Ondina nasceu no mar, daí o seu nome. Nasceu a 17 de Agosto de 1946, a bordo do paquete Guiné, que fazia a viagem de São Vicente para Lisboa. O pai, foguense, proprietário de café em Mosteiros, e a mãe, professora e sanvincentina, tinham partido do Fogo, com passagem por Mindelo, rumo à então metrópole devido a problemas de saúde de alguns filhos. O parto, pensavam, seria já em Lisboa, mas a bebé adiantou-se. E assim, em pleno mar, nasceu.
A bordo do navio, o salão de festas transformou-se em maternidade improvisada e, para desgosto dos passageiros mais jovens, foi cancelado o baile que se costumava realizar. Pouco ou nada estava ainda preparado para a chegada da apressada menina. Quando o barco escalou no Funchal, ilha da Madeira, o seu pai desembarcou para comprar algumas coisas. “As minhas primeiras vestes, costumo dizer, são da ilha da Madeira”, conta. Daí a viagem continuou e chegaram ao seu destino, Lisboa, onde foi baptizada e viveu até aos dois anos.
Depois, regressaram ao Fogo. Aí passou a infância até terminar a Primária. “Não havia Liceu no Fogo, acabávamos a 4ª classe e aqueles que podiam, tinham de sair. Ora iam para São Vicente, ora para a Praia”. Aos 10 anos, Ondina rumou para a terra da mãe para continuar os estudos. Ao Fogo ia regressando, pelo mar temeroso, apenas nas férias. Ao fim de dois anos, mudou-se para a Praia onde estudou do 3º ao 6º ano. O último ano do Liceu, na altura o 7º, fê-lo já em Portugal e por Lisboa ficou, ingressando a Faculdade de Letras.
A sua apetência para a área de Letras revelara-se, aliás, desde bem cedo. Hesitou, ainda no liceu, entre filologia românica e filologia germânica, mas a primeira “venceu”.
“Às vezes, há motivações que não sabemos de onde vêm, mas houve um episódio” que lembra e poderá te sido decisivo na escolha. No fim do 5.º ano, estava Ondina a tratar da escolha da alínea na secretaria da sua escola. E a escolha oscilava entre as duas filologias. Eis que chega a sua professora de Português, a mesma que classificava as suas redacções, não com Bom ou Mau, mas como Original. A professora, Gabriela Mariano, disse-lhe então “Não sejas pateta! Tu és de filologia românica, não te metas em germânicas”. Assim foi.
Seguiu românicas. Mas na verdade, a sua primeira paixão nem foram as ‘filologias’.
“Eu queria, de facto, era fazer teatro, ir para o conservatório”. A mãe, “professoral”, levo-a a ponderar. O que faria, de regresso a Cabo Verde, com a sua formação em Teatro? O mais provável seria acabar por ser professora.
“Nem te realizas como actriz, nem como professora”. O melhor seria, aconselhou, primeiro ter o curso de professora.
Ondina seguiu o conselho. Embora tenha desistido de ser actriz, o teatro continuou presente na sua vida, enquanto estudante e depois, já enquanto docente. “Como professora tive essa oportunidade de ensaiar alunos. Formava sempre um grupo de jograis, dizedores de poemas, e também grupo de teatro”, lembra.
Entretanto, foi ainda em Lisboa, durante a faculdade, que conheceu Armindo Ferreira, estudante de engenharia do Instituto Superior Técnico, e seu futuro marido. Terminou o curso, trabalhou, casou e teve filhos. Deu-se então o 25 de Abril.
“Estava no horizonte o calar das armas, a paz a ser firmada entre os movimentos da Independência”. A família rumou à Guiné-Bissau.
Uma história puxa outras histórias familiares e aqui faz-se o parêntesis. Os seus sogros, ele cabo-verdiano, ela guineense, tinham vivido em Cadique onde eram comerciantes prósperos. No início da guerra, numa altura em que “o PAIGC vinha mobilizar jovens no território guineense, para irem para a luta armada cuja sede era Cronacry”, na sua grande casa recebiam as tropas portuguesas “e à noite vinham os guerrilheiros, que também eram recebidos”. Estes, “quando começaram a ver a supremacia da tropa portuguesa na zona” decidiram atacar as infra-estruturas. Ordenaram aos sogros que saíssem de sua casa e aí colocaram uma bomba, com a promessa, nunca cumprida, de um dos líderes do PAIGC, de que quando se desse a Independência voltariam a ter casa. Explodiram então a moradia. Um choque para a sogra que muitas vezes iria relembrar como, sentada numa pedra, viu a casa, fruto de muito trabalho, ir pelos ares.
