Isto, apesar da aprovação, em 2019, de uma proposta de lei de transplante de órgãos pelo Governo, um passo considerado “significativo na direcção certa”, embora ainda não tenha atravessado os corredores do parlamento, onde aliás, conforme já fez saber a Ministra da Saúde, Filomena Gonçalves, se encontra em fase de socialização. Enquanto isso, aqueles que necessitam de uma segunda chance de vida continuam num apreensivo compasso de espera, mas esperançosos.
Em 2014, abria o primeiro centro de Hemodiálise no Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN) e, em 2021, um novo centro foi aberto em São Vicente.
No Hospital Baptista de Sousa, em São Vicente, há 108 utentes em diálise, conforme os dados da instituição. A unidade dispõe de 24 máquinas, distribuídas entre a sala principal de diálise, onde funcionam 19 máquinas, a sala amarela destinada a pacientes com hepatite B, que conta com três máquinas, e duas máquinas adicionais em reserva.
Já no HUAN, há cerca de 145 pacientes em tratamento. O hospital dispõe de 27 máquinas em actividade, com mais cinco máquinas de reserva, o que, teoricamente, seria suficiente para atender à demanda.
Apelo às mudanças urgentes
A vida de José Filomeno Carvalho, de 65 anos, residente em São Domingos, tem sido marcada por uma “jornada difícil” desde Setembro de 2011, quando foi diagnosticado com insuficiência renal crónica.
José Filomeno revela que, inicialmente, teve de se deslocar para Portugal, onde permaneceu de 2011 a 2014, pois não havia um centro de hemodiálise no país naquela época.
Essa mudança teve impactos na sua vida económica e familiar. Entretanto, durante esse período, antecipando o seu futuro profissional, José Filomeno voltou à universidade e realizou uma formação em Energias Renováveis.
Esse novo conhecimento inspirou-o a abrir um Ecocentro em São Domingos, explorando alternativas ambientais como uma mudança de carreira.
“Ser evacuado foi surreal porque eu era um profissional liberal, empresário, tinha a minha família, casa, filhos no ensino superior e, de repente, tive de largar tudo e ir para Portugal fazer três sessões de hemodiálise semanais. Essa ida a Portugal teve muitos impactos económicos e na minha vida familiar”, relata.
Além dos desafios económicos, José Filomeno viu-se com dificuldades físicas devido às longas sessões de hemodiálise. O homem relata queda na força física, na memória e até na actividade sexual.
Na Praia, fazer hemodiálise também não era muito fácil, já que havia um único centro para os doentes de todas as ilhas.
“Mais tarde, com a abertura do centro de hemodiálise em São Vicente, o centro da Praia ficou com mais folga. Mas, agora voltamos à sobrecarga do centro na Praia. Há quase 200 doentes neste momento e funcionamos em quatro turmas”, diz.
A falta de legislação para transplantes renais em Cabo Verde preocupa José Filomeno que destaca a necessidade urgente da sua aprovação, ressaltando que, embora pessoalmente não tenha a intenção de fazer um transplante, a luta é para garantir que os jovens que precisam desse procedimento tenham acesso a ele.
“Abrir mais centros de hemodiálise não seria a alternativa mais plausível nem mais inteligente porque, estatisticamente, Cabo Verde teria de ter agora 700 doentes e temos cerca de 300. Temos doentes renais crónicos a morrer. E, no dia-a-dia, temos semanalmente três, quatro ou mais novos doentes que têm surgido para a hemodiálise. Daí que a nossa grande luta, actualmente, é levar o Parlamento a aprovar a lei de transplante para a qual, infelizmente, apesar de muito esforço da equipa médica e dos doentes, ainda não há uma resposta”, frisa.
Investir agora para fazer transplantes em cinco anos
O bastonário da Ordem dos Médicos de Cabo Verde, Danielson da Veiga, aponta a importância do transplante renal no contexto do país, destacando os desafios enfrentados pelos pacientes renais e a necessidade da sua implementação.
“Ao longo do tempo, a parte física e mental da pessoa começa a sofrer um desgaste, esse desgaste tem de ter algum amparo, que em Cabo Verde, não há. Essa pessoa é obrigada a submeter-se a esse processo e, aos poucos, o corpo vai se debilitando, até que certo dia morre”, explica.
