São Vicente, 2023. Déjà vu, jamais vu

PorNuno Andrade Ferreira,30 dez 2023 9:27

O título deste artigo é em francês, mas sem nenhuma razão aparente. Na subjectividade de uma retrospectiva cabe tudo, até a criatividade linguística do escriba. 2023-São Vicente, ano de crise política que virou modo de vida, recomeços há muito esperados, novas experiências, dramas humanos e esperanças renovadas.

E o oceano logo ali

Em São Vicente, o ano começou de olhos postos na baía, porque a ilha recebeu, logo em Janeiro, uma escala inédita da Ocean Race. Ao longo de seis dias, o Ocean Live Park encheu-se de gente atraída pela mais mediática regata do mundo, em escala inédita por Cabo Verde. Vários expositores, venda de artesanato, área de restauração e música ao vivo foram os complementos da experiência proporcionada por um evento que, com génese desportiva, não se limitou à vela. A organização estima que, de 20 a 25 de Janeiro, cerca de 40 mil pessoas tenham passado pelo recinto temporário, erguido no Porto Grande.

Coincidindo com a Ocean Race, realizou-se na ilha a Ocean Race Summit. O evento contou com a participação do secretário-geral das Nações Unidas (ONU), António Guterres, numa visita igualmente inédita (nas actuais funções) a estas bandas.

Ao Mindelo, o líder da ONU trouxe uma ideia clara e simples: os países ricos têm de passar das palavras aos actos e garantir financiamento para acção climática nos países em desenvolvimento. Para Guterres, as instituições financeiras devem desenvolver soluções que permitam aliviar a dívida dos Estados e a obtenção de empréstimos a juros reduzidos.

O ponto em que insistiu resume-se num parágrafo: “Os países em desenvolvimento, e particularmente os SIDS, são vítimas de um sistema financeiro global moralmente falido, concebido pelos países ricos para beneficiar os países ricos (…). O [sistema financeiro] nega rotineiramente aos países em desenvolvimento os níveis de financiamento concessional e de alívio da dívida que seriam necessários”.

Voltas e reviravoltas

Se há coisa que parece não mudar – balanço do ano vai, balanço do ano vem – é a crise na Câmara Municipal de São Vicente. O ano começou como acabou 2022. A dada altura, parecia existir novo entendimento… mas afinal, nem por isso.

Há precisamente doze meses, decretávamos nestas páginas “um ano político feito de desavenças” no poder local mindelense. Agora que 2023 está feito, o epitáfio mantém-se.

Sem orçamento aprovado, viveu-se de duodécimos (e assim será 2024). Em Fevereiro, a presidente da Assembleia Municipal, Dora Pires, apelou “aos munícipes, à própria Câmara Municipal e ao governo” por ajuda para “resolver a situação”. Pela mesma altura, os partidos políticos assumiam, num debate realizado na Rádio Morabeza, que a falta de entendimento atrasava o desenvolvimento do concelho.

Um sinal de esperança surgiu, pois, em Abril, quando a UCID anunciou a consensualização de uma espécie de acordo com o MpD, para garantir “o funcionamento integral” da autarquia. Nos meses seguintes, até foi possível desbloquear, em sessão de câmara, processos há muito pendentes. No final do Verão, com Setembro a começar, presidente e vereadores (de MpD e UCID) chegaram a aprovar os instrumentos de gestão para 2024.

Ora, acontece que as notícias do fim da crise eram, afinal, manifestamente exageradas, porque orçamento e plano de actividades não passaram pelo crivo dos deputados municipais.

A propósito deste novo chumbo, o Presidente da República disse que todos os partidos são culpados por São Vicente ficar em regime de duodécimos por dois anos consecutivos.

Tudo de costas voltas. Para o ano há mais.

“Um poema diferente”

Os problemas continuam já a seguir, mas antes um curto intervalo para lantejoulas e batucada. É que o Carnaval regressou finalmente às ruas da ‘Morada’, depois da pausa para a pandemia, em 2021 e 2022.

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Monte Sossego foi o grande vencedor, sagrando-se bicampeão. O enredo “o povo das ilhas ainda quer um poema diferente para o povo das ilhas” levou a melhor sobre a concorrência.

(in)Segurança

Maio, Junho e repetiam-se os testemunhos de furtos e roubos a estabelecimentos, residências e na via pública. Um tipo de criminalidade que, não sendo novidade, surpreendeu pelo grau de violência usado e número de ocorrências num curto espaço de tempo.

Numa reacção às notícias com relatos quase diários, o ministro da Administração Interna veio a público garantir o reforço da actuação policial preventiva e reactiva. Paulo Rocha assegurou, então, o aumento de meios ao dispor do comando regional.

Ao Expresso das Ilhas, o criminalista João Santos lembrou, a propósito, que o combate aos fenómenos criminais não pode ter na força o essencial da acção, pelo que, ao invés de reacção com uso de “mecanismos de populismo criminal”, o foco deve ser colocado na aplicação de “mecanismos de segurança situacional”.

