‘Mulheres e Homens em Cabo Verde, factos e números’, a publicação de trabalhos como este tem estado parada durante alguns anos e acabam por não ter a regularidade que deveriam. Que conclusões é que é possível tirar deste novo relatório?
Uma das conclusões é exactamente essa, que é necessário nós termos dados regulares sobre estes assuntos. Primeiro porque obrigam os próprios órgãos produtores de dados a fazer esta desagregação das informações e depois o próprio tratamento dos dados implica que haja uma maior regularidade no seu tratamento. Aqui, no fundo, fizemos uma compilação dos dados que tinham sido publicados até ao momento, pelo Instituto Nacional de Estatística, mas também dos órgãos produtores de dados oficiais. Nós, não sendo um deles, trabalhamos com estas informações, estamos dependentes desta produção dos outros para podermos fazer a nossa própria análise.
E que leitura é que faz desses dados?
A leitura que faço é que houve indicadores em que realmente estamos francamente a melhorar, mas houve outros que nos fazem olhar para esta questão do género de forma abrangente, que é como deve ser olhada. Quando falamos nesta questão do género, quando falamos nesta questão de homens e mulheres, a tendência é pensar que nós fazemos a análise exclusiva da situação da mulher. E nós temos dados que nos mostram, e estamos sempre a alertar para esta questão, que o género não é unidirecional. Nós temos indicadores, naquilo que é a saúde, naquilo que é a educação, mesmo em termos da segurança e da violência que nos mostram que estamos em perigo de ficar para trás naquilo que são as garantias de direitos e deveres dos homens. Portanto, nós temos de trabalhar estas questões de forma estruturada. Ainda há áreas em que temos de melhorar a situação das mulheres, mas não podemos trabalhar de forma desgarrada. Temos de trabalhar os dois géneros da mesma forma. E depois há aqui dados que nos fazem pensar na tipologia das famílias. Uma questão que não é muito falada, mas que nós já temos trazido também para debate, tem a ver com a representação das famílias. O conceito de chefe de família, que muitas vezes é usado para caracterizar uma família, curiosamente em termos estatísticos não existe. Existe o representante da família que é a pessoa que está disponível para dar as informações sobre o agregado familiar. E isso pode permitir-nos leituras que podem ser ou não enviesadas. Por isso é que é importante termos estas publicações, para realmente olharmos os dados, para inferirmos sobre dados concretos, desde um debate, que é sempre um lugar-comum, de que há mais mulheres do que homens. E não é verdade. Os dados não mostram isso. Há questões mais relativamente a esta questão da monoparentalidade, das questões da caracterização da própria educação, da alfabetização, do acesso a contraceptivos. São dados que nos permitem trabalhar estas temáticas, podermos indagar depois os próprios sectores sobre alguns dados. Nós tivemos também o privilégio de podermos actualizar os dados com, por exemplo, o relatório da saúde. Que saiu uns dias antes da nossa publicação e nós ainda conseguimos actualizá-lo relativamente a dados de 2022. E consegui também confrontar o sector da saúde sobre esta questão, por exemplo, dos contraceptivos, não é? Que o número é bastante abaixo daquilo que é o desejável.
42% é um número muito baixo, não é?
É. É um número baixíssimo. E explicaram, no sector da saúde, que isto tem a ver com a questão da recolha dos dados. Porque há muitas pessoas que fazem a escolha de fazer o seu planeamento familiar nas estruturas privadas e estes dados referem-se às nas estruturas públicas, o que já nos mostra que é preciso arranjar mecanismos de recolha de dados nas estruturas privadas, por exemplo, que nos permita depois fazer este cruzamento. Porque realmente não se justifica. Tendo em conta a aposta que foi feita pelos sucessivos governos. A questão do planeamento materno-infantil tem sido realmente uma aposta de Cabo Verde desde a independência. E os números também nos mostram a questão da mortalidade infantil, da questão da saúde materna. Quer dizer, há muitos avanços que depois não justificam estes números da contracepção. Parecem um tanto ou quanto contraditórios. Até a própria redução da taxa da natalidade, da fecundidade, do número de filhos que vamos tendo. Mas uma explicação passa por muitas pessoas fazerem o planeamento familiar nas estruturas privadas.
