Para realizar esta ambição Cabo Verde deve, neste ciclo 2022-2026, posicionar-se como um forte provedor de produtos e serviços para o continente Africano, capitalizando as apostas já feitas no ecossistema tecnológico como a Governação Eletrónica e o Parque Tecnológico. Uma economia transformada e digitalizada é uma economia preparada para enfrentar os desafios e ameaças globais e a digitalização da economia é um factor de competitividade global. A transformação/transição digital é o tema principal desta entrevista com o Presidente do Conselho de Administração do NOSi, Carlos Tavares Pina.
O plano de actividades para 2023 refere que o NOSi quer consolidar a posição de força motriz para operacionalizar a estratégia Cabo Verde nação digital. Que balanço podemos fazer até ao momento?
O balanço é positivo. Há quatro anos definimos três eixos de actuação. O primeiro eixo que será, digamos, aquilo que é o pilar central, é identidade e autenticação digital. Nesse eixo, posso-lhe garantir que estamos a cerca de 90% daquilo que eram as actividades programadas. Implementamos o novo modelo de autenticação, mais seguro, mais confiável, mais adaptável aos riscos da cibernética. O ciberataque que tivemos em 2020 obrigou-nos a acelerar esse modelo de autenticação forte e seguro. Implementamos o NOSi-CA, o NOSi enquanto entidade certificadora, o que está a ajudar no processo de confiança nas transações digitais. Implementamos também, em parceria com os vários stakeholders, a chave móvel digital, o que veio facilitar toda a activação das funções digitais do cartão nacional de identificação, o que, para nós, é fundamental para a transição digital, a identidade e a identificação digital. Depois definimos também um segundo pilar, que é a interoperabilidade entre sistemas. Porque o NOSi, até 2012, 2013, assumia na íntegra todo o desenvolvimento do sistema de coordenação digital, mas chegou uma altura em que o NOSi já não conseguia dar resposta. Era preciso trazer o sector privado, mas punha-se a questão de ter um privado a desenvolver para o Estado, sendo, digamos, um sistema monolítico. Investimos fortemente nas várias soluções de interoperabilidade, transformando aquilo que é o nosso principal produto, o nosso framework de desenvolvimento, num framework open source, disponibilizado gratuitamente. Portanto, também nesse pilar acreditamos que conseguimos bons resultados. Depois, temos o terceiro pilar, que é a inovação disruptiva nos produtos e serviços. Aí sim, precisamos acelerar, porque tem a ver com a própria reestruturação do NOSi em curso, tem a ver com o capital humano do NOSi, que está em processo de reestruturação, tem que ver com aquilo que são as tecnologias emergentes que o NOSi tem que ter capacidade de adaptar, de adoptar e orientar, ou sugerir ao governo as melhores soluções, tem a ver com aquilo que o sector privado possa interoperar do ponto de vista das competências, da inovação, do processo dos produtos com o NOSi. Estamos a trabalhar, mas os próximos dois anos serão sobre este último pilar, em que vamos acelerar. Portanto, de uma forma resumida, diria que sim, conseguimos, e estamos com bons resultados nesse nível.
Quais considera serem os principais desafios que o país enfrenta nesta jornada de transformação digital?
Muitos desafios, como é óbvio, olhando para como a tecnologia está a transformar a sociedade e a sociedade também vai obrigando a que a tecnologia se adapte às suas necessidades. Mas penso que o país, que o NOSi – enquanto entidade que tem a responsabilidade de garantir a operação digital para melhorar a vida das pessoas e das empresas – têm aqui um grande desafio que é a cibersegurança. É um grande desafio porque não é possível pensar e conceber a Internet das Coisas sem ter cibersegurança. Não é possível pensar e conceber soluções de Inteligência Artificial sem ter cibersegurança. Não é possível pensar em Realidade Aumentada sem ter cibersegurança. Este é o grande desafio do país enquanto pequeno Estado insular e arquipelágico que quer posicionar-se como um hub tecnológico da inovação no Atlântico Médio. E pela nossa história, em que a segurança tem sido um grande património, e reconhecido, o país tem este grande desafio de dar um salto, porque do ponto de vista físico, a segurança é mais fácil para um país insular. Mas do ponto de vista digital, já não é. Porque a cibersegurança não tem fronteira. O país precisa de perceber claramente que tem que investir forte na cibersegurança, do ponto de vista tecnológico, mas também do ponto de vista da consciencialização de todos, com uma literacia digital muito forte, transversal à sociedade.
