Em conversa com o Expresso das Ilhas, o PCA, Eduardo Tavares, fala da regulação da saúde, no geral, e em cada um dos sectores abrangidos, dos desafios e das prioridades nestes mercados em grande mudança. E em jeito de ponto de situação, olhando os progressos presentes e passados, uma coisa sobressai: as entidades reguladoras têm, sim, impacto, no desenvolvimento dos sectores regulados, atraindo inclusive os privados. “Pode parecer que não, mas um sector regulado é mais atractivo para os operadores”, observa.
De uma maneira geral, o que considera ser uma boa regulação?
Uma boa regulação é uma regulação de proximidade. A regulação não pode ser feita de forma unilateral, mas sim bilateral ou multilateral. Os parceiros, utentes e também os operadores económicos têm de ser envolvidos, porque existem implicações das decisões tomadas pelas entidades reguladoras no processo de desenvolvimento dos próprios sectores regulados. Assim, nós antes de tomarmos medidas de regulação, temos de ouvir as entidades reguladas, a população e os parceiros, no sentido de ter uma regulação mais próxima daquilo que é o ideal e que responda às necessidades do mercado.
Analisando cada sector em particular. Na Saúde, quais são os maiores constrangimentos e desafios da ERIS?
O sector da saúde, antes, era regulado pela administração directa. Era a Inspecção Geral de Saúde que fazia essa actividade e entendeu o Governo que estando [o sector] numa entidade reguladora independente poderíamos alcançar resultados positivos mais rapidamente pois o Ministério da Saúde está mais vocacionado para a prestação [de serviços], não para o controlo nem fiscalização das estruturas de saúde. Passou, então [em 2019] a estar numa entidade reguladora independente. Penso que o maior desafio na Saúde é a integração sector privado e sector público. A ERIS regula tanto os estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde públicos quanto os privados e existem duas velocidades, em termos de desenvolvimento dos sectores, que nós encontramos já instaladas. O público, por ter uma intervenção directa do Estado e por ser gerido pelo próprio Estado, acabou por ficar um pouco atrás. Os requisitos que eram exigidos às estruturas privadas de prestação de cuidados de saúde eram mais densos e mais rígidos e estas acabaram por ter um desenvolvimento diferenciado, pois tiveram de se adequar a essas exigências maiores. Então, o nosso papel também é trazer algum equilíbrio no desenvolvimento entre o sector público e o sector privado de saúde. Os requisitos de actuação, infra-estruturas, equipamentos, profissionais de saúde que laboram nas estruturas, devem ser os mesmos para que consigamos fazer essa integração entre os dois sectores.
Entre o sector público e o privado, qual traz mais desafios?
Obviamente que é o público, porque já se encontra instalada uma determinada mentalidade, uma determinada forma de intervenção que temos de conseguir mudar.
Há alguma resistência?
Muitas vezes não é falta de vontade. É uma resistência por falta de condições. As condições que estão disponíveis para o privado não são as mesmas que estão para o público. Sabemos que os recursos públicos são escassos, têm de ser muito bem geridos, e para se intervir numa área muitas vezes uma outra tem que ser deixada de parte. É esse o desafio que temos, de conseguir trazer esses recursos para o sector público, para que ele se desenvolva e tenhamos um equilíbrio aceitável entre o público e o privado.
A ERIS também tem a vertente da inspecção, mas não a temos visto a aplicar. Por exemplo, no caso da morte de recém-nascidos no Hospital Baptista de Sousa, mais uma vez a inspecção foi feita pelo Ministério da Saúde (MS). A ERIS não seria obrigada a actuar aqui?
Existem competências que são partilhadas. O MS também possui uma estrutura que tem a competência de fazer essas auditorias. Pela urgência que o caso em concreto requeria, entendemos que o MS seria a entidade mais bem posicionada para fazer esse trabalho, porque é no MS que estão os quadros especializados para essa área de intervenção. Seria uma responsabilidade da ERIS também, mas sendo a ERIS a fazer uma fiscalização ou um inquérito, neste caso em concreto, levaria muito mais tempo, para fazer o recrutamento de profissionais de saúde necessários.
Mas foram chamados a fazer o acompanhamento do caso?
Com certeza. Estamos a acompanhar juntamente com o MS. Houve uma articulação prévia à realização do próprio inquérito.
E sobre regulação dos preços da saúde no privado. Houve alguma reclamação. Como é que foram definidos os preços?