O recurso às estruturas privadas também pode ser indicativo de alguma forma de uma melhoria das condições de vida.
Sim, pode ser melhoria das condições de vida. Também reflexo um bocado da pequenez que nós temos. Nós sabemos que há uma grande dificuldade, como estas questões do género e das denúncias e dos crimes de violência baseada no género, por exemplo, que a proximidade que temos, como ilha, como municípios, como a familiaridade, é também um impeditivo muito grande de as pessoas chegarem aos serviços. Há vários relatos quando vamos aos municípios, quando visitamos vários parceiros, de jovens que contam que às vezes iam ao PMI pedir informações para trabalhos escolares. Mas quando chegavam a casa já os pais sabiam que tinham ido eao PMI. Então, esta pequenez, esta familiaridade, é também um bocado limitativa. Isso acaba por interferir naquilo que, no fundo, nós lutamos, que é a liberdade, a autonomia da pessoa fazer decisões conscientes sobre o próprio corpo, mas depois está condicionada por esta pressão social que ainda existe. Em vários sítios é ainda um bocado problemático porque há essa questão ainda do controlo. Ainda há mulheres que não tomam decisões livres e conscientes sobre a sua própria intimidade. Então, são questões que devem ser cruzadas todas.
Dizia há pouco que vemos o risco de começar a ficar para trás no que respeita aos direitos dos homens. Um dos dados curiosos que surge aqui neste trabalho é a questão da esperança média de vida e da idade da reforma. Os homens têm uma esperança média de vida de 67 anos e idade de reforma é aos 65 anos. Já as mulheres têm uma esperança média de vida de quase 72 anos e uma idade de reforma aos 60 anos. É um dado que tem de ser trabalhado?
Tem de ser trabalhado e é uma das coisas para a qual nós temos vindo a alertar. Quando em 2022 começamos a assinalar o Dia Internacional do Homem, em que nos acusaram de seguir modismos, a ideia foi exactamente essa. O Dia Internacional do Homem surgiu até por indicação da Organização Mundial de Saúde, exactamente porque os homens culturalmente, principalmente nos países africanos, tendem a não procurar estruturas de saúde. E esta questão da esperança média de vida é um reflexo disso. Nós brincamos ao dizer que é um bónus para as mulheres, mas não é, porque a diferença já está a alargar-se muito. Então, tem a ver com esta questão e que também se reflecte nas doenças que afectam principalmente os homens, as taxas de mortalidade, porque os homens têm uma grande renitência em ir às estruturas de saúde, ou quando vão, já vão em situações extremas. Está também associado, quer se queira, quer não, à própria concepção das masculinidades, não é? Um homem que é homem não vai ao médico ou tem uma dor, tem de aguentar. Ou não se expressa fragilidade. Que neste sentido não são fragilidades, são contingências da vida e qualquer um de nós está sujeito a isso. As mulheres tendem a cuidar mais da sua saúde, porque sendo elas também cuidadoras de outros, têm de estar minimamente bem para poderem cuidar dos outros. Os homens não têm cuidado consigo. E isto é um problema de género que nós temos estado a alertar e que realmente se reflecte nestas questões. Depois também temos problemas ao longo da vida activa. De discrepâncias salariais entre homens e mulheres, o tempo que descontam. Os homens descontam tendencialmente mais, porque começam muitas vezes a trabalhar mais cedo, descontam durante mais tempo, mas depois acabam por não gozar a sua reforma, porque morrem muito mais cedo. E as mulheres que são aquelas que têm mais fragilidade ao longo da vida activa, que têm um salário mais baixo, descontam menos durante menos tempo, são aquelas que depois podem vir a passar por mais dificuldades na idade da reforma, porque vivem durante mais tempo. São tudo questões que se tem de começar a falar, não só para a própria sustentabilidade do próprio sistema da protecção social, como também com a própria qualidade de vida dos indivíduos. E é por isso que é importante termos estas publicações desagregadas por sexo para podermos fazer essa análise com enfoque em género, porque é diferente. É diferente fazer-se essas análises, é diferente um homem e uma mulher reformar-se na mesma idade, mas depois as consequências que daí advém são diferentes e distintas. E isto depois implica diferenças no investimento, por exemplo, com a saúde, no investimento com cuidadores, com outras estruturas, realmente é importante estarmos atentos e percebermos.