Vamos voltar à cibersegurança, mas para já perguntava-lhe qual é, na sua opinião, o estádio de maturidade digital do país?
Com uma única palavra, diria: médio, porque olhando para aquilo que são os indicadores do Banco Mundial que caracterizam o estado de maturidade digital e a governação digital, estamos bem posicionados, no grupo dos melhores, mas temos aqui questões urgentes e críticas que temos de resolver, nomeadamente a disponibilização de serviços online. Temos vários serviços online, mas disponibilizar serviços online 24x7, de forma ubíqua, é um grande desafio, para que tanto os cidadãos residentes do país como os cidadãos da diáspora, independentemente do local em que este cidadão esteja – seja na ilha de São Nicolau ou em Nova Iorque – possam aceder os serviços digitais, em igualdade de circunstância, tendo a mesma experiência e a mesma rapidez e segurança. Depois, tem a componente da própria participação, ou seja, os cidadãos co-participarem na realização do serviço. Porquê? Porque hoje já não é como antigamente em que o Estado pensava o serviço e disponibilizava-o, hoje o próprio cidadão, a sociedade, pode co-criar serviços e a própria sociedade pode disponibilizar serviços públicos, este é o grande desafio do digital, de fazer co-criação com a sociedade e naturalmente trazendo o sector privado para os serviços públicos. Se tivermos uma autenticação digital forte, segura e confiável, assente no cartão nacional de identificação, naturalmente os bancos vão acelerar o seu processo de digitalização, a Electra o mesmo, as telecomunicações também, e por aí fora, portanto há aqui uma necessidade de co-criar, do Estado abrir para a co-criação e esta pode ser uma área em que se acelerarmos o passo, podemos melhorar em termos de mobilidade digital. Como também refere o relatório do Banco Mundial, a participação da sociedade na co-criação de serviços públicos é uma área que Cabo Verde pode e deve melhorar. Por isso, diria que estamos num nível de maturidade médio, mas que facilmente podemos chegar a um nível superior de maturidade digital.
Voltando então à questão da cibersegurança, a exigência de cibersegurança depende da literacia digital dos cidadãos. Acha que já há essa pressão social, e eu digo pressão social entre aspas, para que tudo seja impecável em termos de cibersegurança?
Eu penso que é o contrário, as pessoas não têm a noção de que nunca teremos uma solução tecnológica 100% segura e que a cibersegurança depende em mais de 50% dos nossos comportamentos. Portanto, a solução tecnológica é importante, ajuda, mas na questão da cibersegurança a consciencialização é muito importante, não só para pessoas que só utilizam a internet para chamadas ou facebook – e que precisam de ter a noção de que os seus dados estão a ser expostos, que há risco – mas esta consciencialização precisa ser incutida inclusive em nós, e quando digo nós, falo dos que estamos nesta área do digital, porque mesmo um técnico qualificado muitas vezes, consciente ou inconscientemente, põe em causa a segurança cibernética. Portanto, esta questão da consciencialização para a cibersegurança é ter esta consciência que existe risco, que nunca teremos uma solução tecnológica e que dependerá sempre, sempre, do nosso comportamento, da nossa postura perante as ameaças. Se tivermos um bom carro, com airbags, com um conjunto de dispositivos de segurança, estamos melhor preparados para eventuais acidentes, mas o nosso comportamento ao volante, a nossa atitude na estrada, vai pesar sobremaneira se temos um acidente ou não. Isto é exatamente a mesma coisa com a cibersegurança porque há situações em que montamos dispositivos, mecanismos, todo um sistema de firewall, de antivírus, mas dificilmente estamos imunes de receber um spam ou um ataque de phishing, é aqui que se põe a questão de como o comportamento vai definir a cibersegurança.
Por falar em comportamento, a cibersegurança é um conceito que já foi absorvido pela administração pública?
