Diagnóstico tardio coloca cancro de mama no topo da mortalidade feminina

PorSara Almeida,20 out 2019 8:02

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O cancro da mama é, de acordo os últimos dados, o que mais mulheres mata em Cabo Verde, tendo desde 2016 ultrapassado o cancro do colo uterino neste triste ranking. Mortes que poderiam ser evitadas se os casos fossem diagnosticados mais cedo, até porque o cancro da mama, quando tratado precocemente, apresenta elevadas possibilidades de cura. Falta (ainda) alguma auto-consciencialização das mulheres e falha também, de forma mais gritante, o acesso fácil, rápido e financeiramente comportável aos exames de diagnóstico, para todas as mulheres de todo o país. Uma aposta que tem de ser feita, face aos números que se apresentam e que têm uma causa identificada: diagnóstico tardio.

Maria Rosa tem 43 anos. Todos os anos faz uma ecografia mamária que mostra à sua ginecologista (no privado). 

Mamografias, que se lembre, fez apenas uma. “Há muito tempo”. Na altura em que o seu filho mais velho, o primeiro de três crianças, era pequeno. “Tinha uma dor constante na mama. A eco não mostrou qualquer sinal de alarme, mas fiz também uma mamografia. Não tinha nada. A dor era de andar com o Afonsinho ao colo”, conta.

O susto não passou disso, mas Maria conhece também a realidade por que passaram algumas amigas a quem foi diagnosticado cancro da mama e isso mantém-a atenta: “Felizmente ultrapassaram-no”. Auto-apalpação não faz. 

No seu entender “há uma certa banalização” do tema, principalmente no mês de Outubro, que por outro lado também funciona como um lembrete importante. O problema é que, depois da efeméride e dos laços rosa, as pessoas esquecem. 

Mas o “esquecimento” não é, de todo, o principal motivo pelo qual as mulheres não fazem exames periódicos aos seus seios. A falta de acesso aos meios diagnósticos, por motivos logísticos e, essencialmente, por razões financeiras parece ser, para quem lida com a problemática, o principal constrangimento à realização desses exames (com excepção do auto-exame).

Prova disso são, por exemplo, as acções de rastreio que a Associação Cabo-verdiana de Luta Contra o Cancro (ACLCC) faz e que contam sempre com uma boa adesão. Uma adesão ainda mais expressiva quando são feitas - e tem sido essa a prioridade - no interior de Santiago e em zona encravadas de difícil acesso às estruturas de saúde. 

“Acho que as mulheres já estão sensibilizadas para a problemática. Nas palestras fazem perguntas e sabem perfeitamente o que é cancro”, avalia uma fonte da ACLCC. Então, se não fazem rastreio, “não é por falta de sensibilização, é falta de acesso mesmo”, aponta. 

“A sociedade cabo-verdiana está mais consciencializada sobre a problemática do cancro, graças também ao ter sido trazida para o público essa questão”, corrobora a presidente da ACLCC, Cornélia Pereira, destacando o papel da Associação, nessa área. 

Hoje, acredita, há não só maior conhecimento sobre a doença, como se fala da mesma sem os estigmas, medo e preconceitos que antes lhes eram associados.

Sensibilizadas, mas às vezes esquecidas e com falta de acesso aos exames. Comecemos pelo “esquecimento”. 

Primeira responsável: Eu

A prevenção do cancro da mama é uma causa em que Polibel Rodrigues, de 50 anos, se envolveu “de corpo e alma”. Não por contacto directo com a doença – nem ela, nem ninguém próximo teve cancro da mama – mas porque quanto mais foi sabendo sobre esse cancro, mais se deu conta de que é um problema “tão silencioso” que tinha de se “envolver, fazer barulho, chamar a atenção, ajudar...” 

Assim, tem participado e contribuído para a divulgação da causa, ajudando nomeadamente a Liga Cabo-verdiana Contra o Cancro (LCCC) em várias acções. Por exemplo, há uns anos, recorda, recolheu fitas cor-de-rosa juntos aos amigos, confecionou mil laços rosa que doou à LCCC para venda. 

E Polibel tem também cuidado consigo. Faz auto-exame pelo menos uma vez por mês e toma todo um conjunto de precauções adequadas. Faz os exames anualmente, faz exercício e deixou de fumar. Tenta ainda ter uma alimentação saudável: “baixa em gorduras, comidas processadas, pouco sal e quase nenhum açúcar”. 

