Preservar a estabilidade que o sistema parlamentar de 92 proporcionou

PorA Direcção,31 out 2025 8:46

​A questão dos poderes do presidente da república é um tema de debate actual em vários países e nos mais diferentes sistemas políticos. Nos Estados Unidos com o sistema presidencialista a grande discussão é se no quadro da teoria executiva unitária o presidente tem competência para demitir qualquer titular de cargo público, incluindo as autoridades reguladoras e possivelmente o governador do banco central.

Na França semipresidencialista pergunta-se se o presidente devia renunciar ao mandato porque em sucessivas tentativas não consegue uma maioria parlamentar favorável às suas políticas. Em Portugal e em Cabo Verde, de sistemas de governo parlamentar, questiona-se a partir de que limites o exercício dos poderes deixa de ser moderador e de não ingerência para ser perturbador e desestabilizador.

Em qualquer dos casos, o maior protagonismo dos presidentes, seja nos sistemas presidencialistas ou semipresidencialistas, seja nos sistemas parlamentares, acaba por afectar os outros órgãos de soberania enfraquecendo o equilíbrio dos poderes e os pesos e contrapesos (checks and balances) do sistema. Nos primeiros casos em que o presidente governa, como na América, o congresso vê a sua competência fundamental de cobrar impostos e de alocar fundos limitada por um presidente que arbitrariamente determina tarifas alfandegárias e selectivamente recusa-se a disponibilizar às entidades públicas meios aprovados previamente por lei. Também na França sem uma maioria em linha com o presidente e com a dificuldade dos partidos em conseguir chegar a acordo, instala-se a instabilidade como vem acontecendo com quedas sucessivas de governo.

Nos regimes parlamentares, o excessivo protagonismo do PR aumenta a probabilidade de tensões com o primeiro-ministro e o governo e fragiliza o próprio parlamento. A oposição é tentada em procurar alianças extra-parlamentares, incluindo a aproximação táctica ao presidente da república, e no limite a criar caminho para a dissolução do parlamento. A instabilidade governamental que se torna regra, como se vê no caso português, pode levar à ascensão de forças antissistema. Noutros casos gera mal-estar que pode propagar-se para outras instituições do Estado, cujos titulares são nomeados pelo PR sob proposta do governo, e até para a relação governo/sociedade, quando interesses vários pressionam e se põem a jeito para que a magistratura de influência se configure como ingerência nas competências do governo.

Com eleições presidenciais no próximo ano, no mês de Janeiro em Portugal, e em Novembro possivelmente em Cabo Verde, o debate está aberto em como ultrapassar esses riscos de instabilidade política e de mal-estar social que veem ameaçando a democracia. A acicatar o debate está o constitucionalista português, Vital Moreira, com o seu novo livro, “Que presidente de república para Portugal”, em que enumera requisitos para o cargo: (i) compromisso incondicional com os valores constitucionais; (ii) percepção clara do papel do Presidente,especialmente quanto aos limites dos seus poderes; (iii) estrita imparcialidade partidária, como representante unitário de toda a coletividade nacional; (iv) adesão firme ao princípio republicano da separação entre interesse público e interesses particulares ou de grupo; (v) prudência, ponderação, recato institucional e elevação nas suas decisões e declarações! Entretanto, unanimidade parece existir entre os candidatos a presidente da república que é de evitar o tipo de magistratura presidencial do actual PR, Marcelo Rebelo de Sousa.

Em Cabo Verde, o PR José Maria Neves em posicionamentos públicos e em reflexões nos discursos, entrevistas e recentemente em “notas avulsas” na sua página pessoal do Facebook deixa entender que tem estado a pensar detidamente sobre a Constituição e os poderes do presidente. Um resultado prático disso tem sido o que aparenta ser uma tentativa de expansão dos poderes do PR no quadro da competência partilhada em relação a alguns cargos públicos de nomeação dos titulares sob proposta do governo. É evidente que daí só pode vir mais tensão nas relações entre os órgãos de soberania, o que em certa medida é normal, mas não a ponto de interferir na continuidade da autoridade do Estado investida nas instituições.

A falta de recato institucional no processo, traduzido em declarações públicas provavelmente feitas para passar a culpa pela demora na nomeação de novos titulares ou para pressionar, deu origem a leituras públicas que estariam caducados e sem validade os cargos públicos que chegaram ao termo do mandato. Ainda bem que para além de algumas manifestações antissistema que sempre existem nas democracias ninguém andou a questionar a validade dos acórdãos do tribunal de contas e das decisões e pareceres do ministério público. Também é de valorizar a responsabilidade republicana dos titulares desses cargos em se manterem nos seus postos. De facto, nas repúblicas, mesmo nos casos extremos de desentendimento entre órgãos de soberania como acontece actualmente na América com a paralisia da administração federal por bloqueio de fundos, não há vazio. Os cargos de polícia e outros que encarnam a autoridade do Estado são exercidos sem que funcionários recebam o salário devido.

O PR que tem a função de velar pelo normal funcionamento das instituições deveria ser o primeiro a dar garantia da validade do exercício dos cargos pelos seus titulares até serem substituídos. Nas democracias os mandatos eleitorais é que não podem ser encurtados ou prolongados sem respaldo constitucional quanto às circunstâncias. Para os cargos que dependem do processo político entre partidos ou entre órgãos de poder político deve-se evitar sinais que podem pôr em causa as instituições.

Em particular em relação às forças armadas cuja subordinação ao poder civil é um pilar fundamental das democracias, a Lei de Defesa atribui ao PR, enquanto comandante supremo, a função de garantir a fidelidade das FA às instituições. Para isso pode aconselhar o governo que, de facto, dirige o Estado, mas em privado. Claramente que trazer para o público, em “notas avulsas” no Facebook, que nomeou o novo Chefe de Estado Maior “depois de limar algumas arestas” e que recusara uma primeira proposta “por razões que se prendem com ética republicana que orienta o funcionamento da instituição castrense”, não promove a lealdade institucional entre órgãos de soberania nem a confiança das FA que está na base da sua fidelidade à ordem constitucional.

Mas como diz Vital Moreira, “se o presidente da república se excede, se abusa dos seus poderes, não há meio nenhum de o impedir. Sem poder ser responsabilizado politicamente é de se exigir que seja cumprido o juramento de defender e de cumprir e fazer cumprir a Constituição para se ter a garantia do normal funcionamento das instituições. De outra forma é o caos que pode vir a instalar-se com a desconfiança entre órgãos de soberania, com a perda da autoridade do Estado e com a falta de confiança e previsibilidade quanto ao cumprimento actual e futuro das regras do jogo democrático, em particular quanto ao princípio da separação de poderes.

Com as eleições legislativas no horizonte e tendo em conta eventuais sinais de turbulência nas relações entre o PR e o governo devido à interpretação expansiva dos poderes do PR, há que fazer um esforço para regressar aos contornos constitucionais que nestes 35 anos de democracia garantiram ao país estabilidade política, condição essencial para o país continuar a crescer e a prosperar. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1248 de 29 de Outubro de 2025.

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Autoria:A Direcção,31 out 2025 8:46

Editado porAndre Amaral  em  31 out 2025 23:22

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