A presidente do ICIEG, Marisa Carvalho, em entrevista a este jornal, sublinha que com a proposta de criminalizar a homofobia, procura-se garantir a protecção e os direitos fundamentais de todos os cidadãos, independentemente da sua orientação sexual. O objectivo é incentivar o respeito pelas pessoas LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais), combater as agressões, quer a nível físico, quer psicológico, e criar uma sociedade mais inclusiva e livre de preconceito. A luta pela igualdade e pelo respeito à diversidade torna-se cada vez mais importante em busca de uma sociedade justa e progressista, defende.
“Nós temos esta preocupação, temos estado a trabalhar com e para a comunidade LGBTI. Em 2022, foi aprovado o Plano Nacional de Igualdade do Género que inclui acções concretas para abordar as questões enfrentadas pela comunidade LGBTI. Embora exista uma lei especial da Violência Baseada no Género (VBG) que abrange casos de violência, independentemente da orientação sexual, ainda existem situações relacionadas à homofobia que não são abrangidas pela lei. Portanto, a criminalização da homofobia tem sido uma preocupação para o ICIEG”.
O objectivo é garantir a segurança, os direitos e o bem-estar da comunidade LGBTI, promovendo um ambiente inclusivo e respeitoso, através da legislação, conscientização e colaboração com a comunidade LGBTI, acrescenta.
Criminalização da homofobia
De acordo com esta responsável, o ICIEG trabalhou no passado com a Comissão Nacional dos Direitos Humanos e Cidadania (CNDHC) numa proposta de lei, que já deu entrada na Assembleia Nacional, e aguarda agora agendamento para votação e posterior aprovação.
“Mas a proposta”, salvaguarda Marisa Carvalho, “não contempla exactamente a questão da homofobia, que nós achamos que merece uma atenção especial.”
Entretanto, um “dos problemas que temos é a falta de dados e outras informações relativamente a esses casos que sabemos que ocorrem com a comunidade LGBTI”.
Esta comunidade, como observa, é muito resguardada, silenciada mesmo, então não há ainda vozes suficientes, na sociedade, a trabalhar estes casos. Assim, o ICIEG quer dar voz e uma atenção social a esta comunidade.
Marisa Carvalho sublinha que a ideia é trabalhar junto com as associações para conhecer de perto os casos que possam servir de exemplo e perceber o que é que não funciona e como tratá-los da melhor forma. Esta responsavel refere ainda que a Constituição da República condena qualquer tipo de discriminação, mas não trata a homofobia directamente. Segundo a presidente do ICIEG, é necessario ajustes na lei e especificar os casos de homofobia, o que permitirá um melhor tratamento judicial que possa ser enquadrado e penalizar os infractores.
“Essa questão da homofobia tem muito a ver com as construções de Género. Sendo uma questão de género, pode ser enquadrada na questão da VBG. Infelizmente, tem havido alguns casos de discriminação, de perseguição, mas há uma resistência por parte das pessoas em fazer a denúncia. Nós temos que trabalhar para que realmente seja feita a justiça e que as coisas funcionem, que sejam punidos. Temos que trabalhar com todos os parceiros envolvidos, não só as autoridades, como o sistema de saúde, por exemplo, a escola, as próprias famílias e comunidades”, explicou.
Neste momento, embora haja já países onde a lei funcione muito bem em questões de homofobia, Cabo Verde está ainda numa fase muito embrionária no que toca a esta problemática.
“Infelizmente, ainda estamos nesta fase, temos estruturas locais em que pessoas são maltratadas por conta da sua orientação sexual”, analisou.
Associação LGBTI da Praia
Por sua vez, a presidente da Associação LGBTI da Praia revela que há, sim, muitos casos de agressão tanto verbal como física a pessoas LGBTI. Sandra Tavares testemunha que pessoalmente já foi maltratada e já presenciou colegas a passarem por “agressão gratuita”, só pelo facto de terem uma orientação sexual diferente daquilo que é padronizado pela sociedade. Esta representante da comunidade LGBTI da Praia chama a atenção de todos os agentes sociais para trabalhar uma visão mais “humana das pessoas LGBTI” e o respeito e empatia para com esta comunidade.
“Queria realçar que a criminalização da homofobia em Cabo Verde é necessária e urgente. Temos, sim, casos de pessoas LGBTI que são agredidas física e psicologicamente. Hoje em dia, sobretudo nas redes sociais, vemos pessoas a disseminar o ódio, a incentivar a agressão contra a comunidade LGBT. É um assunto que passa muitas vezes despercebido e quem sofre essas agressões, de acordo com a nossa realidade, é descrente no sistema da justiça, vemos muitas situações em que a pessoa abre mão de prestar queixa. Sabemos que vamos ser alvo de chacota, nem sequer querem ouvir o nosso depoimento, já somos tratados à primeira vista como criminosos”.
