Estão em curso e em discussão várias iniciativas legislativas relativas aos municípios. De uma forma geral, de que forma é que estas alterações todas se enquadram na Política e na visão da Coesão Territorial do governo?
Efectivamente, estamos agora a materializar um conjunto de reformas legislativas que vêm no seguimento da aprovação da nossa Política Nacional de Coesão Territorial e das duas estratégias que decorrem desta Política Nacional: a estratégia de Descentralização e a Estratégia de Desenvolvimento Regional e Local. A Política Nacional tem uma abrangência transversal, implica todos os ministérios com responsabilidade no resultado de Coesão Territorial, sendo que esse resultado é o somatório da Coesão Social e da Coesão Económica . É nesta perspectiva que diferentes ministérios têm essa responsabilidade, designadamente o Ministério da Saúde, em termos de facilitar o acesso à Saúde e garantir mais e melhor Saúde; o Ministério de Educação, nas suas medidas de política de alargamento e de gratuitidade do Ensino e, igualmente, o Ministério da Família naquilo que é o combate à pobreza e erradicação da pobreza extrema. Em particular, e no que diz respeito às atribuições próprias do Ministério da Coesão Territorial, temos de fazer a coordenação entre os vários departamentos e desenvolver essas medidas para a correcção das assimetrias regionais e é aí que surgem estas duas Estratégias. Seja o regime financeiro dos municípios, que já foi apreciado na generalidade na sessão [parlamentar] passada, seja proposta de Lei que estabelece as bases do orçamento Municipal, que vai entrar nesta sessão [NR, a proposta foi, entretanto, retirada da agenda], todas estas iniciativas estão ligadas com a nossa perspectiva do desenvolvimento e da estratégia de descentralização, porque está-se a trabalhar, por via dessas propostas, o empoderamento financeiro dos municípios.
O que muda no regime financeiro? O Fundo de Financiamento Municipal?
Anteriormente, o Fundo de Financiamento Municipal contemplava 75% para o Fundo Municipal Comum e 25% para o chamado Fundo de Solidariedade. A inovação reside, em primeiro lugar, pela diferenciação da percentagem. O Fundo Comum vai passar a 65% e o Fundo de Solidariedade, que agora se vai chamar Fundo de Coesão Territorial, aumenta em 10%. A ideia é que este aumento venha poder ajudar-nos a corrigir as assimetrias regionais. Como vamos fazer isso? Recorde-se que lançamos, em parceria com o Instituto Nacional de Estatística (INE), o Índice de Coesão Territorial, que fez a avaliação de todos os municípios em relação àquilo que seria a convergência nacional, tomando como ponto de convergência as ilhas com maior equilíbrio em termos de coesão territorial. Então, esses 10% agora são acrescidos para fortalecer os municípios em função do Índice de Coesão. O Índice será anual, e o referente ao ano passado deverá ser anunciado pelo INE muito em breve, e teremos efectivamente uma margem, com objectividade e uma base científica, para fazer a aplicação dos recursos em função daquilo que é o Índice. É de referir que o índice tem na sua composição uma perspectiva territorial, uma perspectiva económica e uma perspectiva social e como tal vai permitir que em termos de medidas de política se trabalhe aquilo que mais faz falta em relação ao município. A grande novidade [do novo regime] é sem dúvida a alteração do percentual, mas também, e com particular relevância, o aumento dos recursos do Estado aos municípios que passa a ser não inferior a 15% das receitas provenientes dos impostos directos e indirectos do Estado. Isso, para garantir que haja uma previsibilidade e estabilidade em relação às receitas e que os municípios saibam de antemão, em perspectiva, como é que podem fazer a programação dos projectos de desenvolvimento municipal. Até agora, o Fundo do Turismo e o Fundo do Ambiente têm entrado para reforço daquilo que são as transferências do Estado, mas tal não está previsto dentro da própria Lei das Finanças Públicas o que significa que poderá variar de governo para governo. É óbvio que os governos têm legitimidade para alterar a Lei, mas este é um sinal significativo de como se quer que isto se perpetue para não ficar ao critério de quem entra.
E da parte dos municípios? O que se espera?
