Exigir na rua para que se decida nos gabinetes

PorNuno Andrade Ferreira,30 jun 2019 8:48

Cabo-Verdianos encontram nas manifestações forma de fazer ouvir a sua voz. Em São Vicente, o Dia da Independência volta a ser assinalado nas ruas.

A 5 de Julho, a população da ilha de São Vicente voltará a sair às ruas, mobilizada pelo movimento Sokols 2017, em nova manifestação, desta feita sob o lema “quem cala consente”. A 15 de Junho, em São Nicolau, gritou-se “agora é a hora”. Duas manifestações, no espaço de poucas semanas, com reivindicações comuns: maior atenção do governo, em particular no que diz respeito aos transportes.

A falta de voos e o elevado preço das passagens serviram de mote para o protesto em São Nicolau. Uma “reivindicação antiga”, recorda Carla Fonseca, uma das organizadoras da marcha que levou os populares até ao aeródromo da ilha.

“Há que ter políticas de transporte bem definidas. Ainda bem que em termos de cargas e mercadorias temos o navio da Mar Liso, mas em relação ao transporte de passageiros temos esse constrangimento, porque há sempre escassez de ligações, ou porque os barcos vão para outras ilhas, ou porque não há ligações aéreas. O número de pessoas que vêm para São Nicolau não é o mesmo que quer visitar as ilhas do Sal, São Vicente ou Santiago, mas estas ligações devem ser pontuais, não devem ser escassas”, defende.

A saída da TACV do mercado doméstico, em 2017, ditou o fim dos voos directos para São Vicente, ali ao lado. Agora, quem quer chegar de avião à ilha vizinha é obrigado a sujeitar-se a uma escala no Sal ou Praia, com tudo o que isso significa em termos de custos acrescidos e tempo perdido.

“Se não é viável, o Estado deveria subsidiar algumas das ligações, pelo menos com São Vicente”, reivindica Carla Fonseca.

No decorrer da manifestação foi elaborado um abaixo-assinado, a ser entregue ao governo. Além de ligações ao resto do país, mais frequentes e mais baratas, a população reivindica melhores cuidados de saúde, com a colocação de novos médicos e o reforço das capacidades hospitalares locais. A diáspora também assina o caderno reivindicativo, com os emigrantes descontentes com o preço que pagam para o desembaraço das encomendas que enviam para os seus familiares.

“Quem cala consente”

Em São Vicente, também insatisfeito, o movimento Sokols 2017 convoca a população para nova manifestação, a pretexto do 5 de Julho. Será a segunda vez que o movimento assinala o Dia da Independência nas ruas (também já o fez num 13 de Janeiro, em 2018). As causas mantêm-se as mesmas.

“Uma forma de chamar a atenção para a incompetência dos diferentes governos que têm existido em Cabo verde e que não têm governado as nossas vidas como deveriam, não têm resolvido os problemas básicos essenciais e estão a bloquear o desenvolvimento do país, a pôr em casa o nosso futuro”, resume Salvador Mascarenhas, líder do movimento cívico, meio ano depois da marcha lenta até ao aeroporto Cesária Évora, pela reposição dos voos da Cabo Verde Airlines.

“Exigimos o desbloqueio da ilha, que haja transportes. Para o país se desenvolver, é necessário haver transportes, é necessário haver ligações internacionais para São Vicente através da companhia de bandeira, porque os preços estão proibitivos. É necessário que haja barcos para São Vicente”, reforça.

Naturalidade

Em anos recentes, tornou-se mais frequente o recurso à manifestação enquanto forma de protesto, em Cabo Verde. Se São Vicente é a ilha mais vezes convocada para exigir na rua – antes do Sokols, Cordá Monte Cara (2010) e Ponto de Fuga (2013) já haviam tentando mobilizar a sociedade civil – não é caso isolado. Só para citar alguns exemplos, recorde-se quando, em 2015, o movimento MAC#114 mobilizou a cidade da Praia para, em frente à Assembleia Nacional, contestar a aprovação do Estatuto dos Titulares de Cargos Políticos. Já este ano, no Tarrafal, um grupo de jovens juntou-se para expressar o seu desagrado pelo “marasmo” do concelho, no interior de Santiago. Na Brava, a população alertou em Março para o “abandono da ilha”.

Nada que espante a socióloga Antónia Mosso, para quem as manifestações são “algo natural”.

“Há uma evolução estrutural das sociedades e dos conflitos existentes nas sociedades, portanto, é normal que as pessoas comecem a ter uma maior cidadania, uma maior consciência da necessidade de participarem activamente”, refere.

No rescaldo de cada ‘ida às ruas’, sucedem-se esforços para partidarizar os promotores das acções. Depois da manifestação de Junho, em São Nicolau, foi notícia o cargo que Carla Fonseca ocupa na estrutura local do PAICV. Na altura, a visada defendeu-se, recordando a participação de “pessoas de todos os partidos, grupo independente, pessoas neutras em matéria de partidos políticos, pessoas que acima de tudo amam a ilha, mais do que a camisola do partido”.

Para Antónia Mosso, os partidos sentem-se “desconfortáveis” com multidões ruidosas.

“Sentem-se ameaçados de alguma forma e daí, muitas vezes, aparecerem discursos a tentarem descredibilizar os movimentos cívicos e as suas reais intenções”, considera.

“A democracia vive do conflito e da diferença. As manifestações podem ocorrer com maior intensidade quando as pessoas se apercebem que há canais institucionais e esses canais, ou não estão disponíveis, ou estão disponíveis e falham”, avalia.

Dia 5, em São Vicente, e à semelhança de iniciativas anteriores, a concentração popular acontecerá a partir das 10h00, na Praça Estrela. A marcha percorrerá depois as principais artérias da cidade do Mindelo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 917 de 26 de Junho de 2019. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,30 jun 2019 8:48

Editado porAntónio Monteiro  em  27 mar 2020 23:21

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