Venda ilegal de medicamentos na Praia: Preços acessíveis atraem compradores, apesar dos riscos para a saúde

PorSheilla Ribeiro,19 jan 2025 8:16

Na cidade da Praia, a venda ilegal de medicamentos tornou-se uma prática comum, abastecida principalmente por barris enviados dos EUA e outros países. Com preços mais acessíveis e a possibilidade de comprar unidades avulsas, essa alternativa atrai quem busca economizar. A Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS) revela que entre os medicamentos mais vendidos ilegalmente estão analgésicos, anti-inflamatórios, antibacterianos e remédios para a disfunção eréctil.

Todos os domingos, a avenida Cidade de Lisboa, na cidade da Praia, enche-se de vendedeiras. No chão, pendurados ou dentro de barris, podemos avistar uma infinidade de produtos como roupas, produtos de higiene e até mesmo medicamentos, a maioria proveniente dos EUA.

Foi neste cenário que encontramos Maria (nome fictício), sentada atrás de uma pequena mesa repleta de caixas de remédios.

“Comecei a vender porque sempre recebi remédios nos meus bidões e as pessoas chegavam até mim à procura de remédios para febre ou diarreia. Então passei a vender. Se a pessoa vier procurar e se eu tiver, eu vendo”.

Maria não fala inglês, mas, conforme diz, os filhos traduzem o folheto dos medicamentos nos telemóveis e explicam como funciona. Esta, por sua vez, fixa tudo e passa a informação aos consumidores.

Segundo Maria, a procura é alta. “O mais procurado é o xarope rosa para a diarreia. Também procuram muito os remédios para a dor, tanto em gel como em comprimidos. Eu vendo mais caro do que nas farmácias porque estes remédios vêm dos EUA. Alguns, até vendem aqui de outras marcas, mas as farmácias não vendem remédios vindos dos EUA. Então, vendo mais caro do que nas farmácias”, detalha.

Conforme diz, muitos dos que a procuram para comprar os remédios alegam que não procuram as farmácias por considerarem os medicamentos dos EUA mais eficazes.

“Segundo dizem o efeito é mais imediato. Mas também há muita procura porque nas farmácias não vendem, por exemplo, um ou dois comprimidos. E muitas vezes a pessoa não quer comprar uma caixa. É aí que eu ganho porque vendo cada comprimido por 10, 20 ou 30 escudos, dependendo do medicamento”, conta. Aliás, garante, nunca ninguém reclamou de efeitos contrários dos seus remédios.

Além de medicamentos, Maria comercializa outros produtos de saúde e higiene, como ligaduras elásticas, cremes para assaduras, enxaguantes bucais e desodorizantes para doentes. “Se juntar todos os remédios que tenho em casa, mais estes aqui, passam de um bidão de remédios”, revela.

Enquanto falava, clientes aproximavam-se, alguns em busca de produtos específicos, outros curiosos com a variedade exposta.

Confiança e limitações no acesso

Um dos clientes que se aproximaram da Maria enquanto lá estávamos, foi Selma, de 30 anos, que, assim como muitos cabo-verdianos, recorrem ao comércio informal de medicamentos para suprir as necessidades da sua família.

“Eu compro nas senhoras de rua quando a minha mãe, que costuma receber medicamentos que vêm nos bidões, não os tem”, relata Selma.

Segundo a mulher, os medicamentos que a sua família recebe incluem opções para dores musculares, dores de cabeça, febre, gripe, diarreia, nariz entupido e até alergias.

“Não só usamos esses medicamentos como também oferecemos a amigos e vizinhos quando precisam”.

Selma explica que a maioria dos medicamentos recebidos está disponível nas farmácias, mas com marcas diferentes. “Sempre têm bons resultados e tenho o cuidado de ler os folhetos que passam as informações. São medicamentos básicos que tratam sintomas simples, então não me preocupo com a prescrição médica”, admite.

A entrevistada acredita que o acesso aos medicamentos nas farmácias locais é limitado e que por esta razão muitos optam pelo mercado informal.

“Há falta de muitos medicamentos, às vezes até dos essenciais e muito usados, como, por exemplo, remédios para os hipertensos e outros medicamentos mais específicos que muitas pessoas mandam comprar fora do país”, acredita.

O custo elevado é outro factor que incentiva a procura por alternativas. “O preço depende do medicamento e da situação da pessoa, se for ou não segurado. Mas, às vezes, mesmo sendo segurado, há muitos medicamentos [na farmácia] que não têm cobertura do INPS e o preço fica muito elevado”, aponta.

Remessa de remédios é constante

Outra cliente de Maria é Paula, de 45 anos, que aguarda para adquirir um xarope rosa (Pepto Bismol) oriundo dos EUA e conhecido por tratar diarreias e dores no estômago.

Paula diz confiar muito nos medicamentos vindos do exterior e adquiridos fora das farmácias legalizadas.

“Eu recebo caixas de França que a minha mãe manda, e ela sempre mete lá dentro medicamentos como Doliprane, vitaminas, xarope para a tosse e outros”, explica.

