A pandemia afectou a todas. Mas a umas mais do que a outras

PorSara Almeida,6 mar 2021 9:09

Primeiro foi o medo, a incerteza do que a doença trazia. Logo a seguir, o encerramento do país e o confinamento. Uma situação completamente nova que alterou a arte de malabares das famílias, na conjugação trabalho-casa-estruturas de apoio social. Deu-se, depois, a “abertura” tímida e o retorno de uns a um pouco de “normalidade”. Outros continuam no limbo, à espera que os locais de trabalho reabram. Muitos parados. Demasiados ainda sem rendimento. Homens e mulheres. Elas mais do que eles. E entre elas, umas mais do que outras.

Encafuados em casa, os desafios foram muitos durante o Estado de Emergência e confinamentos. Desde fins de Maio que o país tenta voltar a alguma normalidade, mas ainda longe do que antes era normal. Foi toda uma readaptação que a sociedade em geral teve de fazer, em meio de muitos temores, e com impacto a todos os níveis, em todos os tecidos sociais.

De repente, escolas, creches, empresas fecharam, a reabertura foi gradual e ainda não está completa. Adaptações no uso do tempo, como em tudo o resto continuam a acontecer. E afectam mais as mulheres que continuam a ser (apesar de algumas mudanças) as principais responsáveis pelos cuidados na família.

Os impactos da pandemia nas mulheres e homens ainda estão a ser estudados, de forma sistemática, um pouco por todo o mundo. Em Cabo Verde, um estudo se destaca neste âmbito.

Intitulado “Estudo sobre o impacto da COVID-19 nas Desigualdades de Género”, o estudo encomendado pelo ICIEG, com financiamento do PNUD/UNFPA e realizado pela Afrosondagem, tinha como objectivo conhecer o impacto da covid junto ao sector informal e empregadas domésticas, entre outros.

“Preocupamo-nos com a grande massa e a grande massa é o sector informal”, explica Rosana Almeida, presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG).

Contudo o estudo foi além deste sector, contemplando, além da revisão da bibliográfica, entrevistas e focus groups nas camadas que se pretendia analisar (sector informal, empregadas domésticas, profissionais de saúde, etc), um inquérito a mil maiores de 18 anos, que permitiu uma leitura global da situação.

Essa visão da sociedade em geral, explica Deolinda Reis, da Afrosondagem, e uma das autoras do estudo, permitiu comparar e “medir” o impacto em relação à camada que era o objectivo do estudo.

“Ou seja, fizemos duas amostras: aquelas que eram o objectivo do estudo e aquelas de outros sectores, para podermos comparar o impacto dos outros sectores que são menos vulneráveis”.

Na altura da sua realização, Julho de 2020, já o estado de emergência tinha sido levantado, já 81% dos inquiridos tinham regressado ao trabalho presencial. Menos mulheres (77%) o tinham feito do que homens (85%).

Em termos de horas de trabalho, a maioria, tanto de homens como das mulheres, considera que estas se mantiveram, ou diminuíram. Contudo, há uma grande discrepância entre os sexos quando o caso é o aumento das horas laborais. Enquanto apenas 8% dos homens dizem que o número de horas aumentou, a percentagem quase dobra nas inquiridas (14%).

Homens mais participativos

Na verdade, o extenso estudo conclui que as medidas adoptadas para conter a pandemia, “afectam a homens e mulheres de maneira diferente, aprofundando desigualdades pré-existentes”.

Algo a destacar é o trabalho não renumerado (TNR), que aumentou substancialmente, seja nas tarefas domésticas básicas, seja nos cuidados das crianças e apoio nas tarefas escolares, tendo em conta o encerramento de escolas e creches. E se já antes da COVID-19 havia aqui um fosso de género este agora agudizou-se, principalmente no mundo rural. De facto, foram as mulheres quem sofreu um aumento na carga de TNR durante a pandemia e a chamada dupla jornada (uma remunerada e outra não) as quais agora se solapam.

“A mulher, que é pobre do tempo, passou a ser cada vez mais pobre”, lamenta Rosana Almeida.

Uma boa notícia, porém, é que os homens (urbanos] participam agora mais nessas actividades não renumeradas, comparativamente a um estudo realizado em 2012 pelo INE sobre o uso do tempo.

“Foi uma surpresa, mas houve um equilíbrio da distribuição das tarefas domésticas durante a quarentena”, aponta Deolinda Reis. Contudo, não é possível afirmar se essa maior participação dos homens urbanos se relaciona somente com o confinamento, ou com alguma evolução da sociedade.

