O pedreiro Aires Gamboa, 43 anos, da Ilha Brava relata quedurante o período de confinamento não trabalhou, uma vez que, conforme justifica, “tudo estava parado”. Este homem das obras informa ainda que vive numa casa juntamente com mais três irmãs. Assim como Aires, as outras integrantes da família também trabalham apenas quando “aparece um biscaite”.
“Não diria que estou a passar fome, mas estou a comer menos. Uma refeição por dia e talvez duas quando aparece”, lamenta o entrevistado avançando que vai remediando a situação “com o pouco” que tem. A última vez que trabalhou para ganhar 1.200 escudos por dia, conta, foi há duas semanas e desde então, revela, não tem um tostão no bolso.
“Amanhã se aparecer um biscaite posso vir a ter algum dinheiro. Eu vou lidando com isso, as minhas irmãs quando trabalham ajudam-me e vice-versa. Quando um não tem, o outro pode ter e assim a gente desenrasca”, refere Aires Gamboa relembrando que há sete anos, durante oito meses trabalhou na cidade da Praia. Uma emigrante contratou-o para trabalhar na sua casa. Contudo, regressou à ilha natal, uma vez que não têm familiares que o poderiam acolher na capital.
Voltando à situação actual em que se vive no País e o mundo por causa da COVID-19, este entrevistado diz ter fé em Deus e que Ele não o irá deixar viver esta experiência. Aires relata ainda que, contrariamente ao que tem acontecido com muitos desfavorecidos um pouco por todo o País, não recebeu qualquer apoio com cestas básicas.
E quem vive da informalidade?
Cíntia dos Santos, 28 anos, é vendedeira ambulante e mãe solteira de cinco filhos menores. A situação desta família que vive o bairro de Tira-Chapéu, na cidade da Praia, é a mesma que de outras famílias pobres, que vivem na informalidade e que precisam de apoio devido à crise arrastada pela pandemia do novo coronavírus. Conforme narra, “a vida está muito difícil, visto que não havia trabalho durante a emergência e a situação ainda não melhorou”.
“O mais velho dos meus filhos tem 11 anos. O pai de uma das crianças está preso. Eu estou desempregada. Quem me ajuda é o pai de outros dois dos meus filhos, mas quando ele tem”, explana.
Durante o confinamento, esta “rabidante”, como são conhecidas as pessoas que se dedicam ao comércio informal em Cabo Verde, contou também com a ajuda da mãe, da Câmara Municipal da Praia, através de doações de cestas básicas. Mas, afirma, viver numa situação de pobreza. Nesse momento, Cíntia reitera que toda ajuda será bem-vinda, todavia, alega, um emprego seria o ideal.
“Eu já passei fome. E os meus filhos também. Por dois, ou três dias por causa da quarentena. Eu sou rabidante, mas por causa do confinamento passei por muitas dificuldades”, compadece esta jovem que, conforme relata, em dias do antigo normal, de banheira à cabeça, andava por vários cantos da capital para vender em busca de algum para comer com os seus filhos. No fim do dia, continua, comprava comida e regressava a casa.
A vendedeira ambulante confessa que está preocupada com o facto do seu bairro, Tira Chapéu, estar com muitos casos de coronavírus e manifesta esperança em dias melhores. Por outro lado, está animada visto que se candidatou e viu seu nome a passar numa das selecções para receber um apartamento no programa Casa Para Todos.
“Eu vivo de renda, mas posso estar quase a conseguir um apartamento, mas ainda não sei ao certo como vai ser. Se conseguir vou ficar feliz porque a minha única preocupação vai ser o pão dos meus filhos, sem me preocupar em pagar renda”, denota.
Neste momento, Cíntia informa que paga 5 mil escudos mensais de renda. Conforme relata, está há quase três meses sem pagar ao senhorio. Alega não ter dinheiro para pagar e explica que o senhorio a tem ligado várias vezes, pelo que terá de arranjar dinheiro para pagar o que deve.
Uma cesta básica não foi suficiente
Silvino Soares Gomes tem 27 anos, é pedreiro e o responsável pela família. Segundo informa, vive com a mãe e dois sobrinhos, em Calheta de São Miguel, interior da ilha de Santiago. Entretanto, está há quase duas semanas no concelho vizinho do Tarrafal à procura de um emprego porque “as coisas não estão boas devido ao COVID-19”.
“Passei maus bocados durante o confinamento, mesmo maus bocados. A única ajuda que recebemos foi uma cesta básica mas, não foi suficiente”, enfatiza o jovem entrevistado afirmando que, apesar da situação difícil, ele e a família não passaram fome, graças a reservas de milho que possuem. Mas, frisa, que tal como diz o velho ditado, “quem como e guarda, come duas vezes”, tiveram que aprender a comer menos.
“Houve dia em que se a gente jantasse, a refeição seguinte só podia ser ao almoço do outro dia”, frisa o pedreiro que ganha por volta de mil escudos por cada dia de trabalho na obra. Mas, descreve, trabalhou pela última vez no mês de Abril. Desde então, pormenoriza, tem andado sem nenhum dinheiro no bolso.
