Todos os anos há um número considerável de novos jovens licenciados. Alguns estudaram no país e outros fora. Um fenómeno que faz com que haja um aumento de profissionais a entrar no mercado de trabalho ou à procura de emprego, gerando desafios e provocando reflexões por parte das Ordens profissionais. O exercício de algumas profissões, no país, implica a inscrição obrigatória nas respectivas Ordens.
A inscrição na Ordem
Para quem deseja ser advogado, contabilista ou auditor, após terminar a licenciatura é obrigatório fazer a inscrição nas respectivas ordens profissionais.
Em declarações ao Expresso das Ilhas, o bastonário da Ordem dos Advogados, Hernâni Soares, informa que para o exercício da profissão de advogado é preciso um pedido de inscrição nos termos do artigo 103º do estatuto que é dirigido ao bastonário da Ordem dos Advogados. A taxa de inscrição é de 25 mil escudos, uma vez que se torna necessário que o estagiário comparticipe com os custos que há na formação do estágio. A inscrição, por sua vez, pode, ou não, ser admitida.
“Um estrangeiro, em princípio, não é admitido para a inscrição. Mas também há pessoas que não cumprem os requisitos. Por exemplo, podem não pagar o valor da taxa de inscrição ou, ainda pode ser que o registro criminal esteja com cadastro ou a pessoa esteja em situação de incompatibilidade”, menciona.
De acordo com o bastonário da OACV, um estudante formado em Cabo Verde tem a vantagem competitiva de conhecer melhor as leis nacionais e alguns cursos têm demonstrado que “não são maus”. Isto porque, conforme diz, ao competir com aqueles que estudaram fora conseguem ficar em lugares superiores. Hernâni Soares garante que, apesar dessa vantagem competitiva, não existe discriminação na aceitação das inscrições.
Por seu turno, o candidato que pretende fazer inscrição na Ordem Profissional de Auditores e dos Contabilistas de Cabo Verde (OPACC) deve prestar provas para o efeito da sua admissão. Os licenciados nas universidades nacionais estão isentos das provas de fiscalidade, direito laboral, direito civil, uma vez que foram administradas com base nas leis existentes no país.
“Mas, se os formados estudaram fora do país, evidentemente que terão de prestar provas nessas cadeiras. Algumas cadeiras de âmbito contabilístico/financeiro laboral, fiscalidade e outros para se ver a destreza e a capacidade porque sabemos que as legislações diferenciam-se de país para país”, constata José Mário Sousa bastonário da OPACC.
O estágio
Para os contabilistas o estágio tem a duração de 18 meses e, para os auditores, quase 3 anos. Todavia, há a possibilidade de muitos técnicos não fazerem o estágio. Para isso, devem provar que já tenham trabalhado antes em um escritório. Para além do estatuto, a OPACC possui um regulamento que determina os requisitos para o estágio sendo uma das condições a existência de um patrono que também esteja inscrito na Ordem.
“De 3 em 3 meses o estagiário vai apresentando relatório e tem tarefas mínimas que vai fazendo. A comissão de acompanhamento do estágio vai fazer a triagem, observação, análise e só depois certifica o candidato”, comunica José Mário Sousa.
Já o advogado Hernâni Soares refere que o estágio é de 14 meses e acontece em duas fases. Uma primeira fase em que se aprende deontologia e uma segunda onde o causídico estagiário poderá ir aos tribunais e, com o seu patrono, ter alguma prática processual “mais activa”. Mas quem tenha um mestrado, ou melhor, que é professor numa Faculdade de Direito, pode ser dispensado do estágio.
Cada estagiário deve ter um patrono com pelo menos 5 anos de experiência para dirigir um estágio. Nesse quesito, a Ordem acompanha os estagiários através dos seus membros.
“Alguns jovens têm dificuldades porque o patrono muitas vezes não acompanha o estágio. Nós não podemos dirigir os estágios, se eu disse que em São Vicente há cerca de 20 estagiários, na Praia há mais, depois virão mais outros do Sal, então a Ordem não tem meios para conseguir saber se o estágio vai bem ou mal. Um ou outro pode-se queixar, mas cabe aos patronos ter essa consciência e dever deontológico ao aceitar dirigir um estágio”, diz.
Ordem e Ensino Superior
Segundo o bastonário da OACV, a Ordem dos Advogados não avalia a qualidade dos cursos de Direito. Este papel cabe à Agência de Regulação do Ensino Superior (ARES). A Ordem, no que lhe concerne, verifica se o curso é ou não reconhecido.
“Já houve situações de pessoas que não tinham um curso reconhecido e a Ordem não aceitou. Nós regulamos o acesso à profissão, o acesso e o exercício da advocacia em Cabo Verde, esse é o nosso papel”, afirma.
Além disso, quando há novos acessos, a OACV, de acordo com o bastonário, tenta com que os novos membros cumpram o estatuto e que tenham um “mínimo de qualidade e proficiência” para o exercício da profissão de advogado.
Conforme o bastonário da OACV, qualitativamente, em termos de comunicação vai-se perdendo “bastante” com os novos membros, tornando-se assim a expressão oral um ponto de atenção para a Ordem.