Um estudo teria de ser feito em período de não confinamento para o confirmar e ver se essa maior participação perdura, alerta a técnica.

Olhando os tipos de actividades, e embora o aumento do TRN durante a pandemia tenha sido significativo para ambos os sexos, no geral, é no cuidado a crianças e seu acompanhamento escolar que se nota uma maior participação masculina. Por exemplo, enquanto antes do confinamento apenas 7% dos homens dizia cuidar das crianças, esse número aumentou para 47% no período em causa. Destaca que também a “limpeza, cozinha e lavar roupa”, onde o número de homens que realizam estas tarefas também aumentou exponencialmente.

“Nesse sentido, uma das questões mais interessantes que reparamos, é que há uma relação clara entre permanecer mais tempo em casa e fazer mais tarefas”, analisa. Ou seja, quanto mais tempo em casa, mais os homens participam no TNR”, aponta Isis Labrunie, técnica de género e uma das autoras do estudo

Contudo, é preciso relembrar, que são elas sim, as mais assolapadas. E, sobrecarregadas, em termos de saúde mental são também elas quem mais sentem os efeitos psicológicos de viver em pandemia. Embora o estudo não tenha incidido muito sobre esta vertente, são as mulheres quem, com mais frequência se sente “ansiosa ou agitada ou triste, devido ao contexto”.

Teletrabalho

Cozinhar com o computador ao lado; ser interrompido/a pelo filho que chora durante a reunião no zoom; passar a ferro enquanto se lê aquele mail da chefia… Homens e mulheres (principalmente elas, como já vimos) tiveram de se fracturar e “vestir” simultaneamente com vários papéis.

De facto, tal como aconteceu com o TNR, uma das grandes mudanças trazidas pela pandemia foi a forma como o trabalho remunerado é realizado. Conforme o inquérito, mesmo após o regresso ao trabalho presencial, “regista-se uma expansão exponencial do regime de teletrabalho”.

Foi algo “nunca antes visto no contexto de Cabo Verde, com consequências negativas, mas também positivas”, comenta Isis Labrunie.

Durante o estudo, muitas mulheres descreveram situações semelhantes à acima descrita. “Comentavam que estavam fazendo trabalho NR e remunerado ao mesmo tempo. Quer dizer, está em casa teletrabalhando, mas ao mesmo tempo está fazendo as tarefas de casa, cuidando das crianças, o qual acaba tendo um impacto negativo nos dois âmbitos. Não dá para se concentrar 100% no trabalho, não dá para tomar conta das crianças ou pessoas dependentes e acaba sendo uma fonte de stress adicional”.

Na pandemia, aponta o estudo, são inclusive as mulheres em regime exclusivo de teletrabalho as que têm sentido um maior aumento dos trabalhos domésticos (seguidas pelas mulheres em regime de layoff e, depois, pelos homens em regime integral de teletrabalho).

Porém, nem tudo é negativo “o teletrabalho poderia ser uma ferramenta promotora da igualdade, até pela questão de ao permanecer mais tempo no espaço doméstico, as pessoas assumirem mais tarefas”.

“A priori, poderia ser até uma forma de facilitar a conciliação” trabalho-casa”, mas na prática, reconhece a técnica, acontece o contrário uma vez que não está claramente definida, por exemplo, a questão do direito ao descanso.

Deste modo, este regime acaba por ser negativo. “Acaba invadindo o espaço doméstico também”, aponta.

Mas se “existisse uma legislação que impedisse que isso acontecesse, em que ficassem definidos os horários, direito a desconectar, por exemplo, poderia ser uma ferramenta positiva”. Desde que haja, claro, um esforço legislativo que tome em conta a sobrecarga das mulheres.

Este regime, considera por seu turno Rosana Almeida, deve essencialmente ser aproveitado para melhor conciliação do trabalho com as necessidades do trabalhador, nomeadamente quando este tem pessoas a seu cargo ou problemas de saúde.

O teletrabalho, já contemplado por lei, deve pois ser legislado mais convenientemente, aproveitando-se o que de bom tem, e minimizando o negativo. A sua melhor legislação é aliás, uma recomendação, do estudo.

Cuidados

Seja como for, o impacto da pandemia podia ter sido pior.

Havia trabalho feito já antes da pandemia. “A covid encontrou-nos com um sistema de cuidados a funcionar”, destaca a presidente do ICIEG, Rosana Almeida.