Ao Expresso das Ilhas, Danielson Veiga diz que, embora a cooperação entre Portugal e Cabo Verde tenha proporcionado tratamento aos pacientes, criou um fardo emocional e financeiro para as famílias, uma vez que a diálise era realizada em Portugal e a distância dificultava o seu retorno.
Contudo, considera que há necessidade urgente de implementar um programa de transplante renal em Cabo Verde. Nesse sentido, ressaltou que a cooperação com Portugal e o envolvimento da diáspora médica seriam cruciais para o sucesso do programa.
Conforme afirma, o transplante renal não só reduziria os custos associados à diálise, mas também aliviaria a pressão sobre o sistema de saúde, proporcionando uma solução mais eficaz e de longo prazo para os pacientes renais.
“O país não está pronto para fazer transplantes neste momento, é um processo que pode levar muito tempo. Mas, para estar pronto, temos de começar a fazer as coisas agora. Quando essa proposta estiver aprovada, temos de começar a fazer o processo de instalação, visitar o bloco, formar pessoas. Isso é um processo longo que pode levar de cinco a 10 anos, dependendo da vontade dos dois lados”.
“Tanto da parte dos técnicos como também dos nossos políticos e governantes, tem de haver uma equipa multidisciplinar, uma equipa com vontade de ajudar, para o podermos pôr em prática, o que não é difícil para mim. Se houver vontade isso pode ser implementado em menos de cinco anos, mas se não houver vontade, vamos perder pessoas e nunca mais vamos fazer transplantes”, acredita.
O bastonário da Ordem dos Médicos ressalta a importância de investir na formação de profissionais de saúde, na infraestrutura hospitalar e na consciencialização da população no que se refere à doação de órgãos.
Segundo defende, o investimento no programa de transplante seria benéfico a longo prazo para a saúde do país.
“Eu penso que isso vai afectar a actividade médica de forma positiva porque realmente vai haver redução de doentes a fazer diálise todos os dias, vai também reduzir o custo de todo o investimento que o Estado está a fazer para a diálise todos os dias, o que para o Estado é fundamental”, argumenta o bastonário.
Veiga refere que a redução do número de pacientes em diálise diária permitirá mais tempo para a formação e capacitação dos técnicos em Nefrologia, uma área em que o país enfrenta uma escassez de profissionais qualificados.
Actualmente, Cabo Verde conta com apenas três técnicos formados nessa área, estando um em São Vicente e dois na Praia.
“Quanto menor for o volume de doentes, mais tempo tem o médico para a formação, para a capacitação, e também teríamos tempo para criar programas de sensibilização, um programa que está mais próximo do paciente”, aponta.
O bastonário indica as vantagens de parcerias internacionais nessa questão, especialmente com Portugal e Brasil, e a disponibilidade da diáspora cabo-verdiana para contribuir no treino e implementação de práticas médicas avançadas no país.
“A não ser que o Estado comece também a pensar numa outra solução que permitirá aos doentes em tratamento entrar na lista de transplante em Portugal, para começarmos também a evacuar pessoas para o transplante”, sugere.
Aprovar a lei e pensar na melhoria das condições dos serviços
Júlio Teixeira, em representação da Associação dos Médicos Cabo-verdianos nos EUA, salienta que a implementação de um programa de transplante em Cabo Verde enfrentará desafios substanciais devido a lacunas não apenas nas infraestrutura, mas também em treino de pessoal, formação de equipas e questões estruturais relacionadas com processos clínicos padronizados.
“É preciso pensar na aprovação da lei e na melhoria das condições simultaneamente. Só ter uma lei não se justifica. Temos de planear o modelo económico, o investimento necessário, a capacidade de transplantes anuais, e entender a incidência da doença renal em Cabo Verde. Investir numa equipa de transplante requer um compromisso substancial com a necessidade de realizar transplantes regularmente para manter o domínio e reduzir complicações”, enfatiza.
