Em entrevista ao Expresso das ilhas, a PCA da ARME, Leonilde dos Santos fala, entre outros temas, dos desafios desta agência, e do presente e futuro da regulação, no geral, e nos diferentes sectores económicos regulados, em particular. A criação de um ambiente que satisfaça empresas e consumidores mantém-se o desiderato da agência, e olhos estão postos no desenvolvimento sustentável, sob o qual a regulação actuará numa economia cada vez verde e também mais digital.
Que avaliação faz do impacto das decisões regulatórias no país?
As decisões regulatórias, mormente as da ARME, que abrangem os sectores das comunicações, energia, água e transportes colectivos urbanos e interurbanos de passageiros têm impactado, sobremaneira, a economia do país, com resultados positivos, quer para a vida das entidades reguladas, quer para os consumidores. A ARME, em concreto, e no âmbito das suas atribuições, tem vindo a assumir-se como uma peça fundamental para o desenvolvimento da economia do país, na base de uma regulação moderna e alinhada com as melhores práticas, em ordem a dar respostas efectivas aos desafios dos sectores que regula, e do próprio país.
Diz-se que “em regulação não há modelos perfeitos”. Concorda? O que define, do seu ponto de vista uma boa regulação?
Na realidade, em regulação não há modelos estanques, ou seja perfeitos ou imperfeitos, na medida em que ela tem de estar alinhada com as políticas públicas sectoriais, que diferem de país para país. Ou seja, a regulação deve respeitar o quadro legal dos respectivos países; olhar para as diferentes realidades de desenvolvimento socio-económico existentes; ter em atenção o nível de maturidade de todo o ecossistema regulatório dos países; considerar o sistema político vigente, entre outros. Portanto, consideramos que uma boa regulação é aquela que garante e cumpre as diferentes realidades regulatórias dos países. Entendemos, por isso, que para se atingir este propósito, as decisões regulatórias têm de ser ágeis, transparentes, previsíveis, coerentes e actualizadas. Nestes termos, uma boa regulação é aquela que assegura facilmente o mercado concorrencial e estável, gerador de emprego e criador de riqueza nacional, um elemento essencial para agregar a confiança e um bom ambiente de negócios, o que contribui para a atracção de investimento privado, tanto nacional quanto estrangeiro. Por conseguinte, o que se espera é que as decisões regulatórias garantam a estabilidade económico-financeira das empresas reguladas, por um lado e, por outro, salvaguardem os legítimos interesses dos consumidores.
A ARME resulta da junção de duas reguladoras: a ARE e a ANAC. Cerca de 5 anos depois, que avaliação se pode fazer dessa fusão?
De facto, a ARME, criada em 2018, resulta da extinção da ANAC e da ARE, duas entidades reguladoras independentes caracterizadas por um longo e consolidado percurso a nível da regulação sectorial. A criação da ARME aconteceu no quadro da reforma do sector de regulação em Cabo Verde, cujo objectivo central foi o da racionalização das estruturas e consequente diminuição dos custos de funcionamento, eficácia e eficiência na regulação, assente numa larga visão de conjunto dos serviços essenciais. A ARME completa no próximo mês de Setembro 5 anos sobre a sua criação. Não obstante o facto de ter sido criada há relativamente pouco tempo, ela é hoje uma entidade consolidada no que diz respeito às decisões regulatórias, que se destaca pelo nível de capacitação dos seus quadros técnicos, mas ainda assim, tem muitos desafios pela frente, quer a nível interno, quer no contexto externo. Desta forma, a nossa aposta tem sido nas pessoas, ou seja, na valorização dos nossos colaboradores, para as quais temos vindo a trabalhar para a implementação de uma política de incentivos e capacitação, exigindo, por outro lado, a cooperação e colaboração de todos na união e conjugação de esforços, para que, juntos, possamos consolidar a fusão ocorrida em 2018. Além da valorização de RH, temos mais dois vectores nos quais assentam a nossa gestão. Tem a ver com a comunicação integrada e a desmaterialização. Outrossim, damos particular atenção aos consumidores, apostando fortemente na sensibilização e informação sobre todos os sectores regulados.
Quais têm sido os maiores desafios que a ARME tem enfrentado?
