De 2018 a 2020, o número de ocorrências registadas na PN diminuiu. 2021 surge como um ponto de inflexão e assistiu-se a um aumento acentuado das mesmas e um retrocesso para valores de há três anos.
Contudo, analisando-se esses dados, a primeira coisa a ter em consideração é a diferença entre ocorrências (aquilo que é registado) e crime (em si). Ou seja, como refere o sociólogo Redy Wilson Lima, “o que aumentou, aparentemente, são as ocorrências, não o crime”.
Quando se fala de crime, na verdade, o que muda são as dinâmicas.
Além disso, observa, olhando outros dados, por exemplo do Instituto Nacional de Estatística, a maioria das pessoas que é alvo de um crime continua a não apresentar queixa. “Cerca de 53% dos cabo-verdianos declararam que não se queixam porque não confiam na Justiça”.
E há ainda outros factores e fenómenos que mostram que a oscilação das ocorrências registadas não significa aumento ou diminuição da criminalidade. A questão é muito mais complexa do que as estatísticas.
Porém, admite-se, crimes como homicídio, ou quando há um tiroteio na rua são relativamente fáceis de contabilizar, porque aí sim, a polícia é chamada.
Homicídios e tiroteios
Redy Lima fala em particular da cidade da Praia, onde vem trabalhando e estudando fenómenos ligados à criminalidade, e observa que, para quem trabalha no terreno, o aumento anunciado não é novidade. A partir de 2020, eventualmente antes, é que há mudanças. E uma das mudanças são os tiroteios de rua que têm, desde então, voltado a verificar-se.
Ora, os dados da PN mostram que houve, em 2021, uma descida no número de homicídios. Registaram-se a nível nacional, 29 homicídios, menos 7 do que em 2020, sendo que na Praia houve 19, ou seja, menos 2. Contudo, aponta o sociólogo, são fenómenos diferentes. Os homicídios terão mais a ver com ajustes de contas e mortes por encomenda. Os tiroteios traduzem-se essencialmente em feridos e não propriamente em homicídios.
“Na cidade da Praia aumentou de facto essa dinâmica dos tiroteios nas ruas, isso é um facto, em vários bairros. Enquanto há bairros em que, na verdade, isso nunca diminuiu, sempre aconteceu”.
Tendo em conta que esses eventos são geralmente registados, era de se esperar, pois, aumento das ocorrências.
Retoma e Tensão
A principal justificação dada pela PN e pela tutela para o aumento, em geral, das ocorrências prende-se com a retoma gradual da vida social e económica, depois das limitações impostas pelo combate à covid-19.
Olhando os dados, os crimes contra o património representam 56,8% do total das ocorrências e conheceram o agravamento significativo de 52,9% a nível nacional: os roubos aumentaram em 61,7% e os furtos em 46,4%.
Assim, essa retoma poderá ser uma justificação provável para o aumento. “As pessoas estão mais nas ruas e há mais assaltos”. Porém, adverte o sociólogo, “essa é uma lógica causa-efeito. Serve, se calhar, para responder a priori mas a verdade é que a criminalidade, como disse, mostra uma continuidade”. Tal acontece, “porque nunca se fez grande coisa para melhorar a situação”.
“Não podemos analisar numa relação causa-efeito, porque há outras situações por detrás, que fazem com que isto aconteça agora”, reitera.
“Quando não se percebe as dinâmicas da criminalidade, temos que as justificar e justifica-se com tudo”.
Além da retoma, outra razão também destacada, pelo ministro da Administração Interna, Paulo Rocha, para o aumento das ocorrências é o do incremento da conflitualidade social.
“Não sei o que quer dizer com isso”, salvaguarda Redy Lima, sublinhando, porém, que “a sociedade vive em tensão desde há muito. A sociedade cabo-verdiana é uma sociedade de tensão”.
A perda de poder económico devido ao impacto da covid poderá estar relacionada com o expressivo aumento de roubos e furtos, “mas a verdade é que [o número de] de roubos sempre foi alto”, argumenta.
Aliás, a questão da criminalidade tem sempre em conta as contradições da sociedade.
“Nem falo em conflito, mas nas contradições da sociedade cabo-verdiana: a questão das desigualdades, das assimetrias”. Isto é algo que também não surge apenas em 2021.
Assim, apesar de todo o impacto da pandemia no tecido social e económico, a verdade é que esta não pode ser usada como explicação para o aumento das ocorrências.