Depois da destruição, foram para Conacry onde o sogro foi feito responsável dos armazéns do povo. Armindo, que estava em Bissau à data destes acontecimentos, passaria 14 anos sem ver os pais. Só os veria, depois do 25 de Abril, nesse regresso de Lisboa.
“Deu-se o 25 de Abril, em Maio/Junho, ainda houve escaramuças, porque as notícias chegam sempre atrasadas ao mato. Nós chegamos a Bissau em Agosto”, recorda Ondina. Viveram na capital guineense cerca de um ano, durante o qual Ondina leccionou num atípico ano lectivo.
Depois partiram. A situação na Guiné não era boa. “Para dizer a verdade, a partir de finais de 74 começou a entrar em nós uma grande decepção entre o que prometia a nova vida e o que realmente vimos, o não cumprimento de nada. Fuzilamentos, prisões, coisas horríveis...”, lembra. Os próprios sogros aconselharam a viagem. “Qual é a mãe que não queria ter o filho por perto, mas nós preferimos ter saudades vossas do que continuarem aqui em Bissau”, disseram-lhes.
Saídos da Guiné, o marido foi fazer o estágio em Portugal e Ondina foi para o Sal, onde agora os seus pais residiam (embora mantivessem a casa do Fogo). Mais uma vez, história puxa história familiar: a irmã de Ondina casara-se com o então administrador do concelho da ilha do Sal. Quando a sua mãe foi assistir ao nascimento do primeiro neto, acabou por ser convidada pelo doutor Ramiro Oliveira, médico e um dos fundadores do externato, para aí leccionar. A própria Ondina, acabou por se juntar ao corpo docente desse externato “liceal”, durante dois anos.
O seu marido regressa e do Sal, partem para a Praia, quando Ondina foi colocada no Liceu da cidade.
Em Cabo Verde, vivia-se na altura um regime “que nunca satisfez”. “Tínhamos vivido o 25 de Abril… houve um retrocesso”, lamenta.
Era a desilusão de não ver uma alternativa e haver um Partido único, com todos os seus defeitos e tiques. “Num partido único, há uma repressão, real ou latente. Há sempre e viveu-se sempre com esse espectro e esse peso em cima”.
Em 1988, recebeu uma bolsa de estudo para fazer um Mestrado em Ciências da Educação nos Estados Unidos, na Universidade de Massachusetts Amherst. Foi. Durante a sua estadia, mantinha-se a par do que se passava no país. O seu marido mandava-lhe jornais e outras informações. Estava entusiasmado porque sentia que alguma coisa estava a mudar. Ondina também sentiu isso, pela primeira vez, quando leu no Voz di Povo “uma espécie de entrevista-debate entre Basílio Mosso Ramos e António Espírito Santo, que representavam duas correntes diferenciadas”. Em 90, regressa ao país, “entusiasmadíssima” e já em plena movimentação democrática. No dia em que chegou recebeu uma delegação do MpD que, sabendo das suas ideias e “a mando do Carlos Veiga que era o coordenador”, foi a sua casa convidá-la a integrar o movimento.
Aceitou de imediato e começou, juntamente com o resto do grupo, a trabalhar na preparação do programa do MpD e a apresentá-lo ao eleitorado. “Fez-se tudo de forma entusiástica. Construiu-se essa grande utopia democrática, porque eramos alternativa”.
“Essa possibilidade nascente e crescente é que me fez entrar para a política”, confessa.
O resto é História. O MpD venceu as eleições e Ondina foi membro do governo e também 1ª vice-presidente da Mesa da Assembleia Nacional. Já perto do final do mandato, quando faltavam 9 meses para o término desse governo, substituiu o ministro da Educação, Manuel Faustino que pedira para sair.
“Foi só uma passagem, estive pouco tempo. Entramos logo a seguir naquele período corrente do governo. Foi o ano da preparação das eleições”, lembra.
Tudo na vida chega a um termo e a sua vida política também.
“Acho que a partir do momento em que fomos maioria absoluta, isso acabou por trazer alguns problemas, tiques de maioria absoluta, e houve uma espécie de frangalhar do meu próprio partido. [Depois] acabei por abandonar a vida política. Foi uma experiência, ficou aí, foi boa, participativa, intensa, apaixonada”. Saiu em 2001, depois da derrota do MpD.