Essa regulação ainda é um processo que está em curso. Foi uma competência que o Governo atribuiu à ERIS, através de um decreto-lei. Obviamente, isso envolve um trabalho de fundo. Temos de conhecer muito bem a lógica da formação de preço actual no mercado e temos que propor metodologias para a fixação de preços que sejam justos tanto para os operadores económicos quanto para os utentes, mas a decisão final será sempre do Governo. Iremos apresentar o estudo que estamos em vias de concluir em relação à fixação dos preços no sector privado de prestação de cuidados de saúde e o Governo irá analisar se irá prosseguir com a medida. Já temos em mãos o relatório com a metodologia, a proposta de regulamento para fixação dos preços, que a nível nacional têm de ser iguais.
Cada vez há mais estabelecimentos de saúde privados. Em 2022 eram já mais de 60. Como é que tem sido este processo todo de licenciamento e inspecção face a esse aumento?
O que verificamos nos últimos anos também vem da percepção que os próprios operadores económicos têm do sector. Quando um sector está a ser regulado, estão a ser estabelecidos critérios de qualidade para o licenciamento, o sector torna-se mais atractivo. Pode parecer que não, que um sector desregulado é mais atractivo, mas não é. O processo tornou-se mais transparente, os critérios são claros, foram divulgados e continuam a ser divulgados junto à sociedade e isso deu mais confiança aos operadores para investirem neste sector.
E no sector farmacêutico, quais são os maiores desafios?
O principal desafio neste momento é obtermos um pacote legislativo actualizado para regulamentação do sector. A maioria da legislação do sector farmacêutico é da década de 2000 e, portanto, já sentimos necessidade de fazer alguns ajustes para que essa regulação seja efectiva, permanente, tendo em consideração que o mercado está em transformação e tem de haver as condições legais para que a ERIS possa desempenhar o seu papel regulador. Quando falo em sector farmacêutico é num sentido um pouco mais amplo porque não me refiro apenas aos medicamentos em si. Há todos os produtos farmacêuticos, dispositivos médicos, produtos de higiene corporal, cosméticos que também são regulados pela ERIS e tem de haver um quadro geral global onde a ERIS possa intervir em todas essas esferas da forma mais adequada ao desenho que o mercado está a tomar neste momento. Não estou a dizer que com esta legislação não seja possível regular, mas para regular melhor, com mais qualidade, com mais eficiência há, efectivamente, a necessidade de termos essa revisão, que já está em processo de conclusão.
Um problema de que há muito já se falou é o mercado “informal”, ilícito, de medicamentos. Qual o ponto de situação desse fenómeno?
Houve um estudo, realizado já em 2010, para fazer um retrato da situação em relação ao consumo de medicamentos no mercado ilícito, e até esta parte não houve nenhum outro estudo de actualização. Mas nós, da fiscalização que temos feito no terreno, a percepção que temos é que efectivamente essa prática tem vindo a diminuir. E isso porque também houve um trabalho muito forte de sensibilização e formação dos agentes de fiscalização, tanto a Polícia Nacional, como a Guarda Municipal, como os agentes das Alfândegas, que é o ponto de entrada, no sentido de fazerem o reconhecimento e de chamarem a ERIS sempre que necessário, para apoiar na apreensão desses medicamentos.
Quais são os medicamentos com entrada mais comum?
Entram vários tipos de medicamentos: antibióticos, antipiréticos, medicamentos para dor…
Opiáceos?
Não. São essencialmente medicamentos comuns que a população necessita no seu dia-a-dia.
Então qual consideram ser a necessidade de as pessoas recorrem a esse mercado?
Na realidade, não há necessidade. Os que trazem esses medicamentos é que criam esse mercado. As pessoas muitas vezes não têm conhecimento técnico sobre aquilo que é o medicamento vendido na farmácia e as suas condições de acondicionamento, encontram aquilo à porta da sua casa e compram até a um preço mais barato, porque não conhecem, não sabem, e acham que é bom também. Nós temos feito, ao longo do tempo, um trabalho muito forte de sensibilização da população para o não consumo de medicamentos desse mercado. Tem havido um aumento de controlo, tem havido apreensões e em grandes quantidades nas alfândegas, mas a percepção que temos, como disse, é que esse mercado ilícito de medicamentos tem diminuído.
Rupturas. Há recorrentes falhas de medicamentos nas farmácias, inclusive de medicamentos essenciais. Como é que a ERIS actua na gestão do stock, prevenção das rupturas e falhas da distribuição?