“Temos insistido com a Agência de Regulação do Ensino Superior que tenham atenção à qualidade dos formandos, porque não cabe a Ordem avaliar a qualidade. A Ordem dá os seus pareceres, mas não damos pareceres, nos cursos de direito que vão surgindo, para terem essa atenção na proficiência da língua”, profere.
A Ordem, conforme Hernâni Soares, pode dar parecer quando é chamada ou se sentir que há necessidade em determinadas áreas ligadas ao direito, leis que se fazem no país e até cursos de direito.
Para que não haja uma situação em que alguém não é aceite na OPACC pelo facto do curso não ser reconhecido, José Mário Sousa, informa que há “uma peneira e uma triagem” que se faz previamente.
“Evidentemente, as pessoas que estão interessadas em fazer a inscrição na Ordem vão ser submetidas a um conjunto de requisitos que passam normalmente por essa peneira e o Conselho Técnico, Comissão de acompanhamento do estágio e todos os órgãos que estão mais ou menos relacionados vão verificar e só no final o candidato é inscrito”, cita.
Desafios actuais e novas reflexões
Consoante o bastonário da OACV, um dos maiores desafios da Ordem tem a ver com o aumento do número de advogados estagiários, e consequentemente o aumento do número de advogados agregados.
“Então, o desafio é manter a coesão da classe tendo em conta que todos os anos entram dezenas de novos membros. E isso implica perda de homogeneidade, perda de valores, entra muita gente que não tem amor pela advocacia. Só vêm para a advocacia porque é um escape, então, isso cria uma família em que nem todos têm a mesma visão”, declara Hernâni Soares para quem este facto cria desafios enormes de unidade e consciência de classe”.
Actualmente a Ordem dos Advogados de Cabo Verde tem 327 advogados com inscrição em vigor. No entanto, o bastonário enuncia que nesse momento há mais de 500 advogados a nível nacional sendo que alguns estão suspensos.
Continuando, Hernâni Soares considera que apesar de a advocacia ser uma profissão liberal, vai se sentindo cada vez mais, em Cabo Verde e noutras paragens, “a necessidade de limitar de certa forma o acesso para se criar uma melhor qualidade” das profissões.
“Ou seja, a tendência é cada vez mais aumentar o grau de qualidade dos estágios para que se faça uma boa triagem das pessoas que vão finalmente agregar-se na profissão”, finaliza.
José Mário Sousa, bastonário da OPACC, revela que um dos desafios da Ordem, neste momento, relaciona-se ao campo ético e deontológico e a nível das formações oferecidas aos associados a fim de dotá-los com capacidade técnica e científica. Uma outra situação que a OPACC enfrenta relaciona-se com os estágios.
“Um contabilista ou auditor como patrono, evidentemente para receber pessoas para o estágio, pode não ter o espaço. Aqui está a maior dificuldade”, assegura.
Por isso, comunica o bastonário, a OPACC fez um plano de formação que pretende ser uma simulação empresarial versus estágio curricular. No futuro, a Ordem poderá pensar em, juntamente com as universidades, criar em cada instituição um departamento de simulação empresarial.
“Neste momento até já conseguimos juntamente com a Pró Empresa tentar resolver o problema, uma forma de tentar ultrapassar essa situação. Dentro do projecto, ela poderá financiar o estágio para duas turmas de recém-licenciados, possando a ter a capacidade para 56 estagiários, sendo uma turma na Praia e outra no Mindelo”, indica.
O estágio, desse modo, contínuo, seria organizado e acompanhado pela OPACC e teria uma redução de carga horária e do tempo de estágio com definição das tarefas mínimas, caso a pró Empresa abraçar a ideia. Actualmente a OPACC tem cerca de 600 contabilistas e 50 auditores.
Do ponto de vista dos licenciados
Gerson Lima Monteiro formou-se em direito no Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais. Fez a inscrição na OACV em 2018 e há dois anos faz estágio, tendo em conta que ainda não há previsão da data do exame final. Fazer 2 anos de estágio quando o estatuto estabelece 14 meses, é algo que não corresponde às expectativas deste jovem.
“Acho que se calhar ter mais de 2 anos no estágio é um prazo justo. Digo isto porque a advocacia é algo que exige muito da pessoa. Em 14 meses aprende-se muito, mas é um prazo curto para aprender tudo. Deviam alterar os 14 meses do estatuto e dizer que logo no início que vão ser 2 anos ou 3 de estágio. Assim a pessoa prepara-se psicologicamente. Porque senão a pessoa acaba por ficar frustrada”, expressa.
Se para o advogado estagiário o período de estágio deveria ser maior, a contabilista Maria Teixeira é de opinião que a OPACC deveria diminuir os 18 meses exigidos. Maria Teixeira formou-se em contabilidade em 2015 pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Empresariais.
“Em 2016, iniciei o processo de inscrição na OPACC. Em princípio era para ser 18 meses de estágio, mas com algumas burocracias acabou por se prolongar por quase 24 meses. Às vezes eu ficava desanimada”, conta Maria Teixeira que revela que um dos motivos do seu desânimo tinha a ver com a demora das respostas por parte da Ordem. Cita como exemplo o facto de ter esperado cerca de 3 meses por uma resposta de estágio, quando o estatuto menciona que deve ser no máximo de 30 dias.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 954 de 11 de Março de 2020.