Nem todas são como Polibel. Nem todas estão assim tão cientes do flagelo desta doença. “Lembram-se uma vez ou outra, mas não agem em consequência e não tem os exames em dia; são raras as excepções”, avalia. 

Sobre essa falta de auto-reponsabilização, Cornélia Pereira defende que cada uma (ou um) deve ter a consciência de que a saúde não depende só das estruturas de saúde. “Depende de cada um de nós e do cuidado que temos”, reforça. 

Entre as recomendações da presidente da ACLCC estão também a auto-apalpação da mama, e ainda que as mulheres se dirijam, de mote próprio, às “estruturas de saúde por forma a fazerem o seu rastreio, os seus exames”. 

“Mas eu acho que a mensagem vai passando e as pessoas vão ficando cada vez mais conscientes”, insiste.

Maior constrangimento: Acesso 

Polibel Rodrigues, como referido, cuida de si. Tem comportamentos e um modo de vida de prevenção e os exames em dia e aponta que nem todas as mulheres tem esse cuidado. 

Contudo, também Polibel considera que o maior constrangimento nesta luta contra o cancro da mama, não é essa falta de cuidado, mas a “dificuldade de acesso aos exames”, principalmente para as camadas desfavorecidas.

“Pode-se até dizer que é quase impossível conseguir-se um exame em tempo útil. Muita demora e muita burocracia. O acesso mais rápido tem elevados custos pois é sempre através das clínicas privadas”, critica.

No terreno, comprova-se o que Polibel diz. Neste momento, só há vagas de marcação de mamografias, no Hospital Baptista de Sousa, para daqui a uns oito, nove meses. Há exames marcados há um ano que ainda não foram efectuados nesse hospital, onde está um dos únicos dois mamógrafos do sistema de saúde público. O outro está na Praia, no Hospital Agostinho Neto.

As listas, claro, face aos parcos meios, são longas. E a escassez e centralização dos equipamentos deixa boa parte da população em maus lençóis. Além disso, ao fazer depender estes exames de um único aparelho disponível por Hospital Central, nem sempre pode ser realizado. Ao avariarem, não há alternativa. As listas crescem. 

Enfim, mamógrafos precisam-se. E de preferência móveis. Esta é uma necessidade importante reconhecida, aliás, por todas as entrevistas que lidam com a problemática do cancro da mama. 

“É um grande constrangimento”, reconhece também a delegada de Saúde da Praia, “a mamografia que é fundamental para o diagnóstico”. 

Mas, frisa Ulardina Furtado há entretanto uma escala de prioridades que é respeitada, evitando consequências maio­res. 

Se uma mulher for diagnosticada com um lesão com alta probabilidade de ser cancro, todo o procedimento, dos exames, à consulta de especialidade, “é muito rápido.”

“Agora, se não existe essa suspeita, se não há um pedido do médico para uma marcação urgente, prioritária, se é só um check up, a marcação vai demorar muito tempo. Principalmente se, por exemplo, o mamógrafo está estragado”…

Em todo o caso, salvaguarda, “se não tivemos a mamografia, temos o outro exame complementar, que é a biopsia. Assim, se em termos ecográficos houver algo que nos leva a pensar em lesões mais graves fazemos logo a biópsia”. 

Contudo, a própria delegada reconhece que também, nem sempre, se consegue a ecografia (que é um importante exame adjuvante, não um método de rastreamento para cancro da mama), “em tempo útil”. 

Também Cornélia Pereira, da ACLCC, destaca a falta de mamógrafos. “O ideal era que tivessemos mamógrafos móveis por forma a que pudessemos chegar a qualquer comunidade, o mais distante que estiver. É um dos desafios da associação: encontrar par­ceiros de boa vontade que nos possam disponibilizar esses equipamentos móveis. Isso já ajudaria imenso também as estruturas de saúde”.

Depois, a nível das biopsias, há a necessidade de generalizar a core biopsia, que conforme explica a médica anatomopatologista e coordenadora do Programa Nacional da Prevenção e Controlo do Cancro, Carla Barbosa, é “uma biopsia por agulha grossa”. 

Actualmente a core biopsy já é usada no Hospital Batista de Sousa, mas no Hospital Agostinho Neto apenas é aplicada em casos de dúvida, quando que “a biopsia aspirativa não é conclusiva”. 