Assim como o governo está a fazer o seu esforço naquilo que é a transferência de recursos, os municípios também terão de fazer a sua parte, porque o objectivo da descentralização financeira é empoderar os municípios pela via de mais recursos, mas mais recursos implica também uma capacidade própria dos municípios em termos de geração de receitas e é neste sentido que também iremos apresentar, brevemente, no conselho de ministros para aprovação, o Regime sobre o imposto sobre propriedade e o Regime sobre Transmissão de imóveis. Nas receitas está-se, assim, a fazer uma reforma no sentido de tornar mais óbvia e fácil a aplicação deste imposto e generalizá-la de forma que realmente a prática seja conforme. Existe um estudo que foi feito há algum tempo que confirma que os municípios têm práticas muito diferentes, exactamente por causa da complexidade da compreensão e da definição do regime que está vigente. Aqui, o objectivo será alargar a base, ou seja, ter mais gente a contribuir, mais pessoas a pagar impostos e as Câmaras a terem mais arrecadação de receitas, mas num pressuposto de Justiça. Estou a falar numa perspectiva da Descentralização financeira, então é todo esse pacote.
Voltando ao Índice de Coesão Territorial. Em que consiste ao certo?
Este índice mostra quais são as dificuldades estruturais dos municípios. Basicamente, possibilita fazer uma análise sobre a evolução desses municípios e a consequência dos processos de desenvolvimento. As pessoas tendem a achar que é uma avaliação dos municípios, mas não é, nem pode ser. Foi feito no quadro desta Política porque também tínhamos como prioridade identificar os municípios prioritários. Para identificá-los, tínhamos de ter um medidor, e para esta concepção criou-se um índice que tem na sua composição vários indicadores. Portanto, é um instrumento para apoiar a tomada de decisões, elaboração de políticas e para fazer uma espécie de monitorização das assimetrias regionais. Este índice está a ser utilizado para a distribuição do Fundo de Financiamento Municipal, de acordo com a proposta que já foi sufragada, mas também será tomado em consideração por todos os ministérios na concepção das suas medidas de política, porque avalia a dimensão social, a dimensão económica e a dimensão territorial. Por exemplo, o Sal, de acordo com este índice, tem um défice em temos de infra-estruturas. Estamos a trabalhar com o ministério das infra-estruturas e do ordenamento do território, que está a fazer o plano nacional das infra-estruturas e dos equipamentos, e nós entramos com essa avaliação para que essa concepção possa ser melhor e possa traduzir aquilo que é a necessidade e a correcção das assimetrias das regiões, neste sentido.
Na sessão parlamentar desta semana, como referiu, está agendada a lei de bases do orçamento municipal. O que traz?
No fundo, estamos a querer concretizar a Constituição da República, que prevê que as autarquias locais devem ser dotadas de uma lei de base do orçamento que não existe até agora. Vai-se fazer uma espécie de alinhamento entre aquilo que é a base do orçamento do Estado, com o orçamento municipal, começando desde logo pela introdução dos princípios orçamentais que existem a nível da Lei de base do sistema nacional de Planeamento e da Lei de Base do Orçamento de Estado, fazendo também a consagração do Orçamento programa. Esta lei exige uma maioria qualificada de 2/3.
O orçamento Municipal contempla orçamento programa?
Já está no Orçamento do Estado e vai passar a estar no Municipal, caso venha a ser aprovado. Vai mudar a metodologia e a gestão orçamental municipal vai ser feita com base nos objectivos e resultados. Há também aqui um dado inovador que é fundamental que é o das assembleias municipais emitirem directrizes para a elaboração do orçamento, ou seja, empodera a Assembleia Municipal no processo de orçamentação, o que é muito importante porque traz algum equilíbrio em termos de valor dos órgãos a nível do município. Há alguma preocupação em relação à questão do género para fazer a promoção da igualdade de género e esta proposta regula também todo o processo orçamental nas suas várias fases: formulação, programação, aprovação. Traz novos prazos para apresentação do orçamento, exige que se garanta a consolidação orçamental, através da troca de informações entre os municípios e o governo central e também passa a ter um modelo participativo de gestão orçamental. Os municípios devem fazer uma auscultação e desenvolver depois, através de audiências e debates, aquilo que é a planificação, que é plurianual.
