Na sequência da aprovação, em sede de Conselho de Ministros, da proposta de Decreto-lei n.º 11/2022, de 13 de Abril, que atribui à Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS) competência para regular e fiscalizar os preços máximos das prestações de cuidados de saúde nos Estabelecimentos Privados de Prestação de Cuidados de Saúde (EPPCS), os médicos dentistas defendem que antes da aprovação deste decreto-lei, deveria ser feito uma pesquisa e socialização junto dos profissionais que actuam no sector privado.
Em entrevista ao Expresso das Ilhas, a presidente da ACMD, Carmelinda Gonçalves, defendeu que a fixação de preços dos serviços nas clínicas privadas representa um retrocesso nos investimentos em saúde e uma ameaça na prestação de serviços de qualidade em Cabo Verde.
Preços dos serviços nas clínicas privadas
Segundo a presidente da ACMD, Carmelinda Gonçalves, esta medida legislativa careceu da consulta das classes, da apresentação de dados que a embasavam e de estudos do impacto tanto na saúde, bem como na economia do país. A fixação dos preços nos serviços de saúde das clínicas, tem gerado muita insatisfação por parte dos privados, que se posicionaram contra uma medida que, no ponto de vista dos profissionais dentistas, vem afectar o “livre funcionamento do mercado e a concorrência”.
“Nós fomos surpreendidos com um decreto-lei, no ano de 2022, onde já o preâmbulo vem com informações, das quais nós discordamos, quando refere que nós não damos uma previsão de custo correcta. Pressupondo isto, nós questionamos, onde está a incorreção nos valores que nós aplicamos, uma vez que a tabela, que é de uma forma generalizada e equilibrada, e que é usada actualmente no sector privado, não se distancia da tabela do sector público, publicada há 16 anos atrás, e com referência de custos de 2003, portanto, custos de 20 anos atrás”, elucidou.
Carmelinda Gonçalves defende que os valores praticados pelo sector privado, que tem sido referência para a medicina oral, se encontram, em muitos pontos, em igualdade com a tabela do sector público publicada há 16 anos, sendo que, inclusive, encontram valores de tratamentos na tabela do Público superiores aos actuais praticados no sector privado.
“Então, nós questionamos que previsão de custos incorrecta tem o sector de medicina oral, quando se analisam estes critérios. Por outro lado, o preâmbulo da lei refere que há uma assimetria de informação. Nós acreditamos que quem coloca assimetria de informação como algo negativo, não deve conhecer o sector do jeito como é. A assimetria de informação é fruto de hipóteses terapêuticas distintas, que é o resultado de profissionais formados em escolas diferentes, com capacitações distintas uns dos outros, e com base em investimentos dissemelhantes”.
Esta representante dos médicos dentistas de Cabo Verde explica que quando um paciente migra de uma clínica para outra, eventualmente, vai encontrar profissionais com propostas diferentes para o mesmo problema, o que reflecte, talvez, uma especialização, uma capacitação maior, um equipamento diferente.
“Nisto, o paciente sai com a sensação que é a mesma coisa que se andou a propor, o que demonstra a iliteracia em saúde. A verdade é que a assimetria de informação, nunca vai deixar de existir, já que reflecte uma dinâmica, investimento e modernização dos profissionais do sector que tem a liberdade de avaliar o mesmo caso de formas diferentes”, afirmou.
Posicionamento da ACMD
A representante dos médicos dentistas de Cabo Verde sublinha que deveria haver mais diálogo, mais literacia, “inclusive nas pessoas que estão a legislar e que estão a pensar neste processo” de fixação de um tecto (preço máximo) para o sector privado da saúde.
“Nós somos o complemento do Estado e esse complemento não pode ser esquecido no seu papel como tal. Uma vez que já pagamos os nossos impostos, a nós, nos soa como uma dupla tributação, termos que contribuir duas vezes para uma mesma causa. Não pensemos que a saúde não custa. Eu digo sempre: a saúde é barata, a falta de saúde é que é cara”.
Outros aspectos
A presidente da ACMD salienta que não há um plano nacional de saúde oral implementado, o que resulta na falta de medidas de protecção da saúde pública. Consequentemente, os dentistas vão acabar por receber nas suas clínicas o “resultado da falta de políticas públicas direccionada à saúde oral”.
Esta responsável avança que alguns tratamentos que antes eram comparticipados pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), deixaram de o ser. Houve uma perda de alguns benefícios dos utentes nesta parceria pública/privada que existe entre INPS e as clínicas privadas. A consulta, por exemplo, era comparticipada, deixou de o ser, alguns tratamentos que antes poderiam ser repetidos em três anos, agora passaram para quatro anos.
“Isso significa que se retirou alguns benefícios em relação aos cuidados que outrora eram garantidos à população. Sendo assim, questionamos qual o motivo do sector privado ter que se estrangular para responder às necessidades. Porquê que os médicos dentistas têm que baixar os seus preços que já estão desfasados da realidade actual?”, questionou.
Carmelinda Gonçalves reitera que o decreto-lei não espelha a realidade dos profissionais dentistas. Pelo facto de não ter havido um diálogo com as partes, esta representante considera que a fixação do preço dos serviços é uma imposição.
“Isto impossibilita até a existência de eventuais parcerias, que deveriam ter sido, já há muito tempo, desenvolvidas, parcerias público/privadas numa situação em que todos ganham, em que se pode sim, e é possível ainda, desenhar e executar para o país, as políticas públicas de cuidado da população, para que ela não chegue aos nossos consultórios com um alto índice de CPO-D (Índice CPO-D é utilizado para medir a prevalência da cárie dentária em populações), que é o que temos no nosso país e que denuncia falta de cuidados, má alimentação, maus hábitos sociais, que poderiam ser colmatados com a presença de médicos dentistas nas escolas, espaços para escovar os dentes nos intervalos, acções de sensibilização promovidas em palestras, entre várias outras”, explicou.