Assim, “é importante ter este exame por agulha grossa porque dá maior especificidade do exame”, explica. “Entretanto este ano ainda vai para formação uma colega de imagiologia para fazer imagiologia de intervenção que vai-nos permitir ampliar estes exames da core biopsia”, entre outros exames importantes “tanto para o diagnóstico como o tratamento do cancro da mama”, revela. 

Quanto ao tratamento, Cabo Verde tem já serviço de quimioterapia (em várias variantes) e de intervenção cirúrgica (fazendo neste caso tumorectomias, mastectomias e outras). Não existe, contudo, cirurgia de reconstrução. Nem radioterapia, sendo que todas as doentes com essa necessidade deste tipo de tratamento são evacuadas. Este ano, até ao momento foram propostos, só na junta de Sotavento, cerca de 23 casos de cancro de mama para tratamento no exterior. 

Feiras e seguimento 

Face à dificuldade de acesso a meios de diagnóstico, as feiras e acções de saúde de rua ainda são, para muitas mulheres, a forma mais fácil (e às vezes até, a única possível) para um rastreio. Assim, a ACLCC procura sempre fazer as mesmas em locais onde não há estruturas de saúde. E a adesão é boa, garante a presidente da ACLCC.

Por exemplo, este ano a Associação esteve em locali­dades encravadas como Belém ou Pico Leão, em que foram rastreadas à volta de 100 mulheres. “A maior parte nunca tinham feito um exame de rastreio”. 

Essas acções são realizadas em concernência com as delegacias de saúde locais, num “trabalho muito articulado”, avalia Cornélia Pereira.

Felizmente, a maioria dos casos que têm passado por esses rastreios tem sido negativo. Quando é notado algum sinal de alarme, as entidades de saúde fazem o encaminhamento dos casos.

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Cancro da mama em contramão


A luta contra o cancro do útero tem mostrado um incentivador, ainda que tímido, sucesso e o número de “vítimas mortais” desta doença tem descido paulatinamente. Mas se, neste caso, os resultados de algumas acções preventivas e de diagnóstico precoce parecem estar a aparecer, no que toca ao cancro da mama, o aumento da mortalidade obriga, mais do que a uma reflexão, à acção.

Quase todos os dias, um cabo-verdiano ou cabo-verdiana morre devido a um cancro. Durante muito tempo a segunda causa de morte no país, o cancro passou, de acordo com o relatório de saúde de 2017 (o mais recente, lançado este ano), para terceiro lugar, sendo ultrapassado pelas “Afecções respiratórias“ (357 óbitos em 2017), numa lista encabeçada há muito pelas “doenças do aparelho circulatório” (753 óbitos em 2017). O número de óbitos por cancro baixou de 358, em 2016, para 324, em 2017. 

Quanto aos cancros que mais matam, destacam-se os do trato digestivo, com especial relevância para o do esófago, no somatório de ambos os sexos. Discriminadamente, por sexo, em primeiro lugar está o cancro da próstata, nos homens, seguido, do da mama, e do colo uterino (nas mulheres) que surge agora em terceiro lugar.

Olhando então apenas estes cancros ginecológicos, temos assistido a uma diminuição das mortes causadas por cancro do colo uterino. Em 2015 morreram 29 mulheres com esta enfermidade, em 2016 foram 16, e em 2017 este cancro vitimou 15 mulheres.

Uma diminuição que Carla Barbosa, coordenadora do Programa Nacional da Prevenção e Controlo do Cancro (PNPCC) atribui às práticas adoptadas ao longo dos últimos anos. 

“Apesar de até hoje não termos um rastreiro de colo uterino de base populacional, um rastreio organizado, já há uma grande consciência e há pelo menos seis anos que se fazem citologias praticamente por rotina. Estamos a ver resultados destes rastreios”, avalia. 

Houve inclusive a aplicação de um projecto piloto de rastreio, em três centros de saúde do país, realizado em parceria com a Gulbenkian, que tem apoiado Cabo Verde na melhoria de diagnóstico e tratamento de todos os tipos de cancro. 

A introdução da vacina contra o HPV (que protege contra cerca de 70% dos casos de cancro do útero), um longo desígnio nacional, deverá ser feita no próximo ano. O projecto para a sua implementação no calendário nacional de vacinação está concluído e já há verbas disponibilizadas para a mesma no Projecto de Orçamento do Estado para 2020, ontem entregue na Assembleia Nacional.

