Este é aquele momento em que revisitamos o ano que acabou e antevemos os doze meses que se seguem. Que lições retiramos de 2023?
Em 2023, o mundo viveu com duas guerras em simultâneo, agora com o conflito no Médio Oriente, o que traz sempre consequências, quer queiramos, quer não. É algo que cria instabilidade financeira. Para Cabo Verde, não foi um ano mau. Ainda tivemos várias feridas da pandemia e feridas das guerras, o que sempre tem o seu custo, mas acabámos por ter crescimento económico, não o que se desejava, mas positivo. Foi um ano com o emprego a subir, um ano onde o nosso principal sector de actividade, o turismo, registou números já superiores a 2019.
Não podemos dizer que 2023 foi excelente, porque também vivemos de incertezas, com choques nos preços dos combustíveis, a inflação muito forte a nível global no primeiro semestre, mas foi um ano de saída da crise. Vivemos sob tensão, mas com alguma previsibilidade interna. As empresas querem previsibilidade, querem estabilidade. Mais importante que a carga fiscal é a previsibilidade fiscal e o relacionamento com a administração fiscal.
A grande reforma de 2023 foi a obrigatoriedade da factura electrónica, o que trouxe desafios aos empresários. Chegaram à Câmara de Comércio queixas por parte dos associados?
Sim, é assim sempre que há uma mudança, mas é uma coisa necessária. A facturação electrónica disciplina o mercado, alarga a base tributária e facilita a formalização da economia. É uma construção, mas não foi fácil.
Do que acha que vamos andar a falar em 2024?
Vamos falar de guerra, portanto, a imprevisibilidade continua. Vai ser um ano tenso, com duas guerras persistentes. E vamos ter a incerteza de 50 eleições nacionais no mundo inteiro…
Incluindo Estados Unidos…
Incluindo nos Estados Unidos. Serão mais de 2 mil milhões de pessoas a votar, em cerca de 50 países, o que traz, de facto, muitas incertezas de várias ordens. O populismo está em crescendo, o que poderá influenciar decisões críticas, como por exemplo os subsídios à produção ou os incentivos fiscais que neste momento existem. Mas também teremos de contar com incertezas sobre o desenvolvimento da inteligência artificial, barreiras comerciais, transição energética ou redução de dívidas, principalmente nos países em vias de desenvolvimento. Mais recentemente, temos os ataques piratas no Mar Vemelho, o que triplicou o valor do frete marítimo e causou uma demora de quinze dias na entrega de encomendas.
Quem faz a gestão de risco nas empresas, está a analisar o quê?
As consequências das guerras, o preço dos fretes, eventuais disrupções na cadeia de produção, transporte e distribuição, o preço dos combustíveis…
Para a gestão das empresas, o que é que isto significa?
É por isso que nós recomendamos aos empresários a que estejam muito atentos às informações e abertos à inovação, a que actualizem os seus modelos e planos de negócio, a que diversifiquem as suas actividades e os seus investimentos. Nesta fase, é importante que a tomada de decisões seja quase em tempo real. Para isso, também contamos muito com uma administração pública muito activa e muito rápida, porque o tempo de resposta é importante. O tempo da administração pública não é o tempo do empresário, que não pode ficar três ou seis meses à espera de uma resposta, para mais num momento de imprevisibilidade.
Do ponto de vista interno, e já aqui o assinalámos, tivemos grandes alterações a nível do fisco, com a factura electrónica. Quais é que devem ser os próximos passos na reforma do Estado? O que é que falta fazer?
Falta sempre muita coisa, é uma construção contínua, a própria dinâmica do mercado assim o exige, no sentido do crescimento da economia, na transição energética, na economia digital, no negócio digital…
E como é que fazemos isso numa economia insular?
Pois, aí é que temos o grande problema. A conectividade, quer pela via marítima, quer pela via aérea, quer pela via digital… Falamos de integração regional. Se calhar, a melhor forma de fazermos a integração é pensarmos, não num modelo clássico, mas num modelo de futuro, pensar em fazer negócio digital. Apostar na formação, para termos desenvolvedores de sistemas, apresentar soluções apetecíveis para o mundo moderno. O nosso mercado é diminuto para coisas físicas, mas com o negócio digital, com uma internet em boas condições, Cabo Verde não tem fronteiras.
Prevêem-se para 2024 novas mexidas no quadro de empresas públicas ou participadas. Já foi anunciada a alienação da participação do Estado no capital social da Caixa Económica. Que papel é que o empresariado nacional pode ter nestes processos?