Profissionais dentistas
Elisângela Oliveira, médica dentista, defende que a fixação dos preços do serviço do sector privado é um retrocesso na saúde.
“Cabo Verde é um país de referência em tratamento dentário, então nós já temos algo que nos classifica, pelo tratamento de qualidade a preço justo. Temos uma grande procura por parte das pessoas que vivem na Diáspora, essencialmente por sermos um ponto de referência na prestação de serviços dentários. Quando se coloca a fixação dos preços, um tecto, nós vamos estagnar a inovação. A área do médico dentista é uma área de inovação, com novas tecnologias, equipamentos e exige capacitação, não só a formação de raiz, mas exige frequente actualização e novas capacitações. Com a fixação do tecto, penso que vai levar à estagnação da área dentária, com isso Cabo Verde não vai poder mais acompanhar a inovação, por exemplo, na medicina dentária”, opinou.
Esta profissional sublinha que a falta de investimento leva à estagnação da profissão, o que levaria as pessoas, que antes optaram por um tratamento de qualidade, com equipamentos modernos, a procurar outros destinos para a realização dos seus tratamentos, porque Cabo Verde vai perder o seu posto de referência em tratamentos dentários.
Elisângela Oliveira salienta que a lei fere muito a qualidade, o que é a maior preocupação dos profissionais dentistas. Essa médica dentista acredita que, com a fixação de um tecto, não vai haver mais investimentos em tecnologias de ponta ou em equipamentos renomados e muito menos em novas capacitações e especializações, visto que com ou sem a frequente actualização na carreira, os preços serão os mesmos.
“Cabo Verde não produz nada, basicamente todos os nossos instrumentos, todos os nossos equipamentos são importados. Sendo que nós dentistas vamos comprar fora para garantir um serviço de qualidade, onde as fábricas de medicamentos, de dispositivos médicos de insumos e instrumentais não possuem um tecto, porque é um mercado que está sempre a inovar, a melhorar e nós vamos ter que acompanhar essa evolução. Não tem como colocar um tecto aqui em Cabo Verde, um país que não produz praticamente nada da nossa área, e achar que vai ser justo para todas as partes. E nós que temos que investir para manter as nossas clínicas com serviço de qualidade, como é que ficamos?
Referente às formações, Elisângela Oliveira sublinha que são todas feitas no exterior, incluindo as novas capacitações e actualizações.
“Antes de fixar um tecto para o serviço privado, deve-se socializar e pesquisar. O serviço privado é um complemento do serviço público, mas que gera concorrência porque requer investimento. Então, não faz sentido obrigar a execução do mesmo preço de serviço para todos porque se repararmos temos profissionais só com a formação base, temos outros com especialização, temos clínicas que investem em equipamentos de ponta, com um suporte maior, com custos fixos diferentes. Se analisarmos tudo isso vamos chegar à conclusão que não faz sentido algum a fixação de um tecto nos serviços de saúde”, defendeu.
Entidade Reguladora Independente de Saúde (ERIS)
Em declaração a este jornal, o presidente da ERIS, Eduardo Tavares, sublinha que, efectivamente, a ERIS entende que o diploma pretende concretizar um dispositivo previsto na alínea f) do n.º 3 do artigo 71.º da Constituição da República de Cabo Verde, para garantir o direito à protecção da saúde, incumbindo ao Estado “Regular e fiscalizar a actividade e qualidade de prestação dos cuidados de saúde”.
Este responsável explica ainda que a regulação e fiscalização dos Estabelecimentos Privados de Prestação de Cuidados de Saúde (EPPCS) é a concretização do normativo Constitucional. É a própria lei fundamental que atribui ao Estado a responsabilidade de regular (inclui a regulação técnica e económica) e fiscalizar a actividade e qualidade de prestação de cuidados de saúde, nos estabelecimentos públicos e privados de prestação de cuidados de saúde.
“Entretanto, do nosso ponto de vista, compete ao Governo ponderar sobre as medidas mais adequadas para alcançar o objectivo final que é o da protecção da saúde dos cidadãos, uma vez que o Estado deve, sempre que entender conveniente e necessário, adoptar medidas funcionalmente dirigidas à prossecução de interesse geral. No caso em apreço, o Governo, face às especificidades do mercado cabo-verdiano de prestação de cuidados de saúde, pode adoptar medidas a nosso modelo regulatório do sector da saúde que divirja de outras realidades comparadas”.
Eduardo Tavares aponta que o papel da ERIS neste processo é o de materializar uma política emanada pelo Governo e que, sendo assim, não lhe compete o papel de decisor, mas sim de executor no sentido de concretizar esse mandato.
“Mas, como é óbvio, tratando-se de algo sensível e que pode afectar o funcionamento do sector privado de prestação de cuidados de saúde, a ERIS deverá, no decurso dos trabalhos, acautelar-se de possíveis constrangimentos que o mecanismo em desenvolvimento possa causar. O processo está em curso e a ERIS procura ser o mais participativo possível com o objectivo de mitigar os referidos constrangimentos de que possa gerar um produto que seja justo para os cidadãos e para os operadores económicos do sector. Temos que estar conscientes que, mesmo para um eventual reposicionamento do Governo a este respeito, é necessário prosseguir o processo, no sentido de se ter todos os elementos que possam embasar qualquer decisão”, referiu.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1108 de 22 de Fevereiro de 2023.