Passou-se um ano desde as últimas eleições autárquicas. Qual é a situação actual dos municípios cabo-verdianos?
A situação dos municípios é semelhante ao que o país vive, de uma forma geral. Estamos num momento muito exigente, difícil e perante enormes desafios e constrangimentos provocados pela pandemia da covid-19 que provocaram alterações em todos os planos, metas e objectivos nacionais e locais. As autarquias foram duramente afectadas e penalizadas pelas perdas das receitas fiscais que o país sofreu, pela paralisação do turismo, pelo confinamento que o país conheceu e, de uma forma geral, pela dura recessão económica que estamos a enfrentar. Sendo poder mais próximo das pessoas, mais expostos aos desafios e constrangimentos que as pessoas passam no dia-a-dia, vimos reduzida a nossa capacidade de acudir as famílias, de continuar os investimentos que estavam em curso e programados e que estavam a constituir uma lufada de ar fresco nas economias das ilhas e dos municípios. [Antes da pandemia] Estávamos numa numa trajectória ascendente a todos os níveis até 2019. Investimentos estavam a acontecer em todos os municípios e ilhas nos domínios da habitação, água, energia, requalificação urbana e ambiental, requalificação das orlas marítimas, desencravamento de localidades, com investimentos privados e dos emigrantes importantes para a dinamização do comércio local em todos os municípios. Com os investimentos em curso na altura, todos os municípios viram a sua competitividade melhorar. Estava a acontecer uma alteração muito positiva em todas as ilhas, que resultaram na melhoria da qualidade de vida e na redução da pobreza extrema e da pobreza absoluta. Por exemplo, a pobreza absoluta viu uma redução de 9.4 pontos percentuais de 2016 a 2019, algo inédito em Cabo Verde em tão curto espaço de tempo. Esta conquista só foi possível porque existe uma grande parceria entre o governo e as câmaras em vários domínios, desde a infraestruturação dos territórios à promoção e inclusão social. Entretanto, a pandemia da covid alterou tudo, algo que ninguém esperava e que veio colocar a todos nós o maior desafio das nossas vidas. Cabo Verde está a fazer um bom combate, o Governo, os profissionais de saúde e todos os envolvidos neste processo estão de parabéns, e estamos a reerguer-nos novamente apesar das incertezas que pairam ainda sobre o futuro, face à nossa forte dependência do exterior e das dinâmicas da economia internacional. As câmaras municipais foram fortemente impactadas pela perda de receitas decorrentes com a paralisação num primeiro momento das actividades económicas e num segundo momento com a diminuição das actividades económicas. Os municípios em grande maioria dependem do engajamento e dos investimentos da sua diáspora, que investe fortemente na construção civil e imobiliária, e agora nas outras áreas como o turismo, agricultura e na pequena indústria e serviços.
Financeiramente os municípios continuam muito dependentes do Estado central. Como se pode mudar este cenário?
Todos os municípios do país continuam fortemente dependentes das transferências directas do tesouro, ou seja, do Estado. Antes da pandemia, houve alterações substanciais através de uma atitude louvável do governo que decidiu aumentar gradualmente o FFM, e transferir vários fundos (Ambiente, Turismo, PRRA, Rodoviário, descriminação positiva), transferência de competências nas áreas de inclusão social, família, educação e agricultura (para as que não têm delegações do MAA) que permitiram melhorar a capacidade de intervenção junto das famílias e de investimentos na melhoria da competitividade, atractividade e resiliência dos municípios, bem como na redução das desigualdades e da pobreza. Entretanto, a covid veio e anulou tudo. Aliás, em alguns casos as dificuldades aumentaram e as fragilidades estão patentes. Há municípios com dificuldades na transferência das retenções feitas do INPS e do IUP. As receitas correntes reduziram-se drasticamente e as responsabilidades de cada um dos municípios e munícipes mantiveram-se inalteradas. Daí que para nós é importante e urgente uma reforma do poder local para aprofundar a descentralização, para garantir um novo regime financeiro para os municípios e ainda a reforma da lei do IUP, entre outros diplomas, que permitam aumentar a autonomia financeira dos municípios e melhorar a capacidade de intervenção das mesmas. A par disso, os municípios devem empenhar-se na modernização administrativa e no reforço institucional através de uma aposta forte no digital por forma a facilitar a vida aos cidadãos, empresas e investidores, melhorar a proximidade junto da nossa diáspora, melhorar a exposição das potencialidades endógenas junto de potencias investidores, facilitar o pagamento dos serviços e o acesso a qualquer informação sobre o município, bem assim o contacto com todos os servidores públicos. Um outro constrangimento que é urgente resolver é o acesso aos terrenos para planificação das novas áreas de expansão nos territórios e a resolução das pendências e conflitos fundiários que praticamente existem em todos os lados. Estes constituem um grande constrangimento à dinamização da economia local.
O PRRA foi um programa importante no combate ao desemprego. Que avaliação faz de programas como este?
O PRRA foi o maior programa de luta contra pobreza e dinamização da economia local erguida em Cabo Verde. Actua em várias frentes impactando positivamente as empresas, famílias e o território. Da habitação ao emprego.
Muitos municípios enfrentam dificuldades no que respeita a sectores como o emprego, habitação, saúde, ambiente. O que está a ser feito para alterar este cenário?
Estamos num processo de retoma gradual. O empréstimo obrigacionista lançado pela ANMCV no valor de 920.000 contos, os projectos financiados pelo fundo de descentralização para todos os municípios com o PEMDS aprovado, a assinatura dos contratos programas no quadro fundo do ambiente vão trazer um novo alento, sendo que a retoma será gradual. Há ainda um novo PRRA, muito mais forte e estruturante em preparação que será financiado pelo Banco Mundial e que irá mudar o habitat no país para algo nunca visto.
Como combater as assimetrias que existem entre os municípios?
A aposta deve ser na retoma do caminho que estávamos a construir juntos desde 2016 e que em 2019 já estava em velocidade cruzeiro. A maioria dos municípios já possui os seus planos estratégicos aprovados em marcha quanto à execução dos projectos. Com as medidas que constam do Programa do Governo, aliados aos documentos estratégicos municipais, a ambição Cabo Verde 2030, estou seguro que vamos alcançar a concretização dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável e garantir um país desenvolvido para as próximas gerações.
Que papel pode ter a ANMCV neste nivelar das diferenças entre os diferentes concelhos de Cabo Verde?
Somos o sindicato dos municípios. O nosso papel é defender, proteger e cuidar dos interesses de todos os municípios. É isso que estamos empenhados em fazer. Temos uma boa associação, credível e respeitada. Somos tidos e achados em tudo. Felizmente existe um bom ambiente institucional e uma disponibilidade do Governo e dos parceiros internacionais para o diálogo e parcerias sem precedentes. Estamos em vários fóruns nacionais e internacionais e temo-nos esforçado para alargar a nossa influência e, através desta, mobilizar mais parcerias e recursos para os municípios. Estou seguro que as alterações que aconteceram de 2016 para cá são irreversíveis. Há coisas que precisam ser colocadas em lei para evitar que no futuro, se vier um primeiro-ministro diferente deste, não haja reversão dos ganhos. Estamos crentes que vamos ter reformas que tornarão o poder local cabo-verdiano ainda mais forte. Vamos celebrar o 30º aniversário do poder local em Cabo Verde a 15 de Dezembro sob o auspício de grandes ganhos e desafios. E a Associação Nacional de Municípios de Cabo Verde esteve sempre na linha da frente desde a sua criação. O trabalho continua.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1043 de 24 de Novembro de 2021.