Rosério Rodrigues produz, entre outros produtos, café. Os seus avós já o faziam, os seus pais também. Seguiu-se ele. “Além de ser produtor por herança comprei a propriedade de café”, conta. Agora com 76 anos e juntamente com a sua esposa, dona Noca, continua teimosamente a produção. A geração seguinte, a dos seus filhos, já seguiu outros rumos pelo que não deverá manter a “tradição”. Aliás, o próprio senhor Rosério, que exerceu outras profissões durante a sua vida, incluindo fora do seu Fogo natal, se voltasse atrás no tempo, provavelmente não investiria no café.
“Há pessoas que pensam que estamos a ganhar muito dinheiro, mas não é verdade”. Ganharia mais, por exemplo, no comércio, acredita este produtor de Mosteiros.
O próprio nome “Ka-fé”, levado “à letra” em língua cabo-verdiana, mostra a necessidade de nesta área ser necessário fé, brinca. “Não se deve perder a fé”.
Fé, por exemplo, de que chova. E chova diligentemente…
Ka chuva
“A colheita tem sido cada vez mais baixa, pela falta de chuva. O café é como as pessoas. Podem comer bastante num dia, mas se não acharem o que comer no dia seguinte, acabam por sofrer. E a chuva tem caído irregularmente no nosso país, infelizmente. Cada vez menos. Quando chove em quantidade grande, depois passam meses sem chover”, lamenta Rosério Rodrigues.
O problema das chuvas, ou a falta delas, como se sabe não é de hoje. Como relembra o engenheiro Joaquim Sabino, havia boa produção do café nas décadas 30, 40… A partir de 60 a produção decaiu com as secas prolongadas. Foi havendo alguns ciclos melhores, mas heis-nos de novo em período de seca e em meio de alterações climáticas que preocupam.
Houve dias, pois, bem melhores. Um ano, recorda Rosério Rodrigues, só da sua parte (também “há a parte dos meus pais”) conseguiu colher 2 toneladas de café. “Agora a produção tem sido cada vez menos, a quinta, sexta parte do que apanhava...”
E por muitas iniciativas que se possam (e provavelmente devam ter) para se aumentar a produção, a verdade é que, como refere o engenheiro Joaquim Silva que é um estudioso do café e trabalhou na área no Brasil e Timor-Leste, “as condições climáticas não estão a ajudar…”
Complicado também é usufruir, neste tipo de cultivo, de outras técnicas para rega. Por exemplo, a dessalinização da água do mar. É que o café, de boa qualidade, que é produzido em Cabo Verde (o arábica), gozando do seu clima ameno e altitude de algumas ilhas, deve ser produzido em zonas altas, de 600 m a 1000, de preferência. É nos microclimas daí que encontra o seu habitat. Levar lá a água é tarefa que desmotiva… E vários outros problemas se elencam, pois todas as tecnologias podem ser complicadas quando a natureza não ajuda.
Salva-se o orvalho e a humidade, que vão nutrindo os cafeeiros em Mosteiros...
Ka mão-de-obra
Artur Barbosa é outro produtor de café dos Mosteiros (Fogo). Este ano, diz, parece que em certas zonas a produção não foi má, mas em outras, não há quase nada.
Parece, porque o senhor Artur, que é considerado de “risco” perante a pandemia de covid-19, não tem andado no terreno, e fala mediante a sua própria produção.
Mas no cômputo geral, também ele se queixa que a produção de café está “só a decrescer”.
“Não há chuva, não havendo chuva...” A prece cabo-verdiana perdura no tempo.
A sua visão não é positiva. “Se continuarmos assim, o café não vai ter futuro em Cabo Verde”, vaticina. E o problema não é só a chuva. É que também, como aponta, não há mão-de-obra.
“Costumava fazer a colheita de café com 30 pessoas, agora – também não há café, de qualquer maneira – mas temos 3, 4 pessoas por dia”.
Muitos emigram, muitos não querem este trabalho que no seu entender é impossível substituir por máquinas.
Também o senhor Rosério fala da falta de mão-de-obra. “Há poucas pessoas à procura destes trabalhos” e as que há, pedem um “preço exorbitante que não estimula o produtor”.
“O produtor tira aquilo que dá proveito”, observa. Assim, com pouca gente para contratar, são também essencialmente ele e sua esposa quem faz tudo, incluindo o tratamento do café que produz e daquele que compra.
