“Faltava para as 20 horas, eramos três aqui, eu estava ao telefone e de repente voltei e apenas vi a pessoa a entrar, que foi deitando o produto do extintor. Acho que desmaiei por segundos, como disse a médica. Dizem que mandaram a minha colega sair da caixa, mas eu não dei por isso e não me lembro. Lembro-me de ter ouvido a minha colega a chamar por mim lá da rua, para eu sair, porque já tinham ido. Ficámos desorientados, não sabíamos o que fazer. Estavam dois clientes, um bebé, um dos colegas meteu-os aqui atrás e chamou a polícia. Foi assustador, nunca tinha visto algo assim na minha vida”.
O relato é feito por Jacinta, funcionária de um minimercado no bairro de Madeiralazinho, assaltado num final de tarde de Abril. O assalto foi o mais mediático até então, mas apenas mais um dos muitos eventos criminais que se sucedem na cidade do Mindelo, do centro à periferia.
Anilton, proprietário da loja, aumentou o número de funcionários e reforçou a vigilância. Impedir o acesso ao interior, assim que a noite cai, passou a ser uma opção.
“Se acontecer algum imprevisto e não conseguirmos ter um número [de funcionários] que nos dá maior segurança, preferimos fechar a grade e vendemos apenas com grade a partir desta hora, para evitar surpresas desagradáveis”, refere.
Em São Vicente, repetem-se os testemunhos de furtos e roubos a estabelecimentos, residências e na via pública. Este género de criminalidade não é novidade na ilha, mas o número de ocorrências e o grau de violência usados surpreendem e preocupam.
Numa mercearia de Vila Nova-Cruz de Papa, passava das 20h quando cinco indivíduos, encapuzados e munidos de facas, entraram no estabelecimento. No exterior, um sexto elemento ficou de vigia. Lá dentro, um oficial da Polícia Nacional, que fazia compras acompanhado da família, apercebendo-se do assalto, reagiu. Acabou ferido e teve de ser socorrido no Hospital Baptista de Sousa.
Antónia da Luz, dona do negócio, também sofreu ferimentos ligeiros. “Vi um grupo a entrar. Assim que entraram, disseram já no tchgá, com a cara tapada, com uns tacos”, relembra.
Além de bens pessoais, os assaltantes arrancaram a caixa do estabelecimento. “O meu filho [que estava fora do estabelecimento] viu o que se passava, foi tirar o cabo de uma picareta, veio e conseguiu atingir com o pau aquele que tinha posto a faca no seu pai”, conta.
Diferentes causas
O sociólogo Redy Lima, que há vários anos estuda o fenómeno da criminalidade urbana em Cabo Verde, tem na memória os ‘meses quentes’ de 2010 – quando os gangs tomaram conta do quotidiano mindelense – e não tem dúvidas de que se está perante um “retrocesso” com diferentes origens.
“Não há uma causa, são várias combinações de causas. A inflação e o aumento do custo de vida, a que no fundo chamamos de empobrecimento da população, é um dos factores, mas só isso não explica. Temos uma descrença no país e o grande indicador disto é a debandada por parte dos jovens. A criminalidade, de certa forma, é uma espécie de niilismo, que também é uma descrença, de que não vale a pena, porque o que vale é cada um por si”, elucida.
O tráfico e consumo de drogas também não pode ser retirado da equação.
“Hoje, o Mindelo, a parte norte [do país] também é um epicentro do narcotráfico em Cabo Verde. É uma coisa que não é muito dita, mas é uma realidade. Era muito concentrado em Santiago, ainda é um pouco, mas descentralizou-se, tanto para o Sal, como para o Mindelo. Isto também tem implicações, porque quando falamos do tráfico, estamos a falar de consumo”, sublinha.
A degradação da situação de segurança são-vicentina não apanhou Redy Lima de surpresa. O recurso sistemático a armas de fogo, tal como relatado por muitas vítimas, é a grande novidade que identifica. Do mesmo modo, o sociólogo não se mostra surpreendido com a ‘sofisticação’ associada às últimas ocorrências.
“No fundo, o crime tenta sempre avançar mais do que a questão da segurança. A partir do momento em que se investe nas câmaras, é óbvio que quem tem uma carreira delinquente vai ter que arranjar estratégias para contornar a situação e a cara tapada é uma delas. O que acontece é que o crime se vai adaptando às medidas de segurança que se adoptam”, comenta.
Preso em casa
Em Fonte Francês, Sandro dormia com a família quando, às 4 da madrugada, o alarme tocou. Um indivíduo entrou-lhe em casa e alguns instantes bastaram para causar um prejuízo superior a 100 mil escudos.
“Fomos vítimas duas vezes. Na primeira, os assaltantes tentaram arrombar a porta, subindo na varanda, mas não conseguiram. Na segunda, eram dois, um ficou em baixo, a ajudar o outro subir. Conseguiram abrir a porta. Por sorte, tínhamos instalado o alarme, tocou, mas mesmo assim, ainda apanharam o que estava à mão. Levaram duas mochilas com pertences meus e da minha mulher, os nossos computadores portáteis, documentos”, recorda.
Inseguro, Sandro foi obrigado a tomar medidas. Sente-se preso na própria casa.