A ARME, enquanto entidade reguladora independente, dispõe de competências estatutárias de regulamentação, supervisão, fixação de preços e de aplicação de sanções. Neste sentido, os desafios são diversos. Mas apontaríamos aqui alguns que urgem enfrentar. Desde logo, temos de trabalhar para consolidar a fusão das duas entidades reguladoras distintas; implementar os instrumentos regulatórios existentes e elaborar outros tantos que se encontram em pipeline. Depois temos de adequar algumas legislações às diferentes realidades sectoriais reguladas pela ARME, para que possamos garantir a confiança dos consumidores, através de uma comunicação simples, assertiva e prática. Um outro grande desafio, no que diz respeito às comunicações electrónicas, tem a ver com o acompanhamento e, naturalmente, com a adequação da regulação face ao desenvolvimento da Economia Digital, já que o modelo de regulação com o qual trabalhamos têm vindo, ao longo dos anos, a sofrer alterações. A título de exemplo, o modelo de atribuição de autorizações para a prestação de serviços de comunicações electrónicas, não é atribuído por serviços separados conforme a tecnologia, mas sim, por um título único, designado por autorização geral, que comporta todos os serviços associados. Por isso, considerando as alterações do quadro legal para responder à evolução e desenvolvimento da Economia Digital urge, igualmente, adequar todos os instrumentos regulatórios às novas exigências do mercado.
Cabo Verde é, por tradição, e devido também às suas características, um país de monopólios. Como a ARME tem trabalhado para a criação de um mercado concorrencial?
Desde logo, é necessária uma estratégia pública para os sectores que tenham monopólio e, no âmbito do quadro legal definido, o regulador deve garantir o cumprimento das regras fixadas para a promoção e desenvolvimento do mercado concorrencial. É por isso que, para a promoção da concorrência efectiva, temos feito uma forte aposta na regulação participativa, auscultando e dialogando com todos os stakeholders e players do sistema, atendendo às melhores práticas internacionais, de forma a assegurar a credibilidade e a qualidade das decisões regulatórias, em Cabo Verde. Neste sentido, com destaque para o sector das comunicações electrónicas, a fim de garantir o desenvolvimento de uma efectiva concorrência, o regulador deve analisar e declarar os mercados relevantes, identificar os operadores com poder de mercado significativo e impor os devidos remédios regulatórios. O sector postal é um exemplo paradigmático, em que o quadro legal definido determina a competência ao regulador para a análise e liberalização do sector, estando a ARME neste momento, com o desafio de estabelecer e concretizar um roteiro de liberalização do mercado e da implementação de um calendário de actividades para a sua efectiva execução, que pretendemos que fique concluído em 2026, em estreita articulação com o Governo. No que tange ao sector da Electricidade, está em curso, ao abrigo da lei, a separação da Electra em novas sociedades anónimas (desverticalização), que incluem as empresas de produção, distribuição e operador nacional de sistema elétrico, o que permitirá separar as actividades monopolísticas (distribuição e operação do sistema elétrico), das concorrenciais (a produção).
A ARME é uma reguladora independente, mas o governo e as direcções nacionais também regulam. Como tem sido essa relação entre reguladora independente e reguladora governamental?
Na verdade, à luz da Constituição da República, cabe ao Estado a competência da regulação do mercado. Porém, o Estado pode criar autoridades reguladoras independentes e transferir essas competências, que podem ser económicas e/ou técnicas, dependendo dos casos. Tanto num caso como noutro, o Estado deve definir as políticas públicas atinentes a sectores regulados. A ARME, por exemplo, regula económica e tecnicamente o sector das comunicações, mas para os demais sectores só garante a regulação económica, sendo certo que, ao abrigo dos nossos estatutos, as competências técnicas devem ser transferidas para a ARME. No que diz respeito às relações institucionais entre o regulador independente e o Governo, elas têm sido marcadas por uma aposta forte na regulação de proximidade, diálogo e transparência, com todos stakeholders, tanto público como privado.
Qual é o sector que vos dá “mais dores de cabeça”?
Todos os sectores regulados têm as suas particularidades, sobretudo, os regulados pela ARME, que abrangem serviços essenciais à vida humana e são sectores-chave para o desenvolvimento económico e social do país. Acresce, ainda, o facto de estarmos perante uma conjuntura mundial difícil e de imprevisibilidade, e, também, os desafios à escala mundial e nacional, da transição energética, da evolução e do desenvolvimento da economia digital, que impactam diretamente na actuação do regulador e, em concreto, nos sectores regulados pela ARME, exigindo atenção especial e aceleração das suas actuações. O sector da água, em particular, sendo a água um bem escasso, sobretudo, na nossa realidade, é o sector em que mais desafios temos. Entretanto, requer a adopção de medidas de políticas públicas e estratégicas para a sua valoração, preservação e conservação, principalmente o uso racional pelos consumidores. A ARME tem tido um importante papel de educar o consumidor para um consumo sustentável da água. Como já dissemos, uma das atribuições da ARME é garantir a sustentabilidade das entidades reguladas e proteger os interesses e direitos dos consumidores. Neste quesito, temos o grande desafio de redução das perdas técnicas e comerciais, que são elevadas, derivada de questões operacionais, de infraestruturas, em alguns casos obsoletas, e pelo furto, assim como o desafio da promoção da eficiência hídrica.
