Esperança adiada, vidas suspensas

PorNuno Andrade Ferreira,12 fev 2023 12:29

Paciente em diálise - imagem ilustrativa (Pillar Pedreira/Agência Senado)
Paciente em diálise - imagem ilustrativa (Pillar Pedreira/Agência Senado) (Pillar Pedreira/Agência Senado)

Demora na aprovação do quadro legal de transplante de órgãos deixa doentes renais num limbo. Capacidade de centros de hemodiálise aproxima-se do limite. Pacientes e médicos pedem rapidez. Partidos conscientes da importância do tema.

Cristiany Silva tem 22 anos. Aos 19, foi diagnosticada com insuficiência renal crónica. Em São Vicente, vive uma vida difícil, com uma doença silenciosa e dependente da máquina de diálise.

“Podemos dizer que nos acostumamos com o tempo, mas não é bem verdade, nunca nos acostumamos”, desabafa.

“Depois, as despesas que a própria doença implica, o transporte para fazer a diálise, a alimentação, que tem uma dieta restrita”, acrescenta, enquanto lembra a instabilidade emocional a que está sujeita.

A história de Cristiany confunde-se com a de tantos outros pacientes, de diferentes ilhas e idades. Em 2021, Edna Santos foi de Santo Antão para o Mindelo, para começar as sessões de hemodiálise. Lembra os dias do diagnóstico.

“Quando descobri a doença, ainda tinha um rim a funcionar. Vim fazer controlo em São Vicente durante 10 meses, mas ia perdendo percentagem e em Fevereiro comecei a diálise”, recorda.

Como acontece com muito outros doentes, a insuficiência renal de Edna teve origem na hipertensão arterial.

“Não queria vir, não foi fácil, passei desorientada durante muito tempo, sempre a mudar de poiso, não tinha ninguém para me receber, na altura estávamos no pico da covid-19, fiquei quase a morar na rua até conseguir encontrar uma casa. A depender do subsídio do governo, não foi fácil”, explica.

Para Cristiany, para Edna e para a larga maioria dos doentes que sofrem de insuficiência renal crónica em fase avançada, receber um novo rim é a melhor (talvez a única) hipótese que têm de recuperar alguma qualidade de vida.

Com o número de doentes diagnosticados e a necessitar de diálise a aumentar – actualmente acima das três centenas – e a capacidade limitada dos dois centros de hemodiálise do país, o transplante também é uma forma de garantir a disponibilidade de vagas para o futuro.

A legislação para viabilizar o transplante de órgãos em Cabo Verde está a ser trabalhada, mas tarda em chegar a bom porto. Em Janeiro de 2020, o ministro da Saúde de então dava conta da intenção de, a curto prazo, levar a Conselho de Ministros a proposta de lei do transplante. Arlindo do Rosário realçava a necessidade de se criar um quadro legal que abrisse portas à possibilidade clínica de colher e transplantar órgãos e que, apesar de não se restringir ao transplante renal, fosse uma resposta directa a uma doença que se tornou um desafio de saúde pública.

“Precisamos, primeiro, de partir para a legislação que irá permitir o transplante, sobretudo de dador vivo, por forma a melhorar a situação. [Para] os doentes renais, a hemodiálise é uma solução que não é uma definitiva. A solução definitiva passa por transplante e temos doentes em idade relativamente jovem que necessariamente vão necessitar de avançar para o transplante”, comentava.

A pandemia terá atrasado o processo e o diploma só chegou ao plenário da Assembleia Nacional em Fevereiro de 2022. À última da hora, foi retirado da agenda, para melhorias. Uma nova tentativa, em Maio, teve o mesmo desfecho.

Os partidos políticos com representação parlamentar são unânimes sobre a pertinência do tema.

Sem detalhes sobre o actual estado do processo, o presidente da bancada da maioria, Paulo Veiga (MpD), realça a importância da iniciativa.

“É uma lei importante, até porque foi aprovada em todas as comissões. Acho que o governo está a melhorar o diploma, para voltar a trazê-lo”, admite.

O PAICV, por intermédio do líder parlamentar, João Baptista Pereira, não entende a demora na conclusão do processo legislativo.

“Tínhamos feito a análise da proposta de lei e achamos que, apesar de um ou outro reparo que pretendíamos avançar como proposta de melhoria (a presunção do consentimento para preservação de órgãos de pessoas falecidas em acidente e outras circunstâncias em que não é possível dar consentimento prévio), tratava-se de uma boa proposta de lei, uma vez que temos muitos doentes no país. É seguir aquilo que é uma tendência mundial”, adianta.

Baptista Pereira não conhece as razões que terão levado o governo a retirar o diploma quando pareciam estar reunidas as condições para a sua aprovação.

“Não conhecemos as razões que levaram o governo a cancelar a iniciativa. É evidente que não somos ingénuos, são matérias que mexem com muita gente. Estamos numa sociedade um pouco conservadora, ainda. Sentimos que há matérias em que ainda não se consegue avançar por causa de outras questões. Existem forças outras, fora da política, com muito poder e que acabam por influenciar o sentido das coisas”, acredita.

Da parte da UCID, a deputada Zilda Oliveira nota que a possibilidade de realização de transplantes em Cabo Verde representará um ganho para os doentes, mas também para o próprio Estado.

“Se considerarmos o número de doentes que temos em diálise, o número de evacuados para transplante renal em Portugal, se pensarmos em termos do custo para o Estado, as deslocações e a manutenção dos doentes em situação de diálise, no custo-benefício para o próprio paciente, é uma proposta que acaba por receber a nossa aprovação”, fundamenta.

Apesar do ‘sim’, a terceira força política nacional quer que se levem em conta as recomendações da Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS).