A Associação propõe apoio no desenvolvimento de planos de longo prazo, assessoria em investimentos para elevar a qualidade das estruturas médicas e treinos para criar uma cultura na gestão de pacientes.
Teixeira realça que, nos países em desenvolvimento, como Cabo Verde, as taxas de infecção cirúrgica são 25 vezes mais altas do que nos países desenvolvidos, enfatizando a necessidade de melhorar práticas e padrões.
Ao abordar a vertente cultural, o médico observa que a doação de órgãos pode ser um desafio devido às diferentes percepções.
“É preciso estudar a melhor forma de envolver a população, seja por doações cadavéricas ou de doadores vivos. A população cabo-verdiana pode ter atitudes diversas e é fundamental entender isso”, lembra.
No entanto, sublinha a insustentabilidade a longo prazo da hemodiálise como a única alternativa em Cabo Verde, propondo a necessidade de pensar em transplantes.
Teixeira sugere explorar modelos económicos, incluindo a possibilidade de atrair pacientes de outros países, contribuindo para o turismo de saúde. O médico alerta sobre a necessidade de um estudo económico abrangente antes de se decidir criar um centro de transplante local ou contratar serviços externos.
“Formar uma equipa de transplante e fazer uma cirurgia por semana, ou uma a cada duas semanas, não vai trazer satisfação enquanto profissionais e o nível da qualidade do produto não será bom porque é preciso realizar um número significativo de transplantes para ter bons resultados”, adverte.
Jovem cabo-verdiano recomeça vida em Portugal após transplante renal bem-sucedido
Kevin Miranda, de 24 anos, foi evacuado para Portugal em 2018 devido a problemas renais. Há cerca de três meses, no entanto, recebeu um novo rim.
“A cirurgia correu bem, o meu corpo reagiu bem e está tudo a correr bem. Ainda é tudo recente e até agora não houve complicações, mas aconselharam-me resguardo e não fazer muito esforço por agora”, diz Kevin.
A vida de Kevin mudou drasticamente com o diagnóstico de insuficiência renal crónica. Teve de renunciar a actividades físicas, incluindo o futebol. A adaptação a um país novo, praticamente sozinho, também não foi fácil.
“Os primeiros meses em Portugal foram difíceis. Sozinho, num país estranho. Foi triste. Chorava todas as noites quando ia dormir”, relembra Kevin, destacando a solidão inicial e as dificuldades enfrentadas após ter de sair da casa inicial onde foi acolhido.
Ao longo dos anos, devido à hemodiálise, o seu braço ganhou uma nova forma com a dilatação das veias e passou a escondê-lo. Tirando esse incómodo, hoje frequenta o segundo ano do curso profissional de instalação eléctrica, buscando uma vida melhor em Portugal.
Quanto ao futuro, Kevin espera coisas boas, frisando a qualidade de vida e as oportunidades educacionais e profissionais disponíveis no país.
No entanto, reconhece os desafios financeiros, recebendo actualmente 374 euros do Governo de Cabo Verde, valor que considera insuficiente para o custo de vida em Lisboa.
“Durante o tempo que eu fazia hemodiálise não pude trabalhar já que as sessões eram às segundas, quartas e sextas de manhã até meio-dia. E depois de uma sessão de hemodiálise a tensão baixava muito, ficava cheio de comichão porque não conseguia ficar ao sol e ainda tinha de cuidar da minha avó que veio evacuada. E o dinheiro que recebo do Governo acaba logo na primeira semana”, conta.
“Se o parlamento de Cabo Verde aprovar a lei de transplante será um grande feito, muita gente vai deixar de vir para o estrangeiro sofrer”, declara, referindo-se às dificuldades financeiras enfrentadas por muitos pacientes que buscam tratamento no exterior.
Kevin também apela à Embaixada de Cabo Verde solicitando um maior suporte para os doentes que estão em Portugal. Insta as autoridades a serem mais humanas e a mostrarem mais interesse nos desafios enfrentados por aqueles que não têm outra solução se não tratar-se no estrangeiro.
“Não devem pensar que lá porque recebemos ajuda financeira não precisamos de mais nada. O apoio emocional é importante”, frisa.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1147 de 22 de Novembro de 2023.