“O café tem muito trabalho”, diz. Depois da colheita, é preciso secar o café. Nesse processo, o café tem de ser voltado, para que a secagem seja uniforme. É preciso colher também folhas e paus. Depois faz-se a debulha. E neste processo o peso já está a cerca de um quarto.
“Na secagem perde metade do peso, que é agua e depois da debulha, perde outra metade que é casca”.
Alguns produtores vendem a baga verde, fazendo dinheiro mais rápido. Nos Mosteiros, grande parte dos que vendem, fazem-no à Fogo Coffee Spirit que exporta nomeadamente para os EUA (tinha inclusive contrato com a gigante Starbucks). Outros até gostariam de vender, mas a safra é muito pouca.
É simples, muitas vezes não se vende, porque não há para vender. E o negócio decresce…
Renovar?
Há muito que o café se cultiva em Cabo Verde. Fogo, onde a região montanhosa dos Mosteiros é a principal fonte produtiva, não foi das primeiras ilhas onde foi implementado. Mesmo assim terá quase cerca de 200 anos.
A velhice das plantas é apontada pelos técnicos como um dos motivos para a fraca produção. E é um problema que não vem de hoje.
Quando Joaquim Silva trabalhou no Fogo, de 1978 a 1985, chegou a estar na mesa a proposta de renovação. O feedback não foi bom. As pessoas tinham medo.
“Preferiram apanhar pouco, a ter de mexer no café. Tinham medo também, porque em Cabo Verde começou a chover pouco”, e renovar com pouca chuva não é fácil. E as pessoas também não tinham condições financeiras, recorda o engenheiro. Alguma renovação foi sendo feita, emaranhadamente, não seguindo o método aconselhável. Mais tarde lá se fez mais alguma…
Mas o medo de renovar mantém-se. “Como se vai renovar as plantas, se não há chuva?”, questiona Artur Barbosa. “É um problema grave, três anos de seca consecutiva”.
Embora os técnicos defendam pois que as plantas, a determinada altura, devem ser substituídas, Rosério Rodrigues tem outro ponto de vista. “Não é a minha ideia, porque um cafeeiro [antigo], que tem raízes já profundas, consegue alimentar-se lá na profundidade da terra. Há cada vez menos água e um cafeeiro novo acaba por secar, as raízes acabam por secar, nunca mais voltam a ter café.”
Assim, “a não ser que a natureza mude, para que possamos ter cafeeiros novos”, estes devem ser plantados apenas nos lugares vagos, onde não há cafeeiros, defende.
Santo Antão
Hoje o Fogo é o principal e mais famoso produtor de café no país.
Mas “em 1835 as estatísticas de produção de café em Cabo Verde diziam que Santo Antão produzia 22 mil arrobas de café, café já limpo, enquanto o Fogo produzia só 4 mil arrobas”. A documentação sobre o café em Cabo Verde é pouca, mas entre a que existe Joaquim Silva descobriu isso.
Ainda na época colonial, tanto os cafecultores do Fogo como os de Santo Antão, faziam a colheita e vendiam-na em Portugal. A viagem da venda do afamado produto, servia igualmente para as férias.
Mas Santo Antão, por vários motivos, nomeadamente a procura de culturas de retorno mais rápido, deixou cair a produção...
No Fogo todos os cultivos de café são de sequeiro. Na zona de Santa Isabel (Paúl), em Santo Antão igual, mas a ilha tem também cultivo de regadio.
Nessa zona, encontramos a Associação Comunitária de agricultores e criadores de gado de Santa Isabel – AMI SANTA ISABEL.
Benvindo Melo, presidente da mesma, aponta a seca como um dos dois motivos para a decadência do café na ilha. A outra é que “os proprietários não deram a devida atenção aos seus cafeeiros”.
Assim, a produção de café em Santo Antão decaiu muito, desde há décadas, e acentuadamente nestes anos de seca. Mas continua a ser feita e novas formas de dinamizar os produtos pensadas.
Está a ser criada, por exemplo, a Rota do café de Santa Isabel, uma iniciativa da AMI Santa Isabel que visa criar actividades geradoras de rendimentos, pelo aproveitamento da produção de café e paisagem dos cafeeiros. Visa-se, entre outros, a criação de “um núcleo etnográfico de acolhimento e interpretação da história do café e da comunidade, com esplanada para acolher, servir refeições e ser o meeting point de Santa Isabel”, refere uma nota do projecto a que o Expressi das Ilhas teve acesso.