Drogas sintéticas

Por essa altura, também escrevemos sobre substâncias estupefacientes a circular nas ruas da cidade.

Se é certo que, conforme fonte policial, “não há estudos que demonstrem” [pelo menos em Cabo Verde] a ligação entre criminalidade violenta e consumo de estupefacientes, é possível que assim seja, “porque a experiência tem-nos demonstrado que quem consome precisa de recursos para satisfazer o vicio”.

Sobre São Vicente, a reportagem do EI desvendou que Ecstasy e MDMA, substâncias químicas produzidas em laboratório, são drogas em voga, com “aumento significativo” do seu consumo, sobretudo em contexto de festas.

Morte de bebés no HBS

Terá sido o caso que gerou maior comoção social, ao longo de 2023. Durante o mês de Maio, sete recém-nascidos – prematuros ou prematuros-extremos, em incubadora – perderam a vida enquanto estavam aos cuidados do serviço de neonatologia do Hospital Baptista de Sousa (HBS). As circunstâncias pouco claras da morte, a sequência de acontecimentos, e a proximidade dos casos fez com que, na comunicação social e redes sociais, se fizessem perguntas e exigissem respostas.

O Ministério da Saúde criou uma comissão de inquérito (CI), que avançou como provável causa de morte uma sepse neonatal tardia. Ao ler o relatório final, o médico Hélder Além, realçou que seria importante perceber-se em maior detalhe o que aconteceu no serviço, com um apelo aos médicos para que “digam a sua verdade” em relação às condições de trabalho de que dispõem.

No meio do turbilhão de acontecimentos e com muitas dúvidas em aberto – mesmo depois de divulgadas as conclusões da CI – o Presidente da República, José Maria Neves, desafiou a Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS) a realizar o seu próprio inquérito. Neves classificou o ocorrido de “grave e anormal”.

Já o Ministério Público anunciou a abertura de um processo crime, para apurar factos.

Na altura em que se discutia o caso, a tutela decidiu substituir a administração do hospital central, “visando criar condições para o [seu] bom funcionamento”. Helena Rodrigues seguiu-se a Ana Brito como PCA.

Despertar com vista

Um dos principais obstáculos ao desenvolvimento turístico de São Vicente tem sido, diz quem sabe, a falta de camas. O pré-pandemia marcou o arranque de vários investimentos que, em conjunto, permitirão aumentar significativamente a oferta de quartos. As obras desses empreendimentos, que se estendem ao longo da marginal, da cidade à Lajinha, decorrem a diferentes ritmos, mas já há um projecto de portas abertas.

Como vista para a baía, o Ouril Hotel Mindelo foi inaugurado no final de Agosto. 130 quartos, restaurante de alto standard, ginásio, duas piscinas e sala de conferências para 150 pessoas.

“Poucas vezes tens a oportunidade de fazer um hotel que fica tão bem como este. É uma alegria, sobretudo porque é uma ilha onde fizemos uma infra-estrutura desta dimensão pela primeira vez”, comentou o promotor, Manuel Mendes, no dia do corte de fita.

Antes disso, numa entrevista ao EI, o mesmo Manuel Mendes já tinha deixado alguns recados importantes, com destaque para a ideia de que as instituições são-vicentinas “ainda não estão a pensar de forma positiva”, criando obstáculos desnecessários a quem quer investir.

Quase, quase?

Será desta? O Terminal de Cruzeiros de São Vicente é uma daquelas ideias de que nos habituámos a ouvir falar, durante anos e anos. O slide show com dados do projecto foi exibido dezenas de vezes.

Pois bem, em 2022 foi lançada a primeira pedra da empreitada e, desde então, os trabalhos lá vão decorrendo. Em Setembro deste ano, a ENAPOR anunciou que a execução deverá estar concluída no primeiro trimestre de 2024. A mesma convicção foi expressa, já este mês, por Abrãao Vicente, ministro do Mar, que vaticinou que “no final do primeiro semestre de 2024 São Vicente terá o seu terminal de cruzeiros.”

Da China, com amor

De regresso ao hospital (salve seja), ia Dezembro a meio quando foram oficialmente lançadas as obras de um outro projecto há muito previsto e que a covid-19 se encarregou de atrasar.

Dentro de 20 meses, o HBS terá nova maternidade e nova pediatria, oferta da República Popular da China. Serão ocupados 5.550 metros quadrados, num investimento superior a um milhão de contos.

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O novo edifício – a construção já está em curso – disponibilizará 125 camas, serviços de urgência de maternidade e pediatria, ambulatório, atendimento pediátrico, internamento, unidade de cuidados intensivos de pediatria, unidade de cuidados intensivos neonatais, ginecologia, obstetrícia e bloco operatório. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1152 de 27 de Dezembro de 2023.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,30 dez 2023 9:27

Editado porJorge Montezinho  em  26 abr 2024 23:28

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