Boas notícias. Agora as más: Em sentido oposto ao cancro do colo do útero, os óbitos provocados pelo cancro da mama mostram um aumento. Em 2015, houve 13 vítimas mortais desta doença e em 2016, uma subida acentuada para 20. Em 2017, 18 pessoas morreram de cancro da mama, entre as quais um homem. 

Então, o que se passa com o cancro da mama e estas estatísticas inversas? “Os casos tem chegado num estadio mais avançado o que acaba por se reflectir na mortalidade”, resume Carla Barbosa. 

Isto deve-se à falta de … basicamente tudo. “Não temos um rastreio de base populacional, não temos mamógrafos, não temos técnicos ainda. Não estamos organizados neste sentido”, reconhece a coordenadora do PNPCC. 

Não obstante essas carências, há algum trabalho que tem sido feito, embora sem os ganhos pretendidos, nomeadamente a sensibilização e informação para a apalpação, do auto-exame da mama, mas também do exame clínico da mama”, ou seja, feito pelo próprio ginecologista. 

Em várias mãos 

A detecção precoce do cancro da mama está nas mãos de cada uma. Mas também nas do sistema.

Na verdade, na mesma linha de outras entrevistadas, Carla Barbosa considera que estão a falhar duas coisas: a consciência da responsabilidade de cada uma pela sua saúde e corpo e a falta de acesso aos exames. 

“É preciso mais informação, é preciso que as pessoas estejam atentas. Os rastreios servem para apanhar a doença numa fase subclínica, em principio sem ter nódulos, mas, à partida, se fizermos um bom exame objectivo da mama numa consulta, ou se uma pessoa conhecer o seu peito e fizer o seu autoexame, conseguirá apalpar nódulos a partir de 1 cm o que lhe dá um estadio ainda relativamente bom para um bom tratamento, e falarmos de cura. Não é o que tem acontecido.” 

Entretanto, há carência de mamógrafos. Como temos vindo a referir (ver peça ao lado) só a Praia e São Vicente têm mamógrafos, sendo que o Hospital do Fogo também já recebeu um, que ainda não está em funcionamento. 

Programa de rastreio na calha 

“Uma das prioridades que temos é implementar os rastreios de colo do útero e o rastreio da mama a nível nacional. O Programa está a organizar neste sentido”, avança a coordenadora do PNPCC.

Os rastreios ao colo do útero serão colhidos nos Centros de Saúde e analisados nos centros de diagnóstico. Já foram inclusive capacitados vários técnicos, mais concretamente citotécnicos, para tal. 

Já o rastreio do cancro da mama, “que deve ser feito por um exame de mamografia a mulheres com idade superior a 40 anos de idade com periodicidade de 2 em 2 anos”, obriga à compra de mamógrafos e, mais uma vez, à formação de técnicos.

O Rastreio já começa, porém, a ser delineado, inserindo-se no eixo de detecção precoce e rastreios, do Plano Estratégico Nacional de Prevenção e Controlo do Cancro, sendo que tal como o rastreio do colo do útero, também o da mama se prevê ver implementado até 2022. 

“Temos”, também aqui, “de começar com projecto-piloto”, salvaguarda a médica.

A nível prático, tendo em conta que o país, insular, a aposta em mamógrafos móveis, que ainda não há, é uma opção de investimento que deverá ser tida em conta. 

Enquanto esse programa não é, então, implementado a aposta deve continuar a ser na informação, na sensibilização para o auto-exame e também na sensibilização dos profissionais de saúde para que realizem o exame objectivo nos seus pacientes e solicitem, quando pertinente, as mamografias. De qualquer modo, grande parte dos médicos já o segue esta prática. E as mulheres fazem as mamografias, salvaguarda Carla Barbosa, que actualmente são comparticipadas pelo INPS. Para as não seguradas que necessitem, há o apoio da assistência social. 

Algo está a ser feito, pois. Mas muito aquém do que se pretende. “Estamos a falar de um programa de rastreio organizado, que, por princípio, deve chegar a todos de forma igual e de forma gratuita. É o que almejamos e estamos a fazer”, explica.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 933 de 16 de Outubro de 2019. 

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Autoria:Sara Almeida,20 out 2019 8:02

Editado porSara Almeida  em  6 jul 2020 23:21

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