O projecto, como conta Benvindo Melo, ainda não está em funcionamento, devido a constrangimentos provocados pela pandemia, mas deverá abrir em breve. Nesse projecto, diz, vai-se fazer de tudo um pouco, desde a divulgação da produção, a derivados do café para venda.
Entretanto, sobre a colheita Benvindo Melo avança que este ano a produção de café foi “razoável” em muitas zonas, e a colheita ainda continua a ser feita por alguns proprietários.
5 em 9
“Cabo Verde tem uma arábica que tem em termos de qualidades organoléptica [propriedade que impressiona um ou mais sentidos] é comparado ao café do Brasil. da Colômbia ou Timor-leste, e outros cafés famosos”, aponta o engenheiro Joaquim Silva.
E nem só no Fogo e Santo Antão se reúnem as condições (clima, altitude, etc.) propícios à sua produção. Na verdade, também São Nicolau produz bom café arábica. E Santiago, no interior. E ainda Brava, embora pouco.
Contabilizando: “produzimos café em 5 ilhas, das 9 ilhas habitadas”.
Mas vale a pena investir? Regressando ao Fogo. Apesar das vicissitudes, para Rosério Rogério, que vende o seu café a uma casa comercial conhecida, o café ainda é uma boa aposta. “É uma forma de receita de Cabo Verde” que deve ser acarinhada.
Mas, alerta pragmático: é importante investir em mais áreas: “Quando uma falha a outra compensa. A soma das receitas é que dá para viver”, refere.
Joaquim Silva vê também a decadência do café. Mas acredita que um esforço a vários níveis deve ser feito. “Tem que se tentar, porque o café é um produto de alto valor acrescentado”, sublinha. “E deve-se aproveitar as zonas onde climaticamente o café” se dá bem.
Assim, não acreditando que a exportação em larga escala seja factível, o intuito é mais no sentido da qualidade, do que propriamente do aumento da produção.
“Não temos capacidade já para fazer isso por causa das mudanças climáticas”. Aliás, para o técnico, as secas dos últimos anos “é um mau pronúncio para resgatar o nosso café...”
Exportação, para a maior parte dos produtores, parece algo distante. “Neste momento, não há nem para Cabo Verde, quanto mais para exportar... vai de mal a pior”, lamenta, por seu turno, Artur Barbosa.
O lado depois da colheita
Colhida a baga do café, muito mais há ainda a fazer antes de este ser um produto consumível. Assim, o negócio do café vai muito além da produção. Na Torrefactora de Santiago (que detém a marca Cafés de Cabo Verde), depois de comprada a matéria-prima, é feito, nacionalmente, todo o processo que permite levar o produto às mesas, da torra à embalagem.
A maioria das bagas com que trabalham é importada do Brasil, Vietname, Honduras e Uganda. Seria impossível, aliás, operar só com a produção nacional. “Para o café que vendemos não chega, não há produção nacional que chegue”, conta Joaquim Farinha. Além disso, para, por exemplo, o café de máquina, não poderia ser usado só um tipo de baga. Tem de haver mistura para dar consistência ao café.
Mas a empresa, cuja produção é de momento para consumo nacional, tem também café do Fogo, que compra aos produtores daquela ilha. E este é um produto especial. Feito sem mistura com outras origens e em pouca quantidade. Aliás, “às vezes quando queremos comprar e não há, temos de esperar”, diz o responsável.
Entretanto, ao contrário dos produtores que vendendo essencialmente para o mercado nacional pouco sofreram com a pandemia, a Cafés de Cabo Verde sentiu um impacto imenso em termos de vendas.
“Não havia cafés nem hotéis abertos, deixou-se de vender o café em grão”. Basicamente vendia-se o moído, para supermercados.
E durante cerca de seis meses produziram menos de metade do que era produção normal. Agora, conta, já esta a ser retomada “mais ou menos”, a produção de 2019.
O impacto financeiro foi grande, mas já se começa a notar a recuperação, “desde que abriu a restauração e os cafés, etc.” Aguardam agora a abertura de hotéis, principalmente no Sal. Na Praia, em termos de hotéis, ainda se está a cerca de 20% do normal.
Já o referido café do Fogo está parado. Como “não há turismo, o café do Fogo praticamente não se vende”. É que este produto mais caro e específico, é essencialmente voltado para os turistas. Quase um souvenir. Um pedaço de Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1011 de 14 de Abril de 2021.