A ERIS não actua na gestão de stocks. Quem faz a gestão do stock é a Emprofac e a Inpharma. Muitas vezes o que nós verificamos é que a Emprofac não tem medicamentos, não porque não quer, mas porque o mercado internacional também não tem disponibilidade para os fornecer. A entidade reguladora já interveio muitas vezes junto das congéneres que proibiram a saída desses medicamentos nos seus países para que a Emprofac pudesse conseguir fazer a sua importação. É um processo que não é fácil, porque em muitos países da Europa, nos EUA, etc., também existe o risco iminente de ruptura desse medicamento, e o que as autoridades reguladoras fazem é impedir a exportação. Cabo Verde não foge a essa consequência. Nós temos alguns medicamentos que são produzidos a nível nacional e conseguimos ter uma maior garantia de que estejam efectivamente no mercado, mas existem os que chegam por via de importação onde acabamos por ter esses constrangimentos, que advêm da própria conjuntura internacional em relação à disponibilidade de medicamentos.
Há casos de falta de disponibilidade, mas também outros em que é mesmo o stock que é mal feito. O que acontece nestes casos?
Estamos a fazer um trabalho a longo termo. Um trabalho técnico, junto à Emprofac – a outra operadora [Sodifar] ainda é bastante recente – no sentido de ajudar a ter um sistema de gestão em tempo real e em que possamos nós também, enquanto entidade reguladora, ter informações em tempo real dos riscos de ruptura de stock, numa plataforma em dashboard. Existem várias incongruências que foram detectadas na base de dados da Emprofac, estamos a trabalhar nisso, a apoiar no sentido de termos informações e que estas sejam fidedignas. Existem equipas técnicas que se reúnem periodicamente para ver o ponto de situação em relação a essa monitorização de stocks. Depois de termos esse desenho feito com a Emprofac rapidamente o poderemos replicar tanto para a nova importadora-distribuidora de medicamentos, como para as próprias farmácias e ter o stock a nível nacional em tempo real.
Vamos deixar de ter o monopólio da Emprofac ...
Só para clarificar: a Empofac não tem o monopólio desde 2003. Tinha um monopólio de facto, não um monopólio legal. Era a única entidade no mercado, mas não porque a lei impedia a entrada de um outro operador.
O que muda no papel da ERIS, havendo agora mais um player?
As regras são as mesmas para todos dentro de cada segmento do sector farmacêutico. São claras, vão ficar mais claras ainda com a revisão do pacote legislativo, portanto, não acredito que haja um problema adicional para a entidade reguladora com a entrada de mais um player.
Há quem tenha questionado esta entrada tendo em conta que o grupo da Sodifar tem também várias farmácias, o que poderá levar à sua liderança no mercado privado, que representa 75% do mercado farmacêutico. Manter algum equilíbrio no mercado passa por vocês?
Nós vamos regular de acordo com aquilo que está estabelecido na legislação. Todo o processo de licenciamento da Sodifar foi feito nos termos da lei, a ERIS cumpriu todos os requisitos estabelecidos na lei, o que acabou por culminar com o licenciamento da nova entidade para o segmento de importação e distribuição por grosso de medicamentos.
Mas poderá haver impacto por exemplo nos preços dos produtos farmacêuticos e disponibilidade de produtos menos rentáveis para a distribuidora?
Não, porque a ERIS regula os próprios preços dos medicamentos e também não podem importar só os mais caros. Dentro dessa revisão do pacote legislativo estarão também as regras em relação ao stock mínimo dos medicamentos essenciais que cada uma das entidades deverá ter para garantir o fornecimento ao mercado nacional.
Há, então, garantia de algum equilíbrio?
Exacto. Quanto a quem será líder do mercado,isso será o mercado a regular. A Emprofac, como já é público, está em processo de privatização. Passaremos a ter dois privados que estarão sob as regras estabelecidas na lei e que têm de cumprir essas regras.
Passando para o sector alimentar, mas fazendo a ponte com os medicamentos: temos o grande problema do uso de antibióticos nos animais. Que regulação?
Nos medicamentos para uso veterinário, diria que estamos a iniciar a regulação. É uma competência que está nos estatutos da ERIS, mas ainda não existe base legal para a mesma. Ora, apesar de estar nos estatutos, a regulação só se efectiva com a produção de uma lei de bases para regulação dos medicamentos para uso veterinário. Não basta dizer que existe uma entidade que faz essa regulação. Estamos, então, em processo de contratação da consultoria para elaboração desse pacote. Haverá uma lei de bases e haverá vários regulamentos específicos para regulação desses medicamentos. Era uma competência que antes da criação da ERIS estava no Ministério da Agricultura, nunca foi criada uma base legal para essa regulação, e é neste momento que estamos a dar esse passo. Acredito que existe uma possibilidade de sinergia na ERIS para regulação dos medicamentos veterinários uma vez que já fazemos a regulação dos medicamentos para uso humano. Não é a mesma coisa, mas existe uma similaridade que pode ser aproveitada para avançar mais rapidamente.