E quanto às queixas que vos chegam? Há muitos consumidores que não se queixam, pois acham que não terão resposta. Como estão organizados, hoje, para dar essas respostas aos cidadãos?
A ARME, após a sua criação, em 2018, sentiu a necessidade de modernizar o Sistema de Gestão das Reclamações (SGR) existente e em 2019 efectuou actualizações no sistema, a fim de adaptá-lo e permitir a interacção entre os vários intervenientes sectoriais, como os consumidores, as reguladas e a ARME. Na ARME existe um departamento específico de apoio ao consumidor, tendo o mesmo, entre outras, as funções de assegurar o atendimento ao consumidor, através dos mecanismos de recepção de queixas e reclamações e promover, em matéria de resolução de conflitos entre os operadores e consumidores, acções de conciliação e mediação, bem como realizar atendimento presencial, onde auxilia na formulação das reclamações, presta informações e esclarecimentos necessários aos consumidores e prepara as respectivas respostas. As reclamações que dão entrada na ARME, quer por via das folhas de reclamações, cartas, correio eletrónico, através desac@arme.cv, e por via da minuta (presencial), são inseridas no SGR e é dado o devido tratamento, designadamente: triagem, análise das alegações das reguladas e conclusão do processo, que culmina com a inserção da resposta final, tendo em conta a natureza das reclamações. Neste sentido, a ARME tem à disposição dos consumidores, vários canais de comunicação, designadamente o portal do consumidor, www.consumidor.arme.cv, email sac@arme.cv ou infoarme@arme.cv, através dos quais os consumidores podem enviar as suas reclamações e/ou denúncias. Assim, a título de exemplo, e recorrendo à estatística da ARME de 2019 até a presente data, o SGR já registou um total 1.158 reclamações, sendo que 1.035processos foram concluídos e os restantes 123estãoem análise. De Janeiro a 31 de Maio do ano em curso, a ARME inseriu no sistema, 156 reclamações, sendo, 29 em Janeiro, 44 em Fevereiro, 25 em Março, 31 em Abril, e, em Maio, 27.
Na água, tal como na electricidade, continuamos ano após ano a pagar os custos da ineficiência. Como a ARME tem olhado para esta situação?
Toda a regulação visa a eficiência, justiça tarifária e qualidade de serviço. A eficiência é um processo dinâmico cujas metas são estabelecidas em cada período regulatório. Assim, as tarifas definidas conforme as metas estabelecidas devem cobrir os custos eficientes para prestação dos serviços regulados, que quando não cobertos podem resultar na dificuldade ou mesmo em não prestação de serviços essenciais, com consequências económicas graves para os consumidores, as indústrias e a economia do país. A resolução do custo de ineficiência no fornecimento de água e energia requer uma abordagem multidisciplinar, envolvendo investimentos financeiros, tecnológicos, regulatórios e uma mudança de cultura em relação ao uso dos recursos. Melhorar a infraestrutura é fundamental para reduzir as perdas técnicas no fornecimento de água e energia. Isso envolve modernizar e actualizar as redes de distribuição, substituir equipamentos obsoletos, melhorar a manutenção e investir em tecnologias mais eficientes. Por isso, a ARME, cada vez mais, tem vindo a estabelecer critérios de eficiência, de acordo com o desenvolvimento desses sectores e a realidade do país, para a aceitação de custos de prestação desses serviços, que sejam os mais adequados, quer para os consumidores, quer para a realidade das operadoras desses serviços. Ainda de referir que, nos sectores da água e electricidade, a ARME tem trabalhado com as entidades reguladas, na aplicação dos diferentes regulamentos, sobretudo, o regulamento comercial, que certamente irá melhorar a qualidade de serviços prestados aos consumidores e também a redução de perdas no abastecimento, que neste momento é elevada.
E, antes de passarmos ao digital, como está a situação regulatória nos combustíveis e transportes?
No que diz respeito aos combustíveis, a situação regulatória é considerada normal, já que se trata de um sector que tem um mecanismo próprio de fixação de tarifas e preços, simples, transparente, previsível e que funciona de forma automática. Já em relação aos transportes colectivos urbanos e interurbanos de passageiros, estamos a trabalhar no novo regulamento tarifário, para atender as exigências do novo Regime Jurídico do Serviço Público de Transporte Regular Colectivo de Passageiros.