Fala de um dado que, pelo que consegui perceber, não está aqui presente directamente, que é a questão das diferenças salariais. O chamado fosso salarial entre homens e mulheres é uma realidade em Cabo Verde ou não?
O que nós temos é uma diferença de funções. Nós dizemos sempre, é proibido pagar de forma distinta, fazer-se esta distinção entre homens e mulheres, até pelo mesmo trabalho, não se pode oferecer salários diferentes. O que difere, sim, tem a ver com aquilo que chamamos de uma auto-segregação. Nós fizemos um estudo sobre o perfil de género na administração pública, em que há cargos que podem estar no mesmo nível, mas depois têm diferenças salariais, mas que as pessoas se auto excluem dos mesmos. Quando aparece um anúncio para condutor/condutora, raramente as mulheres se candidatam, mas nada as impede de candidatar, não é? Só que há já uma percepção de que condutor é um trabalho masculino. Tal como uma técnica operacional. As técnicas operacionais, quase na sua exclusividade, são mulheres, mas nada impede que seja um homem. Agora o que é que isto faz? É que estando, às vezes, no mesmo nível, oferecem salários diferentes, não é? Porque um condutor recebe mais do que uma técnica operacional, apesar de estarem enquadrados no mesmo nível. E então é este tipo de segregação, há outras áreas...
Isto tem a ver com aquele estigma, por assim dizer, de que há profissões de homens e profissões de mulheres.
Exactamente. Depois há outra questão que tem a ver com a disponibilidade, que muitas vezes as mulheres não têm, de aceitarem horas extras ou determinados turnos. Também fizemos um estudo que tem a ver com outras formas de trabalho, trabalhos não remunerados, cuidados, trabalhos domésticos. Muitas vezes as mulheres não podem auferir um maior salário, porque esse salário implica um maior número de horas ou outro tipo de turnos porque quando saem do seu emprego têm de entrar noutro emprego informal, que tem a ver com a vida da casa, dos filhos, da família e tudo o resto. No sector do turismo, por exemplo, temos um plano de género. Neste sector, isso é muito notório, as diferenças chegam a ser de 50% porque há exactamente esta disparidade na disponibilidade que as mulheres têm ou não de auferir outro tipo de salários porque têm de ter maior disponibilidade para aceitar mais horas. E isso é algo que, parecendo que não, causa um grande fosso salarial, que depois tem aquelas implicações que nós falámos, por exemplo, nos descontos para a reforma. Estou sempre a dizer, quando se fala nesta questão de equiparar ou de equivaler os anos de reforma, que eu acho que é um caminho, uma parte dos países é assim, é para lá que caminham, mas que esta seja uma forma de equilibrar os desequilíbrios de género tenho as minhas dúvidas. Porque estes desequilíbrios manifestam-se ao longo da vida activa. E não é depois na inactividade que se vão corrigir os desequilíbrios de toda uma vida activa. Portanto, acho que é necessário trabalharmos, sim, durante a vida activa para que realmente depois não se seja descompensado na reforma. Mas acho que ainda é um caminho que temos de percorrer, a proposta também que há é que seja uma opção. Que a pessoa realmente que descontou menos tempo, se quiser prolongar a sua vida activa, possa ter essa oportunidade, porque realmente há que fazer certos ajustes durante a vida activa, para que depois isso não se reflicta na sua reforma.
O estudo também fala na questão da gestão do dinheiro doméstico e mostra que os homens ganham na sua maioria mais do que as mulheres, mas também diz que é a mulher que gere o dinheiro deles...