Nós sempre defendemos o pacote de privatizações. O programa deve ser feito de forma transparente e justa, numa lógica de integrar naturalmente os empresários nacionais. Neste momento, os empresários nacionais têm condições de participar neste anúncio envolvendo a Caixa Económica, [feito] através da Bolsa de Valores, e ter uma voz, até na própria administração, na estratégia e nas políticas do banco.
Noutras operações, e sabemos que está na agenda a questão dos portos, futuramente a Cabnave, a Electra, parece-lhe mais difícil haver espaço para as empresas nacionais?
Há áreas que naturalmente são mais difíceis. O que nós queremos é ter um parceiro comercialmente forte. Na área dos portos, por exemplo, o que é um parceiro comercialmente forte? É um global carrier, um transportador global, ou um operador de terminais, que tem uma rede de terminais portuários. Um porto não consegue crescer mais do que a sua população, nem mais do que a riqueza nacional. Um porto, se quiser crescer, tem de crescer à custa do mercado internacional e o mercado internacional é o transbordo. Ora, há alguém em Cabo Verde que tenha a possibilidade de trazer carga de transbordo? Ser este parceiro comercialmente forte? Este é o ponto que devemos analisar. Não é uma questão de ter dinheiro, não é um parceiro financeiramente forte. É gerar tráfego.
Nesse caso, o que é que deve ficar salvaguardado?
Isto pode sempre ser feito de forma a promover os grupos cabo-verdianos interessados. Por exemplo, na prestação de serviços ligados aos navios, como a pilotagem, o reboque, a atracação, a amarração. Estes serviços podem perfeitamente ser feitos por grupos nacionais. Se tivermos um modelo onde separamos os serviços dos navios, dos serviços relacionados com o cargo handling, naturalmente que podem aparecer cabo-verdianos interessados em participar no processo.
Deixe-me perguntar-lhe sobre a revisão do Código Laboral. Para os empresários, qual é a prioridade?
Há muitas coisas que precisam de ser revistas. Temos muitos negócios que são novos. Há o negócio digital, que é novo. Há a transição energética, que é nova. Há a inteligência artificial, que é nova.
Temos de proporcionar aos investidores, às empresas que querem investir em Cabo Verde, algo atractivo.
E esse “algo atractivo” seria o quê?
Seria algo que promova a produtividade e que reduza, principalmente, o absentismo. São dois pontos de extrema importância para todas as empresas em Cabo Verde. O absentismo é um problema grave. Há empresas que perdem milhares e milhares de contos por ano. Mas há outras coisas que podemos fazer. A inclusão da figura da comissão de serviço, a inclusão de contratos intermitentes, para suprimir necessidades pontuais de mão-de-obra, o acordo de pré-reforma, com o mecanismo de gestão dos recursos humanos das empresas, o direito de o trabalhador obstar a sua reintegração, o regime de suspensão colectiva de trabalho, a simplificação do processo disciplinar, a clarificação do regime de lay-off. Enfim, são vários aspectos que precisam de ser melhorados, numa lógica de proteger empregos, os que existem, mas de promover mais emprego, de promover o investimento externo.
Sempre que falamos de revisão do Código Laboral, usamos uma terminologia elaborada e, no final, parece que estamos sempre a falar da mesma coisa, que é tornar o despedimento mais fácil.
Não, não, não. Os empresários, as empresas, não têm esta vontade de despedir pessoas.
Algumas têm…
Não, não. Não é um assunto em si mesmo, despedir gente. As empresas querem é ter produtividade, querem é ter gente comprometida. Naturalmente, com bons salários, com boas condições. Nós temos, também, que trabalhar para que haja emprego digno, cada vez melhor, melhores salários, sim. Agora, é preciso que haja compromisso, é preciso que haja produtividade e isto nós não temos. Todas as empresas se queixam de duas coisas fundamentais, e eu volto a frisar: produtividade e absentismo.
Em 2023, falou-se muito sobre fuga de mão-de-obra qualificada, nomeadamente de quadros técnicos, gente com muita experiência e muito bem preparada. Tem conhecimento de casos de empresas que, neste momento, têm dificuldade em contratar trabalhadores?
Daquilo que avaliamos, a economia de Cabo Verde não sofreu com isto, pelo contrário. Aqueles que vão para fora contribuem para a economia de Cabo Verde, através das remessas, e abrem vagas para novas pessoas. Temos de ver isto numa perspectiva positiva, construtiva, de oportunidade. Há gente jovem, capacitada, bem formada. Quando o mercado é assim, é mais fácil. Agora, no que temos de apostar é, de facto, em ter isto regulamentado e em termos a parte formativa muito bem preparada, até formar para exportar.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1154 de 10 de Janeiro de 2024.