Cabo Verde quer afirmar-se como um arquipélago digital e várias apostas do governo vão neste sentido – o Parque tecnológico é um exemplo. Qual o papel, ou contributo da ARME, nesta visão?
A ARME, enquanto regulador do sector das comunicações electrónicas, tem um papel importante em criar condições regulatórias que garantam o acesso às infraestruturas, principalmente às irreplicáveis, para a prestação de serviços em condições competitivas, em publicar dados relevantes do sector, atribuir autorizações temporárias para projectos que promovam a inovação, bem como a gestão do espectro radioeléctrico, importante para introdução de novas tecnologias no mercado, além do seu papel relevante no âmbito da segurança e integridade, ao abrigo das legislações de protecção de infraestruturas críticas. Ora, todas essas condições são relevantes para o desenvolvimento de qualquer projecto no âmbito da economia digital, principalmente para o Parque Tecnológico, importante infraestrutura, cujo objectivo é promover um ecossistema de inovação tecnológica e empreendedorismo de base regional, através das suas principais componentes de negócios, incubação, certificação e treinamento, Data Center, etc.
Fala-se muito da regulação pelo mercado. Que o mercado, em várias questões, acabará por ditar as regras. Até onde se deve deixar o mercado auto-regular-se?
A regulação existe para os mercados monopólio e oligopólio, onde não fosse a regulação haveria abuso de poder do mercado dominante. Já na auto-regulação pressupõe que os mercados por si sós têm a capacidade de estabelecer os seus próprios mecanismos e regras regulatórias. No nosso caso e na maioria dos sectores que são regulados pela ARME, não obstante ao estágio de evolução de alguns com avanços significativos, ainda carecem de intervenção do Estado em matéria da regulação, para manter a sua estabilidade e equilíbrio económico-financeiros do mercado. Quanto maior o estágio de desenvolvimento da concorrência nos mercados, menor a intervenção regulatória. Havendo concorrência, naturalmente, vai-se alterando e até suprimindo as medidas regulatórias adoptadas.
Tendo em conta que a inovação acontece a ritmo diário, principalmente no mundo digital qual é a melhor solução: mais regulação, menos regulação?
Essa é uma pergunta interessante. A regulação por si só não é estanque, ela é muito dinâmica e vai sofrendo alterações conforme a própria dinâmica dos mercados, o sector das comunicações electrónicas, se reparar, tem vindo a sofrer muitas alterações ao longo dos anos devido, principalmente, à evolução tecnológica. Falar de mais ou menos regulação depende da dinâmica dos mercados e do estágio de concorrência nos mesmos. Por exemplo, em 2011, 2012 (…) a intervenção do regulador era consistente com os 16 mercados relevantes existentes, o que exigia uma maior atenção do regulador face às situações de abuso de posições dominantes. Actualmente, já não temos o mesmo número de mercados, conforme resulta da última análise ao mercado, realizada em 2020, onde se declarou apenas 10 mercados relevantes, exigindo-se menos intervenção do regulador, devido ao estágio do desenvolvimento da concorrência. Nos termos do quadro legal em vigor, o regulador deve intervir, alterando, suprimindo, ou, até acrescentando remédios regulatórios nos mercados identificados que ainda não alcançaram uma concorrência efectiva. Nas comunicações electrónicas a ARME deve retirar, alterar ou manter as medidas conforme a evolução do mercado e da própria concorrência. Por isso, a regulação no mundo digital terá sempre em consideração as dinâmicas dos mercados e os avanços tecnológicos, e o mais importante é que o regulador garanta mais e melhores escolhas ao consumidor em termos de preço e qualidade de serviço.
Quais considera serem os próximos grandes temas da regulação, em particular da ARME?
Ora, sem dúvida que o desenvolvimento sustentável dos sectores vai-se manter nos próximos anos, pelo que precisamos mudar a nossa forma de ver para o nosso planeta e protegê-lo. Este deve ser o foco de todos nós! Nas comunicações electrónicas, acreditamos que a regulação dos OTT (operator over the Top) continuará no debate internacional e, será uma realidade, a inteligência artificial e os seus efeitos, as energias renováveis como uma realidade incontornável, a literacia digital, a educação para o consumo é extremamente importante, a segurança e integridade de redes e a cibersegurança. Ademais, temos, ainda, a transição energética, que implica a passagem da utilização de energias fósseis para a energia limpa o que exige, uma nova forma de regular estes dois sectores. Finalmente, o sector da água aparece também como um dos grandes temas da regulação no futuro. Estamos a referir à redução de perdas técnicas e comerciais, através de estabelecimento de metas de eficiências e monitorização do cumprimento das mesmas.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1126 de 28 de Junho de 2023.