Durante três anos, Carlos (nome fictício) esteve num relacionamento à distância com a sua companheira, que trabalhava na Praia, mas retornava à casa, no interior, diariamente.
Ao decidir terminar a relação, a sua companheira recusou-se a aceitar o fim e tomou medidas extremas para o reter. Membros da família da mulher arrombaram a janela da casa de Carlos, roubando-lhe pertences de valor.
Apesar de reconhecer o desejo de atenção por trás desse acto, Carlos não imaginava que isso era apenas o começo de uma série de incidentes perturbadores.
Segundo conta ao Expresso das Ilhas, a perseguição começou logo depois, com ligações constantes para o seu telemóvel.
“Quando eu atendia o telefone ouvia apenas a sua respiração e depois de alguns minutos desligava. Às vezes, quando eu atendia era atacado com palavras ofensivas”, relata.
Sem conseguir uma reacção, Carlos revela que a ex-companheira chegou ao extremo de arrendar uma casa próxima à sua para controlar os seus movimentos.
“O cúmulo foi quando ela bateu à minha porta e se mostrou-se disponível a aceitar uma relação comigo, mesmo tendo uma outra pessoa na minha vida. Como eu recusei, armou um escândalo e tentou agredir-me, chegando a arranhar o meu pescoço”, prossegue.
Foi então que Carlos decidiu fazer uma queixa à polícia, buscando protecção contra a violência que estava sofrendo.
No entanto, diz que a sua queixa foi recebida com descaso e desdém por parte dos policiais, que riram e não deram a devida atenção à situação.
Carlos também ressalta que a sua queixa foi menosprezada devido a uma sociedade machista e preconceituosa, que tende a ver apenas as mulheres como vítimas e não reconhece que os homens também podem ser agredidos.
“O preconceito de género e a visão estereotipada da sociedade fizeram com que a minha queixa não fosse levada a sério. Somente após quase quatro anos, em Dezembro de 2022, a polícia entrou em contacto comigo a fim de saber se eu queria dar continuidade à queixa. Nessa altura, a fulana já não se encontrava na ilha de Santiago e já tinha seguido com a sua vida. Não levei adiante”, narra.
Carlos descreve a relação conturbada como caracterizada por ciúmes excessivos, controlo sobre o seu telefone e ameaças de suicídio caso deixasse a companheira.
Essas ameaças, conforme conta, deixavam-no sob extrema pressão, temendo pela segurança da companheira e a sua própria, chegando a ter receio de dormir à noite.
“Após cinco meses, a perseguição finalmente terminou quando a minha ex-companheira se mudou para a ilha do Sal. No entanto, durante esse período, vivi com medo constante, pois ela conhecia todos os meus passos e as ameaças vindas da sua família aumentavam a sensação de insegurança”, ressalta.
Resistência às denúncias
Em declarações ao Expresso das Ilhas, a presidente do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG), Marisa Carvalho, ressalta a preocupante falta de denúncias de violência por parte de homens vítimas.
Segundo Marisa Carvalho, no centro de apoio à vítima da Praia, foram registados 92 atendimentos no último ano, sendo apenas quatro de homens.
Muitos deles relataram ter ido a uma esquadra policial, mas não conseguiram fazer a queixa devido à falta de atendimento adequado.
“Grande parte desses homens que nos procuraram tinham ido a uma esquadra e não conseguiram fazer a queixa porque não tiveram o atendimento que consideraram que deveriam ter tido. E muitos homens não se consideram vítimas”.
“Eles procuram-nos muitas vezes para pedir apoio para não se tornarem agressores. Isto quer dizer que eles são vítimas, muitas vezes, de violência psicológica por parte das suas companheiras e têm noção de que estão a atingir um limite e que atingindo esse limite podem reagir de forma violenta”, explica.
A presidente do ICIEG destaca que os homens têm dificuldade em reconhecer que são vítimas de violência, pois assumem o papel de agressores, apesar de relatarem palavras ou acções abusivas por parte das suas companheiras, identificando sinais de violência psicológica ou patrimonial.