Regressou à docência. Em 2002, já no governo do PAICV, foi convidada, pelo então ministro da Educação, Victor Borges, para ser directora executiva do Instituto Internacional da Língua Portuguesa – IILP, cargo que desempenhou até 2004.
Mas dar aulas foi sempre o que mais a marcou e a sua grande paixão. Reformou-se, aliás, como professora. “É essa a minha profissão, escolhida, devotada.”
E, em lamento acrescenta: “Tenho pena que a escola pública em Cabo Verde, onde me formei profissionalmente, esteja a conhecer uma degradação”…
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Como vê a evolução da educação em Cabo Verde?
A situação é muito complexa. Temos que partir da sociedade em que vivemos, e esta sociedade está doente em muitos aspectos, mas exige imenso da escola. A família em Cabo Verde, é uma tradição, entrega os meninos à porta da escola e não quer saber mais, dá costas. Mas, também, a família espera muito da escola porque ela própria não tem como dar, não tem valores a transmitir. Quase todos as nossas escolas são problemáticas no sentido de que os alunos não têm uma boa almofada familiar. A grande maioria pertence a famílias desestruturadas, também vi isso durante todo o meu tempo [de docência]. Vêem na escola este amparo social: a escola é que tem que dar as ferramentas para o menino ser o cidadão amanhã. A escola é que tem que o educar. É à escola que se pede tudo e a escola, sem dúvida, não pode dar tudo. Como se atribui imensas responsabilidade à escola, a escola acaba por colapsar, porque também já temos uma geração de professores oriundos de famílias desestruturadas. Vamos ver o perfil dos nossos professores, hoje. Exigimos de facto muito deles, mas há qualquer coisa social que torna as coisas ainda mais difíceis, falta algum brio profissional. Sinto isso nos meus colegas mais novos.
Com a massificação o próprio estatuto social do professor mudou.
A escola para todos, o acesso, a democratização do ensino, eu respeito isso e acho que foi feito com as melhores intenções, desde o tempo do partido único, à democracia (a 91), aos governos democráticos, depois de 91. Todos. Sempre houve isso. Creio que falhou a estruturação dos próprios serviços centrais, de onde se emana os programas, etc. Falhou uma supervisão pedagógica. A parte inspectiva pedagógica foi sempre enfermiça, deficiente, e isso nunca se ultrapassou, bem como a avaliação do próprio professor, que passa também por uma auto-avaliação. Tem que passar por essa auto-avaliação para conseguirmos uma escola de acordo com este ambiente social, que é muito complexo, que é pobre, que é deficiente, que não contribui para a cidadania. De facto, a escola aqui tem um peso enorme. Não é de hoje, desde o meu tempo que à escola se exigia imenso, mas havia, como referi, um outro corpo docente educador. Havia a parte vocacional – tal como há para actor, pintor ou músico – que se perdeu. Hoje, ser professor é um emprego, um trampolim social, qualquer coisa. Claro que há excepções e quero salvaguardar essas excepções, ainda mais quando estamos a festejar o dia do professor, que tem celebrado com dignidade. Mas é bom que os professores façam a sua auto-reflexão para saber se estão a cumprir o desiderato, em termos de ensino aprendizagem, nessa cadeia. E é preciso também que a sociedade colabore. A escola é uma comunidade: há docentes, há alunos, há pais e encarregados de educação, tudo isso é que constitui a grande escola. Ora, se é deficitário de várias fontes, só fica o professor e o aluno, e o docente tem de fazer tudo, é estranhamente desequilibrado. Agora eu pergunto como é que Cabo Verde, a nossa escola pública, que era boa escola pública [já não o é]? Mesmo depois da independência, ninguém ia para a escola privada. Só ia para a escola privada aquele que tinha ultrapassado o limite de idade, de chumbos e de reprovações e, portanto, de insucesso escolar. Hoje em dia é o contrário. Os pais que podem, e está-se a ver sobretudo nos meios Praia e Mindelo, mandam os filhos para escolas estrangeiras e privadas. Alguma coisa nos diz.
Costuma ser colocada a tónica na questão do ensino e domínio deficitário da Língua Portuguesa nas escolas. Estará a LP a ser usada como o bode expiatório para a falta de qualidade?
