos que, se ultrapassados, abrem boas perspectivas. Num registo similar vai o presidente do conselho superior da magistratura que põe o foco na redução das pendências. Todos parecem convergir na problemática da eficácia do sistema, algo que é crucial para o funcionamento das sociedades democráticas na perspectiva sustentada por muitos de que se a justiça não é feita em tempo útil, ela simplesmente não existe.
Nesse sentido, seria de todo o interesse que o debate sobre a situação da justiça efectivamente se centrasse à volta de como mobilizar a vontade política e institucional para fazer as reformas, alocar meios e motivar pessoas para tornar o sistema mais eficaz. A experiência das democracias mostra que se se tornar generalizada a percepção de que a justiça não é feita, ou tarda, ou é corrompida por interesses dificilmente se poderá confrontar com sucesso as actuais crises do sistema político. Crises essas que se manifestam designadamente na crise de representatividade, na crise dos partidos, na emergência e ascensão de movimentos populistas e em derivas iliberais da governação. Aliás, nos casos em que a democracia foi afrontada de forma particularmente violenta como aconteceu nos Estados Unidos e no Brasil a integridade do sistema judicial foi fundamental para se pôr cobro às tentativas de subversão e para o regresso à normalidade democrática.
Não estranha, pois, que aqueles que procuram explorar as crises para criar espaço para soluções de governação autoritárias e iliberais tentem, por um lado, explorar o descontentamento dos cidadãos com a falta de eficácia da justiça para descredibilizar os tribunais. Por outro lado, movimentam-se para posicionar juízes particularmente nos tribunais superiores que lhes pode servir em momentos-chave em que podem estar em causa nomeadamente eleições ou resultados eleitorais, procedimentos democráticos que regem relações entre órgãos de soberania e constitucionalidade de leis e normas. Na Polónia, nas eleições de 15 de Outubro, a maioria dos eleitores votou para reverter anos de manipulação do sistema judicial pelo governo na sua deriva iliberal. Em Israel, durante meses seguidos ao longo deste ano de 2023, multidões de centenas de milhares de pessoas manifestaram contra as tentativas do governo de Netanyahu de diminuir os poderes do sistema judicial no controlo dos actos da governação.
As consequências desse tipo de manipulação viram-se recentemente em Israel nas profundas divisões que causou na sociedade até ao ponto de forçar a tomada de posição de reservistas que deixaram em aberto a possibilidade de não prestar serviço militar nas suas unidades das forças armadas se fossem diminuídos os poderes do Supremo Tribunal de Justiça. Perante a forma como o país foi apanhado de surpresa pelos ataques terroristas do Hamas há quem pergunte se os meses de divisão e conflito aberto com o governo não terão projectado uma imagem de fragilidade do país e também baixado o nível de alerta dos serviços de segurança e inteligência e de prontidão das tropas. Também nos Estados Unidos o sucesso de forças conservadoras em criar maiorias favoráveis às suas causas nos tribunais superiores e em particular no Supremo Tribunal de Justiça tem sido um factor de divisão profunda da sociedade, alimentando guerras culturais e revendo precedentes já estabelecidos em direitos da mulher e das minorias e de regulação do ambiente.
Sempre que actores políticos, por populismo ou tendências autoritárias, procuram explorar algum desencanto com a democracia para ascenderem à posição de líderes incontestados, escolhem como seus alvos privilegiados os média tradicionais e o sistema judicial. São precisamente os dois principais instrumentos de fiscalização do sistema político com poderes: um de denúncia pública de abusos e o outro de punir infracções à legalidade e de afirmar direitos fundamentais dos cidadãos. Com a agora ajuda providencial das redes sociais tais políticos cultivam a desconfiança em relação à informação disponibilizada pela imprensa e quanto aos tribunais aproveitam-se da morosidade para descredibilizar a justiça.
A resposta ao esforço de minimização do papel de intermediação dos media deve vir de renovado comprometimento com a democracia na perspectiva de que o exercício da liberdade de expressão, de informação e de imprensa só está garantido num ambiente seguro em que as regras do jogo democráticos estão a ser cumpridos por todos. Nesta perspectiva a independência dos tribunais e a eficácia na administração da justiça no sentido de justiça em tempo útil são fundamentais para se manter o ambiente que vai permitir à democracia ultrapassar as suas crises sem o perigo de divisões sociais inimigas da liberdade e da solidariedade. De facto, há que existir um consenso básico sobre os fundamentos do sistema para que o dissenso possa manifestar-se na sua plenitude e provoque a dinâmica necessária para criar, inovar e encontrar as vias para um futuro de progresso a todos os níveis.
Os tempos actuais de policrise agravados pela crise no Médio Oriente tornam urgente que se dê um sinal de que existe vontade para remover os obstáculos no caminho de uma melhor eficácia da justiça e reconquistar a confiança das pessoas no sistema. Um sinal também para garantir que as normas e procedimentos da democracia serão sempre respeitadas e a integridade do sistema judicial salvaguardada de interferência
política e de interesses estranhos.
O debate sobre a situação da justiça podia ser a sede ideal para isso. A luta política que vem a seguir e vai desembocar no novo ciclo eleitoral teria um outro valor e conteúdo.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1143 de 25 de Outubro de 2023.