Os familiares, alguns emigrados na Europa, prossegue, não puderam ajudar a ultrapassar este “momento complicado”, como costumavam fazer ao longo dos anos, porque também estavam em confinamento, sem puderem trabalhar e não puderam enviar remessas.
“Ultrapassamos esse confinamento com tudo, com o ter e o não ter. Dentro de casa. Quando a fome batia à nossa porta, simplesmente confortávamos. Não temos onde pedir. O irmão que tenho não está em condições de mandar ajuda. Mas agora as coisas têm dado sinais de melhoria, acredito que a situação vai melhorar”, confia.
Até agora, mesmo com o fim do confinamento, ainda não apareceu nenhum trabalho. No entanto, Silvino diz estar esperançoso de que vai aparecer alguma coisa em breve. Isto porque, justifica, já há cimento e outros materiaia para as obras.
“Vim para o Tarrafal com o pouco dinheiro que tinha porque aqui posso ganhar algum. Fico em casa de familiares, se aparecer um trabalho, trabalho e depois regresso à Calheta para cuidar da casa e torno a voltar para o Tarrafal”, menciona.
Silvino Soares Gomes complementa que não tenta a sorte na capital por não ter familiares para o abrigar nem condições para bancar a estadia.
Recorda-se que, inicialmente, o Presidente da República, Jorge Carlos Fonseca, declarou o estado de emergência em todo o país no dia 29 de Março, por um período de 20 dias.
Com as ilhas da Boa Vista e de Santiago a concentrarem a quase totalidade dos casos da doença, Jorge Carlos Fonseca anunciou o prolongamento do estado de emergência nestas duas ilhas, com início às 00h00 do dia 03 de Maio e término às 24h00 do dia 14 de Maio.
Mas, perante o aumento de casos de COVID-19 na cidade da Praia, o estado de emergência foi prolongado até 29 de Maio, apenas na ilha de Santiago.
Com a última actualização dos dados desta terça-feira, 9 de Junho, actualmente Cabo Verde soma 585 casos de COVID-19. A Praia mantém-se como o epicentro da COVID-19 no país ao concentrar 83,5% dos casos. A pandemia do novo coronavírus já causou a morte de pelo menos 406.466 pessoas e infectou mais de 7,1 milhões em todo o mundo desde Dezembro, segundo um balanço da agência AFP baseado em dados oficiais.
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Efeitos psicológicos da ameaça da fome
Em declarações ao Expresso das Ilhas, o psicólogo Nilson Mendes diz que perante uma ameaça de perigo, tendo em conta a situação provocada pela COVID-19, que é um fenómeno que não depende das condições da pessoa, é natural o surgimento do sentimento de medo, ansiedade e pânico nas pessoas.
Para este entrevistado, o confinamento costuma ter consequências mais graves nas pessoas que têm predisposição para desenvolver quadros de depressão, crises de pânico, compulsões, inclinações a vícios e até acessos de raiva.
Perante o pânico, explana este especialista, a pessoa pode ter vários tipos de atitudes ou comportamentos não comuns. Uma dessas atitudes é recorrer a compra de produtos alimentares, mesmo estando sem necessidade ou mesmo tendo um estoque.
“É um efeito baseado no medo. O efeito é o medo que desencadeia e as pessoas recorrem a compras exageradas”, esclarece.
Além disso, a ameaça da fome pode provocar a desarticulação do pensamento e a desarticulação do comportamento.Uma postura de prevenção, prossegue o psicólogo, faz com que as pessoas tenham um “pensamento exagerado”, que é o caso da ansiedade. Atitudes e comportamentos que num enquadramento normal não aconteceria.
Para quem não tem condições de comprar para a prevenção, o medo gera a atitude de prevenção, conforme Nilson Mendes.
“Pessoas com vários membros de família dentro de uma casa, podem reagir abdicando da alimentação para dar outro a membro da família a oportunidade de comer ou alimentar melhor, no caso de crianças”, diz.
Perante isso, explica este psicólogo, sabendo a pessoa que não tem condições, sobretudo económica, para além do pânico, da angústia, poderá ter a sensação de desespero, por se preocupar em como viver, como alimentar-se.
E na Linha 800 11 12...
As autoridades da Saúde receberam, através da linha 800 11 12, cerca de 60 chamadas por semana de pessoas à procura de ajuda com sintomas de ansiedade, medo e pânico, durante o período de confinamento devido à COVID-19.
A afirmação é da especialista em Psicologia, Jacline Freire, em declarações à Inforpress para falar do impacto psicológico da COVID-19 na sociedade cabo-verdiana, com o isolamento, o distanciamento físico, o fecho de escolas e locais de trabalho.
“São desafios que afectam a todos e é natural sentir stress, ansiedade, medo e solidão nesses momentos”, disse a especialista.
Quanto ao impacto psicológico na sociedade cabo-verdiana, adiantou que por falta de dados é-lhe difícil responder à pergunta.
No entanto, sublinhou que pela literatura científica qualquer crise trás consigo “imenso impacto” à saúde mental do ser humano salientando, por outro lado, que as pessoas respondem de diferentres maneiras a esta situação.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 967 de 10 de Junho de 2020.