Não, ainda não. É claro que é uma consciência em que o NOSi tem trabalhado permanentemente, mas precisamos intensificar estas iniciativas de consciencialização, temos feito actividades e implementado protecções, mas precisamos de mais, é preciso trabalhar mais intensamente nesta área.
O NOSi é o braço operacional, digamos assim, da economia digital cabo-verdiana, esta estratégia para a transformação digital está presente no PEDES II e eu perguntava-lhe: Cabo Verde está a ser suficientemente ambicioso? Podia-se ir mais além? Ou estamos onde devíamos estar neste momento?
Se me pergunta se estamos onde devíamos estar neste momento, eu digo que não, não estamos onde devíamos estar, devíamos estar muito mais acima. Agora, a nível da ambição, eu penso que o governo tem uma ambição muito forte e nunca o país fez tanto investimento como está a fazer hoje na área digital. O mundo está em transformação digital, todos os países estão a fazer esse investimento, mas mesmo perante desafios complicados como a seca severa, pandemia e a guerra na Ucrânia e também no Médio Oriente, este governo não arredou, continuou a fazer investimento, vários pacotes de investimento e acredito que até 2026 vamos ter resultados fortíssimos, nomeadamente esta meta do governo de ter pelo menos 60% dos serviços online, ter online aquilo que é essencial e ter toda a estrutura, a máquina, a pensar digitalmente, isso vai obrigar a redesenhar serviços, a repensar o modelo de distribuição de serviços, a criar ruturas a nível da administração pública e a arrastar o sector privado para esta meta. Penso que é uma grande ambição.
Disse uma coisa interessante, “pensar numa perspetiva digital”, porque penso que esse deve ser um dos grandes desafios que se põe quando se está a fazer uma transformação digital, pôr as pessoas a pensar nessa perspetiva digital.
Claramente, a questão não é olhar para os serviços que existem hoje, porque muitos dos serviços que existem hoje provavelmente vão ser descontinuados e há serviços que existem hoje que, no fundo, não são serviços e que precisam ser repensados, isto depois terá impacto do ponto de vista orçamental, do ponto de vista das estruturas e, naturalmente, do próprio emprego, têm que se reciclar competências e preparar pessoas para tarefas mais inteligentes e trazendo tecnologias emergentes como a inteligência artificial. O país começar a pensar digitalmente é um grande desafio.
Ainda não estamos onde devíamos estar, devíamos estar muito mais acima
Nunca teremos uma solução tecnológica 100% segura e a cibersegurança depende em mais de 50% dos nossos comportamentos
Por falar também nesse pensar digital, como analisa os investimentos nos catalizadores da transformação digital, desde as tecnologias disruptivas até à aposta nos dados?
O governo está a fazer muitos investimentos, mas eu penso que o sector privado pode fazer também o seu papel. Através do governo, com financiamento do Banco Mundial, vamos ter a Cloud governamental baseada no blockchain e a tecnologia blockchain traz muito mais segurança, traz o reforço da confiança e daquilo que hoje é necessário: dar poder aos cidadãos de terem acesso às suas informações. Por exemplo, se eu for a um médico privado fazer uma consulta, umas análises, essa clínica privada tem a minha informação médica, mas depois se eu for a um outro médico, privado ou público, vou ter que fazer exatamente os mesmos registos. Imagine se o cidadão tiver o poder na mão, de dar a qualquer médico acesso ao seu registo, isto é um impacto enorme, primeiro melhora a qualidade da prestação de serviços, dá mais confiança aos médicos, porque já tem um conjunto de informações e reduz o custo para o cidadão. Depois tem outras vantagens, um exemplo é registo de propriedade, porque o blockchain é uma tecnologia imutável, ninguém consegue alterar aquilo que foi feito, o que significa que muitas situações que nós conhecemos vão deixar de existir. Na América Latina, por causa da especulação imobiliária, que é muito grande, alguns países estão a implementar blockchain e estão a tirar as pessoas da pobreza, porque uma pessoa lá atrás do monte tem um terreno que há 100 anos não valia nada, mas que hoje vale muito e com a especulação imobiliária rapidamente conseguiríamos com o processo actual desapropriar ou adulterar o registo, mas com blockchain é impossível. Portanto, há aqui vantagens para além da segurança.