Há aí dois dados interessantes em toda esta lógica social. Que é essa do uso do dinheiro e na tomada de decisões, também às vezes aquela questão de que os homens e as mulheres partilham visitar familiares, da mobilidade. Acho que são dados interessantes porque mostra, ao contrário daquilo que nós pensamos, que no domínio familiar ou no contexto familiar, a mulher tem uma palavra a dizer sobre essas questões das mobilidades, quem é que se visita, onde é que se vai, onde é que se gasta o dinheiro. E depois outra que para nós causa algum espanto, mas que tem a ver com a normalização da violência. Também há dados que mostram que as mulheres aceitam mais que o homem cometa violência sobre elas do que os próprios homens. Isto também mostra, ao contrário do que se diz, que realmente há uma grande normalização, mas por parte das mulheres e não tanto por parte dos homens. Portanto, esta questão dos dinheiros é interessante porque quando saiu, isso é do IDCR 2018, foi realçado que 6% das mulheres não controlavam o seu próprio dinheiro. Eu digo sempre que isto das estatísticas tem sempre as duas partes. Se 6% não controlam, quer dizer que 94% controlam. Portanto, é preocupante sabermos que temos mulheres que não controlam o seu próprio dinheiro, mas também temos de pensar que há muitas delas que controlam não só o seu dinheiro, como também o dinheiro comum. O problema é que muitas vezes também isso é uma coisa que se diz para as estatísticas, e se calhar depois na prática não são as práticas correntes. Isto agora já nos é mais difícil aferir, porque nós temos de trabalhar é com os dados que temos. E isto, porquê? Porque quando depois apresentamos estes dados, as pessoas têm logo uma primeira reacção de contestar dizendo que isso não acontece assim e que é só para constar na estatística, ou para parecer bonito. Mas nós trabalhamos com os dados que temos, não é? E há falta de outros dados. Temos de confiar naquilo que as pessoas dizem, mas também temos de contar com essa parte que muitas vezes, se calhar nos inquéritos e nos censos que são feitos, até que ponto as pessoas dizem a verdade. Mas nós, como eu digo sempre, temos os dados, temos de trabalhar para todos os cenários. Temos de trabalhar e pensar naquelas que realmente controlam o seu dinheiro e o dinheiro do lar, e para aquelas que não controlam. Para percebermos as questões da percepção da violência, ou de como a pessoa pode estar sujeita ou não a actos de violência. Porque está muito associado. E também se fala muito de que a dependência económica é um dos factores que potencia, não é? Não só a normalização, como a permanência em casos de violência baseada no género. Por exemplo, no município da Praia, as pessoas que nos visitam, e que vêm aqui procurar informações, fazer denúncias, sabemos que grande parte delas são casos que não têm a ver com a dependência económica. Porque aqui no município da Praia, são mulheres que têm qualificações académicas, que têm o seu emprego, muitas delas até são elas as provedoras da casa, mas há sim uma grande dependência emocional.
E no caso dos homens?
Temos sentido um aumento. Quando cheguei ao ICIEG, havia três casos por ano. Este ano já vamos nos doze. É difícil os homens darem-se como vítimas. Não vêm dizer que são vítimas. Por vezes até nos procuram para pedir ajuda, para não se tornarem agressores, porque depois daí percebemos que eles estão num contexto de violência em que eles são vítimas. Eles percebem que há uma situação realmente tóxica e pedem-nos apoio para não responderem da pior forma. Depois vamos verificar que realmente estão num contexto...
Estamos a falar de casos de violência física?
As mulheres praticam um tipo de violência mais psicológica. E nós sabemos também que as tipologias de violência variam muito e há algumas diferenças. As mulheres praticam mais violência psicológica, patrimonial também. Os homens praticam mais violência física associada a psicológica e patrimonial e tudo o mais. As mulheres, grande parte pelas diferenças biológicas, é mais fácil exercerem violência psicológica e é isso que muitos deles sofrem. Mas não o conseguem identificar. Como não é físico, não conseguem identificar logo à partida que são eles as vítimas. Sabem que, como se diz, estão a “encher”. Estão a sentir que estão numa situação tóxica e que está realmente a causar algum desassossego e não sabem responder a isso. E têm a consciência que se responderem, provavelmente irão responder da pior forma. Depois é que verificamos realmente que é uma situação de violência, porque é importante dizer que a violência não é só violência física. Isso é mais difícil de ser provado, mas a violência psicológica é uma realidade que muitas pessoas passam, principalmente na classe média alta onde a violência física não é tão comum.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1185 de 14 de Agosto de 2024.