“As causas são várias, estão diagnosticadas, só que nunca se fez um real trabalho para resolver essa questão”, aponta Redy Lima.
Causas e Soluções
O fenómeno é complexo, e as causas, como referido, são múltiplas. Entre elas estão, exemplifica Redy Lima, “a questão da hiper-masculinidade” e o facto de Cabo Verde ser “uma sociedade da rabidância.
“Ou seja, rabidância no sentido de ser uma sociedade do tráfico, dos tráficos, onde há várias outras formas de conseguir [rendimento] e o crime, às vezes, aparece como uma das soluções”.
Há ainda “a questão do álcool e a questão das armas de fogo”. E há as assimetrias e desigualdades.
“Portanto, há causas que se entrelaçam. E quando falo de desigualdade, nem estou a focar a questão económica, mas sim da questão sobretudo simbólica, da segregação do acesso às oportunidades. Tudo isso junto faz com que, de facto, tenhamos criminalidade”, aponta.
Como resolver? Sendo algo complexo, não há panaceia, mas o primeiro passo é “reconhecer que temos essas contradições na sociedade cabo-verdiana e é preciso trabalhar de baixo para cima”.
Ou seja, envolver as partes, nomeadamente a sociedade civil. “Não estou a falar das ONGs temáticas, estou a falar das associações comunitárias, que estão naquelas regiões, dos jovens, por exemplo, que têm um passado, que há 10 anos andaram nos gangues e hoje estão nas associações comunitárias. Estas pessoas precisam ser chamadas para trabalhar em conjunto de forma colaborativa. É a única forma”, acredita.
Redy Lima refuta que esse trabalho tenha sido feito, apesar dos muitos “encontros” para os quais são chamadas entidades como Igrejas e ONGs.
Estas, diz, “são importantes, mas muitas vezes são instituições iguais ao Estado. Estão longe das comunidades”, mesmo que fisicamente presentes.
“Por exemplo, falando mais da questão dos tiroteios, não podemos estar a trabalhar a paz quando quem realmente está nessa “guerra” não é chamado”, ilustra.
Ainda sobre o propalado foco do Estado e outras entidades públicas em chamar líderes comunitários para as conversas sobre a juventude e a criminalidade, o sociólogo questiona quem são esses líderes comunitários.
“Hoje em dia, está essa moda, toda a gente é líder comunitário. Muita gente que diz que é, mas quando estou com os jovens ditos criminosos, não há uma relação. Tem-se de começar a trabalhar, a identificar associações que realmente trabalhem com esses jovens”.
A título de exemplo de trabalho colaborativo, Redy Lima refere o trabalho que está a realizar com as associações comunitárias da Praia para mapeamento da cidade.
“Um dos mapeamentos que estamos a fazer é precisamente o mapeamento criminológico. Estamos a perceber esta dinâmica, mas no sentido de trabalhar junto e não nessas lógicas, que chamo de indústria coffee break, que são os grandes encontros, em sítios centrais da cidade: chamam-se as ONGs, que são as mesmas, para falar de coisas que, de facto, não estão a trabalhar no terreno”.
Ghost
Só no terreno, de baixo para cima, se consegue perceber as dinâmicas para poder arranjar soluções. E no terreno, na cidade da Praia, há um fenómeno que está a acontecer e que eventualmente ainda não é levado em conta.
A dinâmica, por assim dizer, dos thugs mudou. Está a ser substituída por uma nova geração a que normalmente se chama ghost (fantasma). Em linhas muito gerais, e para tentar perceber a dinâmica: quando se falava de thugs, isso referia-se a um tipo de criminalidade territorial, de grupos contra grupos, bairro contra bairro, e em que os envolvidos eram pessoas bem identificadas. Hoje, acontece o que nos estudos dos gangues se chama de gangues híbridos.
“São gangues que não são facilmente identificadas”, porque já não se trata de uma questão de “afirmação pública do bairro”. Embora essa afirmação ainda exista, hoje há uma mescla.
Em muitos bairros, há gente de fora a circular e a agir. Isso não existia antes.
Um outro fenómeno que (res)surge com esta desestruturação da lógica territorial dos gangues, é o das crianças em situação de rua, que já são absorvidas pelos gangues.
“Torna-se uma coisa mais obscura e o que é mais obscuro, é mais perigoso”, alerta.
Importa, pois, conhecer as novas dinâmicas para melhores soluções.