É como diz. Mas, não é fácil dissociá-la. Porque se os livros por onde os nossos alunos estudam, os manuais escolares, estão todos eles redigidos em Língua Portuguesa, e se a língua oficial de Cabo Verde, a língua de escolarização, até aqui, tem sido a Língua Portuguesa, claro que é natural que se associe o insucesso escolar da escola pública à não boa utilização, à não boa escolarização em LP. É natural que isso esteja a suceder. A escola [pública] é que sempre deu a LP. Os alunos cabo-verdianos, de uma maneira geral – excepções feitas a determinados ambientes em que falavam português em casa –, foram para as escolas ouvir e aprender o português em primeira mão. Sobretudo antigamente, porque agora têm televisão, e os meios de comunicação que estão completamente massificados. Mas vão ouvir em directo o interlocutor, que é o professor, em LP. Portanto, é à escola que cabe esse ensino da LP, que é fundamental para o ensino aprendizagem dos nossos alunos, para aprenderem a saber estudar, a saber os conceitos científicos e técnicos, que estão em LP. Se eles não percebem, se têm deficiente entendimento, como é que vão descodificar? Então, há esse grande problema que depois se repercute quando saem para ir estudar, por exemplo para Portugal. A taxa de insucesso universitário cabo-verdiana é enorme e não estamos a dar-nos conta disso, nem há estatística dos alunos que ficam pelo caminho, que depois acabam numa espécie de imigração clandestina em Portugal e que não voltam.
É a LP o problema da qualidade, ou falta dela, na escola pública?
A questão da qualidade é muito mais abrangente. Precisamos de um perfil de professor tecnicamente bem apetrechado e culto e, em grande parte, não temos esse perfil. Mais uma vez, falo na generalidade e ressalvo as excepções, que felizmente as há, porque se não o descalabro seria maior. Ainda encontramos professores que têm essas duas componentes, muito visíveis, e tem que ser consciencializadas. O professor tem que estar consciente de que ele é obrigado a ser culto e que ele é obrigado a ser bem apetrechado, para melhor ensinar e aperceber-se também da recepção do seu ensino, no aluno. O professor tem de entender como é que esse aluno faz o salto qualitativo, enquanto ser humano, social e escolarmente. Isto são os grandes desafios da educação. A verdade é que nós não debatemos os problemas do ensino. Para mim, já não é só a questão linguística, é também a questão científica. As físicas, as matemáticas, as ciências estão a ser ensinadas de uma forma muito redutora. A escola tem que ter uma melhor didáctica para a ciências. Há um desnível em relação a outros países na matemática, na física e química, nas ciências naturais... O problema é a qualidade de ensino, mas é global, não é só linguístico, infelizmente é tudo. A escola pública está com um empobrecimento geral, das ciências às letras.
Mas os professores têm cada vez mais formação...
Há que debater o ensino do pré-primário, até ao universitário. O próprio ensino universitário para mim é deficiente. Não é propriamente aquilo que entendemos por um ensino universitário. Mais uma vez, salvaguardando as excepções, de uma maneira geral, nós vemos os resultados. Eu acho que há uma mediocridade aceite de uma forma resignada. Não se faz nada para combater isso. Veja o perfil de técnico da administração pública e privada, o nível de atendimento, a forma, a ausência de profissionalismo. De onde é que eles saem? A universidade prepara-nos para a vida pública. Claro que o bom profissional forma-se praticando, é um caminho que se vai fazendo, mas a universidade é uma grande escola de preparação para toda a saída profissional que venhamos a ter.
Voltando à escola. Há quem defenda que os decisores deviam colocar os filhos nas públicas. Se servem para os outros também deveriam servir para eles e seria uma das maneiras de conseguir dar um salto qualitativo na educação pública. Qual a sua opinião?
Há os que mantém os filhos na pública. Mas sim. Talvez isso fosse um meio eficaz de conhecer as insuficiências e os decisores políticos tomarem [melhores] decisões. Quando se discute a situação do professor no nosso Parlamento, no governo, só se fala em questões laborais, sindicatos, mais nada. A carreira do professor, os anos de trabalho, a sua reforma, tudo isso é importante. Mas só isso? Não! Tem que se debater a nível de decisores políticos a qualidade do nosso ensino. É fundamental fazer esse debate. Debater a fraca qualidade de ensino que está a existir na nossa escola pública e que todos nós estamos a ver.