Temos assistido a algumas irregularidades detectadas nas inspecções a Câmaras e Fundos. Essas iniciativas trarão mais transparência, maior prestação de contas, no que toca a municípios e fundos?
A estratégia de descentralização, enquanto se preocupa com a descentralização financeira, também tem uma tónica fundamental no que respeita à prestação de contas. Neste sentido, todas essas reformas legais vão ter por base as plataformas electrónicas de prestação de contas automática, seja para o Tribunal de Contas, seja para as entidades que têm tutela. Existe uma tutela dupla em relação aos municípios que é feita pelo ministério das Finanças, na componente financeira e económica, e pelo Ministério da Coesão Territorial, na componente administrativa. Há mais recursos, mas também há mais exigência em relação à questão da prestação de contas. E esse regime de finanças locais também faz uma opção para que a prestação de contas em relação aos fundos seja feita nos termos gerais de Direito, ou seja, ao invés de fazer uma prestação pontual e em função daquilo que é disponibilizado pelo fundo, a prestação de contas é feita directamente no quadro daquilo que é a prestação de contas global dos municípios. Isto, para evitar uma espécie de dupla prestação de contas, mas também que sejam prestadas perante a entidade que faz controlo, que é o Tribunal de Contas. Portanto, a resposta é afirmativa.
Uma outra iniciativa de que há muito se fala é o novo Estatuto dos municípios. Qual o ponto de situação?
Já temos uma versão finalizada que vai ser apresentada em sede do conselho de ministros. É uma versão um bocado diferente daquela que existia, que esteve no parlamento e que caducou, que resultou, mais ou menos, da apreciação feita pelos autarcas. O sistema que temos em vigor desde 95, é um bom sistema, obviamente que ressente de alguma melhoria e de aprimoramento em função do decorrer dos anos, mas não pareceu ser consensual o aspecto do parlamentarismo municipal que estava previsto na proposta anterior e que parece estar agora na proposta do PAICV que já deu entrada. É nossa perspectiva que aquele formato poderá trazer mais dificuldades de funcionamento e que a fiscalização política da Assembleia Municipal em relação à Câmara sempre se pode fazer por outros meios e por outros mecanismos que não pela via das moções que são apresentadas como mecanismo de fiscalização política. Mas é um diálogo que vamos ter de construir.
Então, neste momento, sobre a mesa, estão só o regime financeiro e as bases do orçamento Municipal?
Sim, sendo que o governo tem duas propostas distintas, uma do regime financeiro e uma das bases do orçamento municipal, enquanto o maior partido da oposição apresentou uma proposta única com uma mistura entre os dois regimes, que é, na verdade, o que nós temos até agora, o regime vigente.
Ou seja, o governo vai fazer uma separação.
Sim, para que a matéria que seja de 2/3 – a base do orçamento – seja tratada na sua sede própria. Uma coisa é o procedimento para elaboração do orçamento, a forma como deve ser concebido, os seus princípios, etc., e outra é o mecanismo de financiamento dos municípios. São dimensões diferentes. Também de referir, no quadro da estratégia do desenvolvimento local, a aprovação na generalidade da iniciativa que visa estabelecer um sistema de planeamento do desenvolvimento regional.
E está também na calha o regime para correcção das assimetrias, que faz uma “discriminação positiva” das ilhas de mercado interno diminuto. Que medidas contempla?
Estamos a trabalhar essa iniciativa legislativa ainda numa fase preliminar. Temos de socializar e discutir com os vários departamentos porque tem implicações transversais, mas a ideia é criar um conjunto de incentivos para ajudar a promoção desse equilíbrio e correcção das assimetrias. Passa por questões do imposto, questões que possam levar à atracção dos quadros, que possam incentivar mais investimentos nestes municípios. Mas ainda estamos numa fase de discussão e validação interna.
E o programa de fomento à produção regional e local?