Assim, reitera, é preciso trabalhar em prol de uma lei que condene a ofensa, o desrespeito, a agressão física e verbal, a violência nas redes sociais e em outros contextos, de que são vítimas as pessoas LGBTI.
O que ter em conta
O jurista Marco Paulo Silva, por seu turno, recomenda uma ampla socialização sobre a questão da homofobia e propõe a realização de um inquérito/ sondagem de âmbito nacional sobre a temática.
“A Constituição da República, quando foi discutida e aprovada no Parlamento, não foi formatada no sentido de abranger a homofobia, visto que esta temática na altura não se conhecia e não se debatia na sociedade cabo-verdiana. Por conseguinte, a nossa lei fundamental não prevê nenhuma protecção jurídico-constitucional relacionada à homofobia. Para haver alguma protecção legal relativamente à homofobia, em primeiro lugar, deveria o ICIEG propor aos parlamentares um projecto lei de revisão constitucional nesta matéria. De seguida, esse mesmo diploma poderia ser discutido e aprovado no parlamento, devendo a Constituição ser alterada, permitindo que as relações conjugais homo-afectivas sejam consagradas na lei fundamental, bem como nos direitos fundamentais consagrar que o princípio da igualdade e da não discriminação possam englobar as relações homo-afectivas”, sugeriu.
Marco Paulo Silva explica que a estas alterações no plano constitucional, devem seguir-se alterações no plano infraconstitucional, alterações no Código Civil, permitindo casamentos entre pessoas do mesmo sexo, adopção de crianças por cônjuges do mesmo sexo, entre outros aspectos.
“Por isso, a meu ver, essa questão da homofobia deve ser levada muito a sério, mas deve-se ter em conta que vivemos num país de matriz cristã e devemos respeitar os costumes e os hábitos culturais e religiosos do povo cabo-verdiano. Considero até que, tendo em conta que é uma questão que irá afectar muito os hábitos sócio-culturais e religiosos do país, poderia ser levada a referendo nacional, onde o povo democraticamente iria decidir se aprovaria ou não as relações homo-afectivas.
O advogado defende pois, uma ampla auscultação à população sobre essa temática.
Este jurista acredita também que a criminalização da homofobia para Cabo Verde é algo muito delicado. Silva sugere que se deve definir o que é a homofobia e o que são relações homo-afectivas, em primeiro lugar e saber o que criminalizar.
“Se uma pessoa emitir a sua opinião a dizer que não concorda com relações homo-afectivas, isso não pode e nem deve ser motivo para chamar essa pessoa de criminosa e, por exemplo, mandar essa pessoa para a cadeia. Há esse risco. Porém, humilhar, ofender e até agredir pessoas que estão em relações homo-afectivas, aí sim, estaremos perante uma postura criminosa do agressor. Por isso, e por outras questões, é que esta temática deve ser amplamente debatida na sociedade cabo-verdiana, visto ser algo novo e pouco conhecido em Cabo Verde. Lembremos esta máxima: O meu direito termina onde começa o direito do outro. Respeitemo-nos uns aos outros!”
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Plano Nacional de Igualdade do Género
População LGBTI
A adesão de Cabo Verde à Equal Rights Coalition, em 2017, impulsionou o processo de visibilização na agenda pública da discriminação vivenciada pela população LGBTI, numa perspectiva de protecção e promoção dos Direitos Humanos.
Nesse ano, entrou em vigor do II Plano Nacional de Ação para os Direitos Humanos e a Cidadania (2017-2021/CNDHC), o qual contempla um conjunto de medidas direccionadas à promoção e protecção das pessoas LGBTI, entre as que se destaca, pela sua importância, a inclusão expressa na Constituição da República e em outros instrumentos jurídicos da proibição da discriminação em função da orientação sexual.
A revisão do Regime de Execução da Política Criminal já inclui os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, entre os crimes de prevenção prioritária, mas devido à sua especificidade, o Ministério Público, tem muitas dificuldades em enquadrar o crime.
Entretanto, em Novembro de 2020 a CNDHC apresentou, na Praia, um Estudo Diagnóstico sobre a situação social e jurídica das pessoas LGBTI em Cabo Verde. O espaço de debate permitiu, mediante a recolha de testemunhos e contribuições da sociedade civil, aprofundar os elementos de diagnóstico que colocam este grupo dentro da categoria de vítimas de crimes de ódio e discriminação e com vulnerabilidades específicas tanto económicas como sociais. As situações expostas indicam que o quadro legal, os serviços e as medidas específicas de protecção às vítimas de VBG e as práticas em vigor nos serviços de saúde sexual e reprodutiva, não dão resposta às suas especificidades.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1124 de 14 de Junho de 2023.