O ritual repete-se. Quando a meteorologia anuncia chuva, os cabo-verdianos olham para o céu à espera de a ver cair. Num país fustigado pela seca crónica e cíclica, que chova na conta certa é o desejo de todos.
Depois da primeira precipitação do ano, renovam-se esperanças, mas mantêm-se receios. Se a expectativa de um bom ano agrícola não se concretizar, e a meio de uma pandemia, a situação pode tornar-se ainda mais crítica.
No terreno, nas principais ilhas agrícolas, os trabalhos já começaram. Em Santiago, por exemplo, o chão está pronto para a sementeira e o presidente da Federação dos Agricultores e Pecuários de Santa Cruz, Cesário Varela, está confiante.
“Para este ano, perspectivamos um bom ano agrícola e pecuário. Reparámos que muitos agricultores já preparam os seus campos, fazendo as tradicionais queimadas. Já começam a preparar as sementes”, acredita.
A situação actual é preocupante, depois de três anos de escassez de água. Diz a sabedoria popular que a sete anos de chuva seguem-se três de seca. Se assim for, então este ano acaba o tormento. Se não, Cesário antecipa problemas sérios para as famílias do meio rural.
“As famílias rurais têm, neste momento, grandes dificuldades de sobrevivência e a falta de chuva para a prática agrícola implicaria problemas socioeconómicos, para não dizer problemas de segurança alimentar”, vaticina.
A Organização Meteorológica Mundial antecipa a possibilidade de “chuva acima da média”, com fluxos globais superiores ao padrão para a região do Sahel.
O clima regional é dominado pelas monções da África Ocidental durante a estação das chuvas, tipicamente durante o Verão no hemisfério Norte, de Julho a Setembro.
“Miséria profunda”
Também em Santo Antão as gentes do campo começaram a preparar a terra, procurando contrariar a aridez natural.
O presidente da Associação dos Agricultores e Produtores Agro-industriais da ilha mais a Norte, António Carente Pires, anseia por azáguas em quantidade suficiente para reforçar nascentes e lençóis freáticos. O líder associativo fala numa “situação de miséria” nas zonas altas.
“A esperança dos agricultores só se renova com a queda das chuvas. Já se começou a fazer alguma sementeira, a ‘arrumar’ as terras para o cultivo. Os agricultores estão ansiosos que o Ministério da Agricultura faça a distribuição de algumas sementes. Já não há sementes nos mercados. A esperança é que o governo adquira sementes de qualidade para pôr à disposição dos agricultores. Esperemos que seja rápido”, apela.
“Se não chover, será totalmente desnorteante para os agricultores. Já há uma situação de miséria profunda nas zonas altas, onde se vive praticamente da agricultura de sequeiro e pecuária”, alerta.
O ministério da Agricultura e Ambiente, através da directora-geral da Agricultura, Silvicultura e Pecuária, Eneida Silva, garante já estar no terreno para permitir uma boa campanha. Os produtores terão oportunidade de adquirir sementes e plantas a custo reduzido.
“Vamos vender a um preço simbólico, um preço muito baixo, para que todos tenham a possibilidade de adquirir. Estamos a comprar sementes aos agricultores que tiveram produção no ano passado e a vender a um preço muito simbólico para todo o território nacional”, esclarece.
“Também temos plantas, estacas de batata-doce e mandioca, sementes forrageiras e, nos nossos viveiros, estamos também a fazer plantas de feijão congo. Assim, o agricultor pode comprar sementes ou a planta e ganha alguns dias”, complementa.
Chuva ou “desgraça geral”
No Fogo, os trabalhos de preparação para as culturas de sequeiro estão em fases distintas, mais avançados na zona Norte.
Manuel Gomes, da direcção da Associação dos Agricultores e Criadores de São Filipe e Santa Catarina, avisa que, se a chuva não cair, e perante a pandemia de covid-19, vêm aí tempos “desastrosos”.
“Uma desgraça geral. Contando três anos consecutivos de produção nula em termos de agricultura, forrageiras e vegetação herbácea para alimentação de animais. Se não chover, os animais vão desaparecer completamente”, sentencia.
Manuel Mendonça subscreve. Este agricultor no Maio diz que só a chuva pode resolver o grave problema de pasto e água para rega.