Já está em curso uma reforma que vai do pré-escolar ao 12.º ano e respectivos manuais…
É preciso que se tenha bons instrumentos didácticos também. Se não forem, têm de ser corrigidos. Nós não estamos a acertar com os instrumentos didácticos. Os manuais são muito redutores, não estão a abrir perspectivas. A escola subjacentemente ao produto didáctico imediatamente oferecido ao aluno, tem também de ter uma visão filosófica, que é mais lata, que alargue mais o horizonte ao aluno, que dê bases para ir em busca de maior conhecimento da conceptualização que ele fez naquele momento, naquele capítulo, naquele ponto programático, e os manuais didácticos não estão a oferecer isso, pelo contrário. Acho-os extremamente redutores até para o próprio aluno. Há uma falta de respeito ao aluno. Há um primarismo nos nossos manuais que não se coaduna com o mundo de hoje, com o que queremos que a escola forneça aos alunos. Há uma exigência mínima, por isso digo: parece uma falta de respeito ao aluno.
Entretanto, e mais uma vez a Língua, hoje o português é ensinado como língua segunda. Como vê esta mudança?
Eu não acharia mal se a escola assumisse essa posição de ensiná-la como língua segunda, mas como língua viva, como língua de ensino, e não está a fazê-lo. Não acho mal, partindo do princípio que a primeira abordagem linguística do menino cabo-verdiano é o crioulo. O crioulo que é filho da Língua Portuguesa em toda a sua estrutura, e mais do que nunca. O crioulo actual é ainda mais filho do português do século XX/XXI do que antigamente e o que nós encontramos, hoje, são resquícios do português medieval, resquícios das línguas africanas. O que encontramos na estrutura do crioulo hoje, justifica-se porque há uma maior escolarização. É um crioulo escolarizado e directamente dependente da evolução da língua portuguesa. Repare como falam, quando falam crioulo, os técnicos, na comunicação social. Toda a semântica, toda a sintaxe, todo o léxico, todo ele é oriundo da Língua Portuguesa actual. As heranças estão a cair. Um Na, um Ka são resquícios, porque o Ka usava-se no português medieval. Gil Vicente usava isso nos seus autos. É uma negativa – “eu tenho cá disso” é um “não tenho isso”. Hoje quase não temos esses vestígios, do português medieval, no crioulo cabo-verdiano. Temos sim e em abundância, cada vez mais crescente, o português da actualidade, que eu chamo português do século XX e do século XXI. É explicável: o contacto, o aumento de escolarização, a globalização, os media, tudo isso, traz o português actual.
Tem apontado que há um desprezo geral, não só das escolas, mas em geral, quanto à qual LP. De onde vem? Tem a ver com o medo de errar e da estratificado social da língua?
Tudo isso. Esse medo de errar, essa classificação social se não se expressa bem, mas também de um deficiente ensino. Não criar o amor à língua. Os meus alunos são as minhas testemunhas de como sempre tentei, primeiro, criar esse amor pela Língua Portuguesa.
A maior parte dos cabo-verdianos não consideram a LP como sua língua...
Não se engajam, não assumem. Cada vez menos. Mas nós assumimos como nossa língua. Para mim o português é tão minha língua como o crioulo. Por acaso, eu sou um caso à parte porque em casa, a nossa língua doméstica, dos meus pais e meus irmãos era o português. Portanto, os ambientes também contam muito. A herança, a reprodução do que se teve em casa é extremamente importante. Mas hoje, há um desamor crescente que, é interessante, começou a germinar com a Independência, embora os governos da Independência nunca o tivessem assumido. Inclusivamente, na primeira República, a discussão do crioulo era uma não discussão, um não assunto.
Só vai ser assunto em 99?
Em 99, com a institucionalização, porque isto não é partidário, é transversal. Na entrevista da Dulce Lush, [ao Expresso das ilhas, edição 1056 de 23 de Fevereiro de 2022], a abordagem que ela fez foi muito boa. E ela veio me lembrar – como cortei com a política, já nem me lembrava – disso.
Em 99 alterou-se o artigo da CR referente à língua.
Que era o crioulo. Deixou de ser crioulo e passou a ser Língua Cabo-verdiana. Foi a partir de 99, no governo do MpD.
E foi aí que entrou a paridade?