“Por exemplo, a ERIS diz que que a proposta fala de doação, dádiva, colheita, análise, processamento e preservação, o título abarca este conjunto de aspectos, mas depois quando olhamos para a proposta, propriamente dita, acaba por falar essencialmente da dádiva e da colheita. Há necessidade de se aprofundar esses aspectos antes de se levar a proposta para aprovação no plenário”, analisa.

Tudo pronto

Para o director do Centro de Diálise da Praia, Hélder Tavares, que integrou a equipa multidisciplinar que elaborou a proposta de lei, todas as arestas foram, entretanto, limadas.

Indicado pelo Ministério da Saúde para falar sobre o tema, o especialista assegura que as questões suscitadas pelo parlamento foram sanadas, em articulação com ERIS, Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos.

“Temos vários doentes a aguardar a aprovação da lei para podermos avançar com este outro método de tratamento”, lembra.

Hélder Tavares recorda que o transplante renal é a melhor opção terapêutica para doentes renais crónicos, até perante a iminente falta de vagas para hemodiálise nos centros da Praia e do Mindelo.

“Permite maior liberdade para o dia-a-dia, dá melhor qualidade de vida e prognóstico. Para o sistema de saúde, é mais barato. Vamos chegar a um ponto em que não haverá vagas para novos doentes em tratamento”, observa.

Incompreensível demora

A inauguração dos dois centros de hemodialise, em 2014, na Praia, e 2021, no Mindelo, marcaram uma viragem da abordagem à insuficiência renal crónica. Cabo Verde diminuiu a dependência de Portugal, fez regressar doentes evacuados e passou a ser capaz de dar resposta mais rápida a novos doentes. A implementação da base legal para o transplante de órgãos é o passo natural seguinte.

É precisamente essa a posição de Filomeno Rodrigues, 65 anos, doente renal há 12 e um dos mentores da Associação de Doentes Renais de Cabo Verde.

“Ambos os centros já estão praticamente cheios. No centro da Praia, estamos com quatro turnos e no último já estamos a mais de metade da capacidade. Atendendo a que a mortalidade é baixa, estamos a correr o risco de esgotamento da capacidade dos centros, daí que se ponham várias hipóteses. Ou os doentes renais passam a morrer, como acontecia antes de 2014 e eram poucos os que eram evacuados, ou voltamos à velha história de enviar os doentes renais para Portugal ou, a terceira via, para nós a ideal, a transplantação renal”, resume.

Filomeno não percebe a “inacção” das autoridades, principalmente pelo impacto positivo estimado na vida dos doentes.

“Os nossos políticos não padecem de insuficiência renal crónica, não percebem o que é isto, porque temos doentes que há mais de nove anos estão à espera dessa lei do transplante, de um rim familiar, e não há um suporte legal para se fazer isso”, sublinha.

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Com 58 anos, Júlio Leite, natural de Santo Antão, é professor reformado. Diagnosticado em 2014, iniciou hemodiálise em 2016, na Praia. A abertura do centro de hemodiálise do Hospital Baptista de Sousa permitiu-lhe ficar mais perto de casa.

Um dos fundadores da Associação de Doentes Renais, Júlio fala em nova esperança para centenas de vidas adiadas.

“Temos família, amigos e a nossa vida pela frente, mas com a rotina de hemodiálise de três em três dias, nunca vamos conseguir. É importante que se pense nesta questão [do transplante], que nos irá ajudar muito. A vida muda quando começas a fazer hemodiálise e nem estou a olhar para a minha situação, que já trabalhei muito. Olho para os jovens de 19, 20 anos com insuficiência renal”, relata.

“É necessário que os políticos se sensibilizem com a situação, para que a proposta de lei de transplante seja aprovada. Irão ajudar os doentes e o país”, apela.

António Norton de Matos, cirurgião vascular português que colabora com os dois centros de hemodiálise de Cabo Verde, tem sido outra das vozes a apelar à rápida aprovação da lei de colheita e transplante de órgãos. O esgotamento das vagas para diálise será uma inevitabilidade dentro de meses.

“Daqui a seis meses, presumo que andaremos todos com as calças na mão à procura de sítio para meter os doentes. Como há dois centros, nefrologistas, diálise e serviços muito bons, a funcionar muito bem, as pessoas vão se apercebendo que a doença existe, e vão chegando. Daqui a uns meses, não saberemos o que fazer a esses doentes”, alerta.

Sem encontrar fundamento para dúvidas e hesitações, Norton de Matos está seguro de que o transplante é a melhor opção, especialmente importante para doentes jovens.

Os órgãos a transplantar podem ser de dador morto ou vivo. Os blocos operatórios do país têm condições para realizar o procedimento cirúrgico e o médico português confia que eventuais necessidades serão rapidamente colmatadas através da cooperação.

“Cabo Verde tem variáveis fabulosas, que são famílias grandes, solidárias, disponíveis para dar um rim a um irmão, pai, filho ou mulher. Portanto, é necessária a legislação”, sintetiza.

Estimativas da Organização Internacional da Nefrologia fixam em 850 milhões o número de pessoas que, ao redor do mundo, apresentam doenças renais de diferentes causas. A doença renal crónica e a lesão renal aguda são patologias que contribuem para o aumento significativo da morbilidade e mortalidade, afectando maioritariamente grupos de risco, que incluem portadores de diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares, obesidade, doenças autoimunes ou histórico familiar de doenças renais.

*com Lourdes Fortes e Fretson Rocha

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1106 de 8 de Fevereiro de 2023.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,12 fev 2023 12:29

Editado porEdisangela ST  em  2 nov 2023 23:29

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