Marisa Carvalho observa que, embora relatos de violência física não sejam frequentes, acredita-se que existam casos, mas os homens enfrentam grande resistência em denunciá-los, principalmente por causa dos estereótipos sociais que os veem como mais fortes e incapazes de serem agredidos por suas companheiras.
Contudo, afirma que as casas de apoio estão preparadas para receber vítimas masculinas, mesmo que ainda não tenham ocorrido pedidos nesse sentido.
Necessidade de mudança de abordagem
Para a presidente do ICIEG, é necessária uma mudança de foco na abordagem dos casos de violência, deixando de culpabilizar a vítima e dando mais visibilidade e responsabilização ao agressor.
Marisa Carvalho ressalta ainda a importância de entender que as questões de género afectam tanto homens quanto mulheres e que é fundamental a participação de todos no diálogo.
Aliás, refere que o ICIEG tem realizado conversas com homens para abordar essas questões e incluí-los no diálogo sobre género, mas tem enfrentado resistência.
Também avança que o instituto está a trabalhar, em parceria com as Nações Unidas, para realizar um estudo mais aprofundado sobre o perfil dos agressores e das vítimas, a fim de compreender melhor o fenómeno da violência baseada no género.
“Precisamos fazer um estudo específico que nos ajude a perceber o perfil dos agressores e o perfil das vítimas porque nós precisamos perceber porque é que isto está a acontecer, porquê que estas situações ocorrem e o que é que podemos fazer para as prevenir. E para isso, precisamos estudar esse fenómeno”, frisa.
Isso implica em dar mais visibilidade às questões de violência e em evitar desculpabilizações tanto para a vítima quanto para o agressor, promovendo uma abordagem mais consciente e efectiva no combate à violência doméstica, conforme Marisa Carvalho.
Padrões culturais e sociais dificultam busca de homens por ajuda
Questionado sobre a violência psicológica, o psicólogo, Nilson Mendes, aborda a questão e as suas formas de manifestação, ressaltando que vai além das palavras e que envolve humilhação e agressão intencional para ferir a vítima.
Perante esta situação, explana que muitas vezes os padrões culturais e sociais contribuem para a resistência dos homens em buscar ajuda em casos de violência.
“Temos um padrão educativo em que o homem não pode humilhar-se, não pode chorar, não pode rebaixar perante certas situações. É uma questão para fazer uma análise e ver que é um dos factores que predomina na questão da resistência do homem. Também a questão social que acentua o papel do macho”, fundamenta.
Mendes destaca que o atendimento aos homens vítimas de violência é limitado devido às características atribuídas às mulheres, o que gera pouca procura de ajuda, especialmente em casos de violência física.
A vergonha e a timidez são, segundo o psicólogo, factores que influenciam o comportamento dos homens, levando-os ao isolamento ou a tentar resolver a situação com o tempo.
No entanto, a agressão contínua pode levar a uma revolta que resulta em reacções extremas, incluindo a agressão física.
“Essa revolta pode levar o homem a reagir de forma mais extrema possível. A agressão não vem simplesmente de levar uma porrada ou ser humilhado, mas sim algo que se vai construindo. Muitas vezes, quando o homem reage pode não ser de imediato e cria oscilação sentimental, de foro emocional e descarrega de forma agressiva”, descreve.
O psicólogo também aborda a identificação de uma relação abusiva, enfatizando que ocorre quando uma parte impõe regras e condutas que vão contra a felicidade e o bem-estar do sujeito ou do casal.
“O controlo excessivo, ciúmes compulsivos e atitudes destrutivas são sinais dessa dinâmica. Além disso, a pessoa não se sente estável nem bem consigo mesma, tornando-se dependente emocional, financeira e habitacionalmente”, caracteriza.
Mendes destaca que é importante reconhecer os sinais de uma relação abusiva são percebidos pelo próprio indivíduo como falta de bem-estar, felicidade, tranquilidade e paz.
Quando esses aspectos são comprometidos devido à relação com o outro, alerta, é necessário ficar vigilante.
“Para sair dessa situação, é importante reconhecer os seus sentimentos, priorizar o bem-estar e a saúde psicológica e emocional. É necessário ser um pouco egoísta”, aconselha.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1128 de 12 de Julho de 2023.