“Se voltar a não chover, a perspectiva é de um ano zero. Não há solução. Se tivessem feito exploração de furos ou a resolução de outras situações, a perspectiva seria melhor. Mas se a chuva voltar a não cair, Deus livre, a situação será caótica. Os animais não aguentam mais”, desabafa.
Em São Nicolau os campos de cultivo estão a ser limpos e, nalguns deles, a sementeira já começou. O agricultor e criador Carlos Andrade espera que se cumpra a previsão de “chuva acima do normal”.
“Esperamos que este seja um ano de chuva, porque passámos três anos de seca, o que dificultou o exercício da nossa actividade. Se chover, vamos melhorar o nosso efectivo pecuário, a nossa produção e contribuir também para o sustento de muitas famílias. As parcelas agrícolas estão limpas e nas zonas altas o pessoal já começou a sementeira”, revela.
Resiliência
Cabo Verde vive um período de três anos de seca, com muito pouca precipitação. A tutela estimou em 10 milhões de euros o valor das necessidades financeiras para fazer face aos impactos dos sucessivos maus anos agrícolas.
As expectativas para 2020 são boas, mas a natureza é incerta. Se a meteorologia não permitir contrariar o solo estéril, o governo será obrigado a reforçar o programa emergencial.
“Estamos cada vez mais cientes de que temos que deixar de pensar somente nas chuvas, começar a pensar noutras formas de funcionar, sem estar sempre a olhar para o céu”, reforça a directora-geral da Agricultura, Silvicultura e Pecuária.
A aposta política passa pelo reforço da resiliência, com a mobilização de água de outras fontes. A dessalinização e o aproveitamento de águas residuais são dois caminhos a seguir.
“Estamos na fase final de um projecto-piloto de dessalinização de água salobra para agricultura e estamos com um projecto-piloto para utilização segura de águas residuais tratadas. São questões que temos que acelerar, mesmo que venha a chover. Isso vem também com o desenvolvimento da investigação, introdução de novas espécies e variedades mais adaptáveis às condições climáticas”, exemplifica.
Em Maio, o Primeiro-Ministro anunciou no parlamento investimentos para a instalação de novas dessalinizadoras em várias localidades de Santiago, Maio, Brava e Boa Vista. Foi também anunciado o reforço da distribuição de água potável às zonas altas de Santiago. O objectivo é permitir maior previsibilidade, tornando o sector primário mais sustentável.
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Combate às pragas
Com as chuvas, chegam também as preocupações com as possíveis pragas, capazes de afectar a produção agrícola. A directora-geral da Agricultura, Silvicultura e Pecuária, Eneida Silva, explica que a tutela já disponibilizou pesticidas e outros equipamentos. Foram formados aplicadores destes produtos químicos.
“No caso de aparecerem ataques das pragas na parcela dos agricultores, não é da nossa responsabilidade, mas o ministério fornecerá pesticidas e preparará as caldas, para fazerem o tratamento dentro das suas parcelas”, afirma.
“A nível das áreas florestais e das áreas de pastagem, nesse caso, o tratamento será feito pelo Ministério da Agricultura”, acrescenta.
Em 2019, Cabo Verde foi afectado por uma praga de gafanhotos que, em vários casos, destruiu a quase totalidade da produção, já reduzida pela situação de seca.
Desde 2017, o país também tem sem sido afectado por uma praga de lagarta do cartucho-de-milho.
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Preparação para a época das chuvas
Com o início da época das chuvas, acelera-se o passo para que os riscos para a população sejam minorados. O presidente do Serviço Nacional da Protecção Civil e Bombeiros,capitão Renaldo Rodrigues, reconhece que os meios continuam a ser escassos, mas afiança que os preparativos decorrem normalmente. “Têm decorrido várias acções, visitas a pontos críticos, desobstrução de zonas de escoamento de água, visitas a bairros considerados de alto risco. No ano transacto, tivemos uma abordagem diferente, acabámos por reunir com todas as câmaras e enviámos directores do serviço para Santo Antão, Boa Vista e Brava,para apoiar nos trabalhos. Este ano, devido à pandemia, não foi possível fazer essa abordagem, mas enviámos as recomendações”, observa. O responsável da Protecção Civil apela à população a que esteja vigilante e que avise as autoridades caso detecte situações que possam colocar em perigo a comunidade.
*com Fretson Rocha
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 972 de 15 de Julho de 2020.