“Praticamente não dormes e ficas em alerta. Isso leva-te a transformar a tua casa numa espécie de prisão. Tive que reforçar a segurança nas portas, dormimos com as portas ‘aparafusadas’, com trancas de madeira, mas corres o risco de partirem o vidro”, lamenta.
Gilda foi assaltada na via pública, quando regressava a casa depois de um dia de trabalho. Eram seis da tarde.
“Levaram a minha bolsa, com os meus objectos pessoais, inclusive telemóvel, chave de casa, a minha carteira com dinheiro. Vivemos com medo. Dias depois, eu ia sofrer a mesma situação, no mesmo local. Dois rapazes passaram por mim e pelo meu filho, para nos darem um caçu body, não conseguiram, mas acabaram por assaltar outra pessoa que estava mais adiante, ameaçando com uma faca. Estamos a pedir às autoridades para olharam para a situação que estamos a viver”, exaspera.
O papel da família
Os relatos sucedem-se, acompanhados de apelos a uma maior acção das autoridades. A descrença no poder judicial é um sinal preocupante, que reforça a confiança de quem actua à margem da lei. Isso mesmo é realçado pelo sociólogo Nuno Melício.
“Quando acontece [um crime], vais fazer uma queixa e dada a burocracia que existe entre o poder policial e o poder judicial, às vezes, a polícia faz o seu papel, mas o judicial não. O que acontece é que a população deixa de acreditar na resolução das coisas, os bandidos vão-se percebendo disso e aumentando a criminalidade, porque há essa normalização”, admite.
Na análise que faz às bases do fenómeno criminal, Nuno Melício também releva a importância da situação social e económica, assim como o papel da família.
“Muitas famílias optaram por entregar às escolas a educação dos filhos. Quem faz a educação é a família, cabendo à escola fazer a escolarização. São coisas diferentes. Os limites que os pais não colocam aos filhos, deixando-os demasiado à vontade, fazendo tudo o que querem, na hora que querem. O abuso excessivo de ecrãs, com consumo de temas violentos. Uma criança, um adolescente que vê essa violência a toda a hora, não consegue distinguir o real do imaginário”, observa.
Segurança situacional
De acordo com dados divulgados em Março, pela Polícia Nacional (PN), relativos ao conjunto do arquipélago, os crimes contra património representaram 57,9% do total de ocorrências registadas em 2022. Em detalhe, os furtos representam 11,6% e os roubos 43,8%.
O criminalista João Santos lembra que o combate aos fenómenos criminais não pode ter na força o essencial da acção. Ao invés de uma reacção emocional, com uso de “mecanismos de populismo criminal”, o também jurista coloca o foco em mecanismos de segurança situacional.
“De repente, está-se a verificar um surto elevado de criminalidade que não se verificava antes, até com mecanismos estranhos, esse é o métier próprio da actividade criminal. Muitas vezes, há um período de aparente tranquilidade, as pessoas tomam a situação como normal. É uma estratégia do crime, esperar que a melhor oportunidade aconteça para então desencadear as suas acções”, analisa.
“No quadro dos mecanismos e modelos de policiamento, um modelo de policiamento a que também se recorre é a eliminação de oportunidades do crime, a criação dos chamados mecanismos de segurança situacional, por exemplo, a câmara de videovigilância, a iluminação pública, a salubridade pública, o não uso de dinheiro cash”, acrescenta.
Resposta da PN
O comandante regional da PN em São Vicente, Maximiliano Fortes, reconhece a existência de “algumas ocorrências com alguma violência”, admite a sua preocupação e garante que a força policial está atenta e a reforçar a sua visibilidade nas ruas.
O responsável avança que foram criadas equipas especiais de resposta rápida, que operam particularmente em zonas de maior incidência criminal, com abordagens na via pública, revistas a suspeitos e identificação de indivíduos.
A PN também diz estar atenta a pontos suspeitos de constituir locais de venda e consumo de substâncias psicotrópicas.
“A polícia vai reforçando o patrulhamento urbano, fazendo o reforço de operações policiais nos bairros, desenvolvendo acções coordenadas com a Polícia Judiciária. Temos registado um aumento considerável de detenções em flagrante delito, e isto para nós é muito importante, porque demonstra a oportunidade de resposta da polícia, significa que estávamos no terreno”, declara.
Às vozes que pedem o regresso da BAC (Brigada Anticrime), o comandante na PN responde que as equipas no terreno estão a fazer o mesmo papel que os ‘ninjas’, mas de rosto descoberto.
“Temos o maior apreço pelo trabalho que a BAC desenvolveu, em circunstâncias próprias, numa realidade própria, mas as nossas equipas estão no terreno a trabalhar, têm a mesma valência, estão a fazer o mesmo trabalho, só que não estamos encapuzados”, realça.
Maximiliano Fortes apela à população a que ajude a reduzir os crimes de oportunidade, originados por comportamentos que aumentam o nível de risco.
O Panorama 3.0, da Rádio Morabeza, tem abordado a problemática da criminalidade em São Vicente. O arquivo de programas está disponível em expressodasilhas.cv e em diferentes plataformas digitais. Na próxima sexta-feira, às 19h00, será transmitida na íntegra a entrevista ao comandante da PN em São Vicente.
*com Fretson Rocha e Lourdes Fortes
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1122 de 31 de Maio de 2023.