O Plano Nacional de Cuidados, implementado pelo Ministério da Inclusão Social desde 2017/18, e que engloba vários parceiros, entre os quais o ICIEG, veio assumir essa área de cuidados como uma responsabilidade pública e não do foro familiar. Resultado: entre vários ganhos transversais, o apoio à mulher (responsável segundo o estudo de 2012, do INE, por 72% do tempo despendido nos cuidados) e, consequentemente, a melhoria da sua vida e dos seus.

“É uma forma de empoderar as mulheres “, resume a presidente do ICIEG.

Um apoio que, embora abalado pelas medidas contra a covid, continua a funcionar e a expandir-se, e do qual Cabo Verde se deve congratular, avalia.

Podia ter sido pior. Mas seja como for houve um impacto. O encerramento das escolas (não estão contempladas no plano), por exemplo, teve um impacto imenso nas famílias. Mais numas mais do que em outras.

E é no cuidado a estas crianças que se observam enormes fossos entre as mulheres de diferentes rendimentos. Se já antes, os havia, pioraram. Porque, como aponta Isis LaBrunie, se quem tem capacidade económica contrata outras pessoas para cuidar dos filhos, quem não tem e depende das estruturas públicas fica desamparada.

“Isso já acontecia com escolas funcionando no horário completo. Crianças que passam muitas horas desacompanhadas, que cuidam de outras crianças, tudo isso são problemáticas que aumentam, o que têm consequências para a sua saúde e segurança”.

Essa problemática relacionada com os rendimentos, aliás, também se espelha na maior ou menos facilidade em conciliar trabalho e vida familiar. Assim, no estudo, se no geral cerca de metade das pessoas diz que estava a ter dificuldade nesse aspecto (e aqui mais os homens do que as mulheres, eventualmente por estas já estarem habituadas a essa conciliação), se se fizer uma distinção por renda aferida, há diferenças.

“Nos agregados familiares com rendimento inferior a 5 mil escudos, 7 de cada 10 mulheres dizem que estão tendo dificuldades”, observa Ísis Labrunie.

O curioso é “que nesses agregados, só 34 % dos homens dizem estar tendo dificuldades”.

“Classe e género tem de ser analisados de forma conjunta e é exactamente isso que o estudo tenta fazer, cruzar, para podermos ver quais os colectivos que estão tendo mais dificuldades. E neste caso são concretamente a mulheres, as mulheres mais pobres”, sublinha.

Assim, e conforme apontam as recomendações do estudo qualquer abordagem a tomar deve ser diferenciada e “interseccional”.

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Trabalhadores domésticos

Meses de pesadelo

Há um dado no “Estudo sobre o impacto da COVID-19 nas Desigualdades de Género”, que não deixa margem para dúvidas. Durante o período de confinamento, quase metade dos trabalhadores domésticos ficaram, pelo menos uma vez, sem alimentos suficientes. Isso mostra o impacto junto a este sector, amplamente representado pelas empregadas domésticas.

Várias foram as empregadas domésticas que viram a vida suspensa durante o confinamento. Muitas voltaram ao trabalho, mas nem todas receberam os meses parados ou quaisquer rendimentos, nomeadamente os previstos nas medidas de protecção social (como o Rendimento Solidário).

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Voltando ao estudo, 88% dos trabalhadores domésticos (que engloba empregadas domésticas, seguranças, etc) ficaram pelo menos uma vez sem rendimentos em dinheiro. 47%, sem comida…

Rosana Almeida recorda que quando, no estado de emergência se observou que os patrões não estavam a pagar às suas empregadas domésticas (que são 94% dos trabalhadores domésticos), houve uma intervenção. O governo estipulou, no seguimento, que quem estivesse a receber o salário (nomeadamente os trabalhadores da função pública), também era obrigado a pagar o da sua empregada. Trabalhadores que não tivessem contrato, iriam receber o apoio solidário de 10 mil escudos. (Subsídio de desemprego, como se sabe, não abrange o regime das empregadas domésticas).

Apesar das medidas e decretos para proteger esta camada, a verdade, aponta por seu lado Deolinda Reis, uma das autoras do estudo, “não houve fiscalização nenhuma. Como sabemos, há fragilidades, há muitas leis, sim, mas não há fiscalização. Muitas vezes também não há denúncias porque essas pessoas têm medo de perder o emprego”. E, acrescenta, o que se aferiu na covid é que pagar ou não pagar “dependia mais da consciência das pessoas”.

Não, não estamos no mesmo barco. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1005 de 3 de Março de 2021.

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Autoria:Sara Almeida,6 mar 2021 9:09

Editado porDulcina Mendes  em  4 dez 2021 23:21

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