Na sua opinião qual acha que são os obstáculos culturais e educacionais que precisam de ser superados para se alcançar uma transformação digital eficaz?
Penso que é as pessoas perceberem que a tecnologia nunca substitui o homem, somos ainda uma sociedade jovem mas ainda há um nível de iliteracia digital grande, porque estar no Facebook não significa que temos um nível de literacia. Focando, por exemplo, na inteligência artificial, pesa um bocado na cabeça das pessoas que é uma ameaça, mas se olharmos para a inteligência artificial como um copiloto e se nós somos capazes de manusear esse copiloto vai-nos facilitar a vida, porque o que vai acontecer não é eu a competir com a inteligência, mas é eu a competir com pessoas que utilizam a inteligência artificial. Na área do jornalismo, se o Jorge utilizar a inteligência artificial para facilitar nas suas tarefas, vai ter muito mais tempo para pensar, para estudar, em vez de estar a fazer tarefas rotineiras, naturalmente estará em vantagem competitiva relativamente aos colegas. Penso que o que precisamos, em Cabo Verde e no mundo em geral, é olhar para a tecnologia e pensar a tecnologia como um facilitador, para nos libertar para aquilo que realmente interessa que é sermos felizes, produtivos e ter tempo para a vida social.
Falando do sector privado, a tecnologia permite uma coisa que falta a Cabo Verde que é aumentar o mercado. Esta consciência do privado ter um mercado mundial a partir de Cabo Verde já se vê isso nas empresas cabo-verdianas? Ou é um conceito ainda por explorar?
Estamos a explorar de alguma forma, mas precisamos explorar mais. O Jorge colocou um aspecto de extrema importância, em cabo-verde somos 500 mil almas residentes, não temos escala, somos um país insular, arquipelágico, mas podemos aproveitar para unificar a nossa economia, o digital pode ajudar-nos a unificar a nossa economia e ter uma economia de escala e aqui claramente temos de ser rápidos, inteligentes, para aproveitar esta oportunidade, se não, países com mais capacidade vão aproveitar e nós vamos continuar a ficar para trás. Nós podemos e devemos ter esta capacidade de sermos rápidos e adaptáveis e a tecnologia, o digital, pode fazer de Cabo Verde um país de escala, um país com um mercado fortíssimo e vender produtos a partir de Cabo Verde. E esta oportunidade não se confina ao sector digital, empresas de outros sectores podem aproveitar o digital para prestar serviços ao mundo a partir de Cabo Verde, ter um mercado com maior dimensão em escala e com maior valor.
Que conselhos deixaria aos gestores das organizações que estão neste processo de transformação digital?
Não sei se devo dar conselhos, mas deixar aqui aquilo que eu acho que todos nós temos que ter: a consciência de que a transformação digital não é transformação tecnológica, é transformação sobretudo de forma como pensamos aquilo que é a nossa operação, aquilo que são os nossos produtos, os nossos serviços, temos que começar a pensar digitalmente, desde o início até ao fim, pensar em como é que vou continuar a interagir com os meus clientes, com os meus fornecedores, como vou criar mais valor, satisfazer melhor os clientes utilizando o digital. Em resumo, o que eu deixo aqui é isso, a consciência de que a transformação digital não é só transformação tecnológica, mas um imperativo de olharmos para dentro, de nos transformarmos internamente.
O próprio NOSi está numa fase de mudança de paradigma, tem o objetivo de ser um um gateway tecnológico para os países da CEDEAO e para os PALOP em que fase estão?
Estamos numa fase de consolidação da reestruturação. Primeiro, internamente, foi preciso pôr o NOSi a funcionar como uma empresa, mas também era preciso reestruturar do ponto de vista da prestação de serviços, daquilo que é o papel da NOSi de novo ecossistema digital. Depois temos uma segunda linha de força que é a reestruturação do capital humano. No final do primeiro trimestre teremos resultado com o novo modelo e teremos um NOSi muito mais eficiente muito mais inteligente e portanto estamos num bom nível de reestruturação. Acreditamos que até meados de 2024 teremos o NOSi totalmente reestruturado.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1147 de 22 de Novembro de 2023.