Isso também. Por isso é que nós aprovamos o sistema de planeamento, mas o sistema na verdade é um processo e um procedimento para se trabalhar os planos de desenvolvimento regional. Nós temos uma omissão a nível da lei de planeamento nesta matéria e foi por causa disso que tivemos necessidade de avançar com esta legislação de forma que o planeamento seja pensado nos seus vários níveis, com uma comunicação entre os vários sectores e os vários segmentos, por forma a se poder harmonizar. O nosso programa de fomento produtivo tem na sua base também um trabalho já realizado pelo ministério da Coesão, que é o perfil de especialização económica das ilhas, um estudo que fizemos para perspectivar aquilo que é o potencial, a alavanca do processo de desenvolvimento económico das várias regiões. Ou seja, há x factores que numa determinada região podem ter um impacto diferenciador para gerar um processo de crescimento económico com maior alcance e há medidas de estabilização e reconversão económica. Todas elas vão acontecer em função das regiões e em função daquilo que é esse perfil, que foi integrado no plano estratégico de desenvolvimento sustentável. Estamos a trabalhar com o Luxemburgo, que é um grande parceiro da descentralização, essa perspectiva do desenvolvimento regional que também é um instrumento da descentralização, porque estamos a falar de potenciar as perspectivas de desenvolvimento económico das regiões. Estamos neste momento a fechar com o Luxemburgo este pacote para podermos agora chegar às medidas económicas, para dar esse impulso necessário à exploração das potencialidades das ilhas e à contribuição de cada uma delas no processo de desenvolvimento económico.
Mas tendo em conta que algumas ilhas abarcam poucos sectores com potencial e outras, muitos, não se vai manter a assimetria?
Não vamos conseguir corrigir as assimetrias de uma assentada, mas é fundamental que tenhamos em perspectiva a base que irá determinar esse processo de mudança. Os modelos não são estanques, o que se vai tentar fazer é promover a reconversão económica, ou a diversificação, ou a estabilização mediante os mecanismos que forem identificados, mas passa, por exemplo, pela modernização dos factores produtivos; pela capacitação e pela formação; pelos diálogos que se impõe fazer com os sectores da agricultura para empoderar, por exemplo, a indústria alimentar onde ela é possível e a formação profissional virada para as potencialidades do território. No fundo, o que se pretende é canalizar um conjunto de acções para maximizar o potencial e as oportunidades.
Entretanto, quando o ministério iniciou funções havia a ideia de se criar um Fundo de Coesão Territorial. Ainda persiste ou este é o referido antigo fundo de solidariedade que foi rebaptizado no novo regime de financiamento?
Não decaímos na ideia. Uma coisa é ter o Fundo de Coesão Territorial enquanto parte integrante do Fundo de Financiamento Municipal, que acaba por ser a distribuição do valor, mas com critérios diferentes para correcção da assimetria, outra coisa é a nossa intenção de criar, efectivamente, um fundo para suportar as iniciativas e as medidas de Política da Coesão Territorial. Ainda não conseguimos criar este fundo enquanto uma realidade autónoma, porque já existem compromissos assumidos a nível do Fundo do Turismo e do Fundo do Ambiente, com directivas emitidas a longo prazo e que não podiam ser alteradas quando o que se quer é estabilidade. Mas, é algo em que vamos insistir e ver se conseguimos materializar. Pressupõe outras fontes, a conjuntura não é fácil, estamos perante um cenário de crise e temos de ter presente que não podemos onerar demasiado quando a conjuntura não é favorável, mas a ideia da sua criação, os propósitos do mesmo, são nobres e devem persistir.
Em jeito de conclusão, que perspectiva para a reforma que está em curso?
30 anos depois da instituição do poder local, estamos, neste momento, assistindo a uma grande reforma, que tem subjacente um empoderamento do poder local e das autarquias e é preciso que haja também uma dinâmica a nível dos municípios para que todas essas reformas depois possam ser colocadas em prática. Haverá necessariamente uma preparação, uma formação e capacitação dos municípios neste sentido, esperando que efectivamente, por via dessas reformas, consigamos fazer o reforço da democracia no sentido de ter o poder mais próximo das pessoas, ter os municípios com mais capacidade de intervenção política, de materialização e que contribuam mais no processo de desenvolvimento das economias locais e que, também pela via da alteração do estatuto, passem a ter responsabilidades na promoção do emprego, na promoção do desenvolvimento económico, etc. Ou seja, isto é, uma perspectiva global, transversal, de descentralização sim, mas também de empoderamento e de responsabilização dos municípios no processo de partilha de responsabilidades do processo de desenvolvimento.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1123 de 7 de Junho de 2023.