Entretanto, e falando ainda de crianças, a PN publicou também o Perfil dos autores e das vítimas dos crimes registados. Segundo esse perfil, de um total de 18.525 participações recebidas, 12.961 (70%) foram esclarecidas, tendo sido identificados 13.869 autores de crimes. Desses, 204 (1,5%) eram menores de 16, sendo que 30 suspeitos tinham menos de 12 anos.
Os números não variam muito em relação a anos anteriores em que, de acordo com informação publicada por Redy Lima, “entre 2007 e 2018, 1,8% das ocorrências criminais tiveram como autores menores de 16 anos (0,2% menores de 12 anos entre 2012 e 2018)”.
Contra pessoas
Como mostram os dados das ocorrências, houve também um aumento (13,7%) de crimes contra pessoas: os crimes de ofensas corporais subiram 4% e as ameaças na ordem 31%. Aumentaram também a Violência com Base no Género (VBG), 26% (mais 478 casos do que em 2020) e os crimes de abuso sexual de menores, 23%, (mais 21 casos).
Falando em particular destes dois últimos anos, são tipos de crime onde, há semelhança do que aconteceu no resto do mundo, a pandemia poderá ter tido um impacto directo.
“Há esses conflitos internos, dentro de casa, no espaço íntimo a violência surge primeiro, mais do que o espaço público”, admite.
Assim, a VBG poderá ter aumentado com os confinamentos. O mesmo acontece com a violência sexual contra as crianças, sendo que aqui, porém, esse aumento também se poderá dever ao reforço de sensibilização da sociedade para este crime.
“Não tenho dados concretos, mas é uma explicação plausível, em relação a esse aspecto específico”, diz.
Repressão e Prevenção
O ministro da Administração Interna anunciou, à margem do Seminário “Operações Especiais de Prevenção Criminal – OEPC”, durante o qual foram apresentadas as ocorrências de 2021, “a intenção do governo e da Polícia Nacional é pôr foco” precisamente nessas operações “visando uma particular atenção focada naqueles que cometem infracções e que incomodam uma sociedade inteira”.
Para Redy Lima, está-se a falar de repressão e não de prevenção.
“Não existem procedimentos especiais de prevenção. Até porque a polícia não faz prevenção, a polícia reprime.”
Aliás, este discurso, que tem como lógica a tolerância zero e o “vale tudo” no combate aos supostos criminosos, é antigo e perigoso.
“A história da tolerância zero é uma história de violência do Estado”, sublinha.
“Já foi experimentado e foi um fracasso total, porque traz outras questões, outro tipo de violência” legitimada por parte do Estado.
O investigador recorda, inclusive, o que se passou no passado, em Cabo Verde, em que “havia estado de sítio não declarado”. “Já se pôs em prática, só que quando isso aconteceu, em 2008, foi tão mau que foi retirado logo”, recorda, lembrando que na altura o exército foi colocado na rua para lidar com a criminalidade.
Assim, as operações especiais são, para o investigador, uma “estratégia perigosa no sentido de ser o último recurso, o recurso de desespero”.
Ademais, vê o discurso do Ministro da Administração Interna, como “um indicativo [de] que tudo o que o governo tem dito em matéria de segurança interna era mentira”.
“Se estava tudo bem, porque de repente não está?” De qualquer forma, a presente situação não lhe parece tão grave que justifique seguir esse caminho.
“Há situações que sim, pontuais, mas é perigoso esse discurso porque é o discurso de desespero”, resume.
O trabalho, reforça, devia ser na prevenção.
“Quando não se trabalha a prevenção, a solução, claro, está”, nessas operações. Mas, reforça, “numa sociedade segregada como a nossa, torna-se perigoso”.
Esta é aliás, analisa, uma linha que vai contra o próprio programa da Administração Interna, o Programa Nacional de Segurança Interna e Cidadania (PNSIC), aprovado em 2017 e que “põe a tónica na segurança humana e na pessoa humana”.
O programa traria, explica Redy Lima, uma passagem daquilo a que se chama de “política de segurança pública para política pública de segurança”. Ora isso nunca aconteceu.
“Ou seja, nunca passamos da repressão para a prevenção, na prática”.
“Continuamos a não querer reflectir e a não aceitar os diagnósticos. Os diagnósticos põem-nos em uma situação desconfortável, o problema está aí”, avalia.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1062 de 6 de Abril de 2022.