No sector alimentar, qual diria que é o maior desafio?
É um desafio antigo, vem desde a extinta Agência de Regulação e Supervisão de Produtos Farmacêuticos e Alimentares (ARFA) e tem a ver com a própria legislação e com as competências que são acometidas à reguladora nesse capítulo. Existem muitas lacunas na legislação do sector alimentar e o que mais chama a atenção é o licenciamento de estabelecimentos de restauração e de processamento de alimentos, em que a ERIS não participa. A ERIS apenas aparece no momento da fiscalização e o que se verifica é que muitas vezes os estabelecimentos são licenciados pelas Câmaras Municipais, e acabam por não cumprir os requisitos básicos para obter o licenciamento sanitário efectivo.
Em 2022, vocês determinaram o encerramento de 25 estabelecimentos a nível nacional.
Conseguimos encerrar, mas é uma suspensão temporária, onde damos um prazo para o estabelecimento se adequar e reabrir. Não temos competência para encerrar definitivamente.
Tendo em conta aquilo que vêem no terreno, como é a situação em termos de segurança alimentar?
A situação tem melhorado aos poucos, mas poderíamos avançar mais rapidamente se houvesse os instrumentos necessários, mais articulação no momento de licenciamento e no momento da fiscalização. As regras devem ser cumpridas desde o início, e não a partir de determinado momento onde a prática já está instalada, tentando reverter a situação.
Já falamos dos desafios. Mas e as prioridades, quais são?
Melhorar as articulações institucionais entre todas as entidades, no momento do licenciamento, acompanhamento e seguimento pós-fiscalização. A capacitação dos Recursos Humanos e a sensibilização dos operadores económicos e da população, para que, no caso dos utentes, estes possam identificar os problemas no terreno e comunicar à entidade reguladora. Fiscalizar estabelecimentos de comércio em nove ilhas é muito complexo para uma entidade que tem um corpo de técnico reduzido [a ERIS tem 57 colaboradores, incluindo o Conselho de Administração]. O consumidor tem um papel fundamental de denunciar as irregularidades que encontra no mercado e nós, sempre que recebemos denúncias, preparamos os técnicos para se deslocarem e fazerem essa verificação in loco.
Estava prevista a abertura de uma delegação da ERIS em São Vicente.
Será aberta ainda este ano, 2023. Já foi identificado o espaço, estamos a fazer algumas obras e contamos ter ainda este ano a inauguração da delegação.
Para finalizar, quais são os grandes temas da regulação nos três sectores sob a ERIS?
Para o farmacêutico, a regulação dos dispositivos médicos. Estamos num processo de criação de uma lei de bases para regulação de dispositivos médicos, que acabam por compor um leque muito grande de produtos, cada um com a sua especificidade, e que é algo que não temos. Enquanto esta competência esteve no Ministério da Saúde não houve desenvolvimento de uma legislação especifica. A covid-19 veio mostrar que efectivamente temos que ter instrumentos adequados para a regulação desses produtos. Não se regula sem haver uma regulação, a competência ou a capacidade de regular não advém apenas do estatuto da entidade, tem de haver uma legislação de suporte e a regulamentação dessa legislação de base para que se efective a regulação. Para a área alimentar, um dos grandes desafios são os suplementos alimentares. Já temos uma proposta preparada, que já foi enviada ao Ministério da Saúde, que é o nosso interlocutor dentro do Governo, para ser apresentada ao Executivo para aprovação. As pessoas consumiam muitas vitaminas, que, de acordo com a legislação nacional, estão dentro da parte dos medicamentos. Agora consomem suplementos alimentares que não estão devidamente cobertos por uma legislação que permita à entidade reguladora fiscalizá-los. Para o sector de saúde, o desafio é maior. A legislação do sector farmacêutico a da década de 2000, no sector da saúde é dos anos 90. São mais de 20 diplomas para regulação do sector da Saúde que precisam de ser revistos, estamos já em fase avançada de trabalho, para que consigamos garantir a qualidade na prestação de cuidados de Saúde. A visão do conselho de administração tenta ser equilibrada (entre sectores) mas tentando impulsionar onde haja maior necessidade e temos dado muita atenção à regulação do sector da Saúde porque vimos que está mais atrasado, em comparação com o sector alimentar e sector farmacêutico
Esses últimos já eram cobertos por uma reguladora independente, a ARFA...
Isso vem dar razão a que, efectivamente, quando se colocam os temas dentro das entidades reguladoras independentes, os sectores avançam mais rapidamente.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1127 de 5 de Julho de 2023.