A minha redacção não foi aceite. Eu estava a ver a coisa a longo prazo e antes também que matassem o português. Carlos Veiga chamou para a questão do crioulo o Manuel Veiga. Depois, pediu-me para ajudar na redacção. [Era algo] para médio e longo termo e [dizia] então que as duas línguas eram nacionais. O Manuel Veiga queria que o crioulo fosse oficial e não queria que o português fosse nacional. Então, [na minha redacção] são ambas nacionais e oficiais. Com a perenidade constitucional daria tempo a que as instituições académicas, administrativas e outras se preparassem para cumprir esse desiderato. Preconizo-o nessa redacção que não foi aceite, com a desculpa de que o que se queria naquela altura era dar visibilidade à língua, constitucionalizar a língua cabo-verdiana e retirar crioulo. E foi assim institucionalizada a língua cabo-verdiana em 99. Esqueceram-se disso. Depois aparecem os “defensores” que se põem a brigar com as outras pessoas. Brigar com quê, contra quem? Esta guerra, a linguagem: de um lado estão os bons, do outro os maus, de um lado os nacionalistas, do outro os colonialistas.
Há essa luta, mas quase todos também defendem que o português também tem que ser valorizado.
É uma contradição pavorosa, vivem um dilema. Uma vez escrevi um texto, para o Expresso das Ilhas, que dizia: “meus senhores, estão numa situação bem bizarra. Discutem os problemas, porque o crioulo é que é nossa língua, mas tudo em português. A língua portuguesa é que é o veículo para descompor o português”.
A LP está mal. E como está a saúde da língua cabo-verdiana?
A LCV está saudável, mais forte do que nunca, sem qualquer problema. Vivemos num ambiente de crioulofonia. Tenho pena que o português não tenha seguido a par com a LCV e esteja em posição de inferioridade, o que é um empobrecimento. Riqueza é termos as 2 línguas ou mais, essa é a riqueza.
Falta a oficialização.
Ainda não está oficializado? Em 23 anos não fizeram nada. Em 15 anos, nada. Eu desliguei me um bocado da parte política deste país, e não tinha ideia de que durante 23 anos nada se adiantou. Ainda estamos nisto. A padronização está a ter uma guerra terrível, porque há variantes que não se reconhecem. Por exemplo, São Vicente não se reconhece nessa tentativa de padronizar através do ALUPEC.
Entretanto, a língua também é economia e mercado. Esse domínio da LP irá favorecer as elites, que estudam nas escolas privadas, e aumentar o fosso social?
Se há uma escola mais apetrechada científica, didáctica e linguisticamente é dessa escola que vai sair a elite. O fosso social será maior. O salto qualitativo das camadas sociais mais pobres, mais desqualificadas, mais carenciadas em Cabo Verde, era feito através da escola pública. Ora não havendo uma boa escola pública, não haverá esse salto qualitativo e de onde é que virá à elite? Dessas escolas privadas e prestigiadas, neste meio. São prestigiadas aqui, pergunte às pessoas. Temos que encarar o problema linguístico de frente e pensar que as duas línguas têm de ser postas em plano tendencialmente igualitário, exactamente para evitar essas situações em que a criança que é obrigada a aprender na língua materna, depois vai ser socialmente arredada da parte melhor da sociedade. No fundo, não vai ter grandes possibilidades de singrar.
Para terminar, voltando à escola pública. Falou há pouco da resignação à mediocridade…
Repare também que são alunos oriundos de ambientes e de estruturas familiares que não têm capacidade de crítica. Não estão apetrechados para criticar, aceitam o que os miúdos trazem para casa e o que se tem da escola. Claro que há alguns pais, com os filhos nas escolas públicas, – nas outras ilhas quase todos, têm os filhos, nas públicas – que têm capacidade crítica de discutir, reparam a fraqueza, reparam a deficiência, mas são capazes também de ajudar o filho em casa a colmatar essas deficiências e melhorar. Mas a maioria não tem essa capacidade. E a sociedade aceita isso resignadamente, para mim o fosso social é cada vez maior, e daqui a alguns anos vamos ter alunos das privadas que quando se começarem a formar lá fora, vão ser a capacidade nacional. Isto não era pensável há uma vintena de anos. Os miúdos saíam da escola pública!
Não havendo panaceia, o que fazer?
Temos que discutir, enfrentar o descalabro do ensino de frente, debatê-lo. As autoridades educativas têm de estar mais cientes, conscientes que a escola pública está má. Assumir. Não há essa assunção. Que se discuta isso no Parlamento. É tudo importante, mas fundamentalmente é a qualidade do ensino que os deputados deverão discutir. Eles são os legisladores.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1064 de 20 de Abril de 2022.