“Tenho o hábito de consumi-los quando sinto alguma coisa e também compro nas pessoas que vendem produtos dos EUA. É o que vim buscar hoje, inclusive”, diz.

Paula reconhece que, com excepção do xarope rosa, os medicamentos enviados pela sua mãe podem ser encontrados nas farmácias locais, embora sob marcas diferentes.

“Mas, por que comprar nas farmácias se posso tê-los sem pagar? Se eu confio nos remédios vendidos pelas farmácias, por que não posso confiar nos que a minha mãe manda? Não sinto nenhum receio em consumi-los, são remédios para sintomas básicos que não precisam de receita médica”, argumenta.

Embora Paula reconheça a importância das farmácias, aponta desafios no acesso a medicamentos, especialmente para quem não possui seguro de saúde, por isso não condena quem os vende no mercado informal.

“Para aqueles que não têm seguro, os preços são um pouco elevados. E mesmo aqueles que têm seguro, há muitos medicamentos que o INPS não cobre”, lamenta.

“Relativamente à disponibilidade, isso depende. Se for um remédio para época de muita virose, por exemplo, e a demanda for muita, sempre esgota no mercado e a pessoa fica um pouco à rasca. Por isso não sou contra quem ganha a vida vendendo remédios”, refere.

Prejuízos aos farmacêuticos

Ao Expresso das Ilhas, a bastonária da Ordem dos Farmacêuticos de Cabo Verde (OFCV), Marcília Fernandes, diz que a venda ilegal de medicamentos afecta tanto o exercício da profissão quanto a qualidade dos serviços prestados à população.

“A venda ilegal de medicamentos pode colocar em risco a saúde da população, já que muitos desses produtos são falsificados, adulterados ou armazenados inadequadamente”, alerta Marcília Fernandes.

Estes medicamentos, muitas vezes adquiridos fora dos estabelecimentos regulamentados, podem levar a efeitos adversos, agravamento de doenças e até mesmo à resistência antimicrobiana (RAM), um dos maiores desafios de saúde global.

Entre os medicamentos mais frequentemente encontrados no mercado ilegal estão os antibióticos. “O uso não racional desta classe de medicamentos potencializa a RAM, que em África já causa mais mortes do que a malária e o HIV/SIDA juntos”, aponta a bastonária que frisa a gravidade do problema e a urgência em combatê-lo.

Além dos riscos para a saúde, a venda ilegal enfraquece a confiança da população nas farmácias e nos farmacêuticos.

“Isso prejudica a imagem da profissão e leva muitos pacientes a procurarem medicamentos de fontes informais, desconhecendo os riscos”, acrescenta.

Para combater o problema, a OFCV tem intensificado parcerias com o Ministério da Saúde e outras organizações. “Estamos a desenvolver campanhas de sensibilização para alertar a população sobre os perigos dessa prática e promover o uso racional de medicamentos. A educação e a consciencialização são ferramentas essenciais nesta luta”, alega.

A presença do farmacêutico no sector público seria um ganho importante para implementar programas de educação e de atenção integral à saúde da população, conforme defende.

“Muitos pacientes, especialmente em áreas rurais ou mais carentes, podem não entender os riscos envolvidos no consumo de medicamentos adquiridos em estabelecimentos não regulamentados”, justifica.

Paracetamol e Ibuprofeno lideram lista de medicamentos vendidos ilegalmente

Os analgésicos Paracetamol e Ibuprofeno, amplamente utilizados para aliviar dores e febres, estão no topo da lista de medicamentos mais vendidos de forma ilegal em Cabo Verde, segundo dados disponibilizados pela Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS).

Além destes, outros medicamentos, como o ácido acetilsalicílico (aspirina), antibacterianos como Amoxicilina e Cloxacilina, bem como produtos usados para tratar disfunção eréctil, como Sildenafil, também figuram entre os mais frequentemente encontrados em vendas ilegais.

Os multivitamínicos e sais minerais, usados para corrigir carências nutricionais, e os antiácidos, como Omeprazol, também estão entre os medicamentos muitas vezes comercializados fora das farmácias licenciadas.

Lenira Centeio, técnica afecta à Direcção de Regulação Farmacêutica da ERIS, assevera que a venda de medicamentos fora de farmácias devidamente licenciadas é uma violação grave da legislação em vigor.

“Os dados que registamos mostram que esses medicamentos estão a ser vendidos em locais como minimercados, mercados municipais, lojas de conveniência e até mesmo em plataformas online”, afirma.

A técnica reforça que, em Cabo Verde, a comercialização de medicamentos só é permitida em farmácias regulamentadas. “Qualquer outro local que os comercialize está a infringir a lei e coloca em risco a saúde pública ao disponibilizar produtos de origem duvidosa ou armazenamento inadequado”, avisa.

A ERIS enumera diversos perigos associados ao consumo de medicamentos adquiridos de forma ilegal. Entre os mais graves estão a possibilidade de ingestão de produtos falsificados, que podem conter substâncias tóxicas, ou de medicamentos que não possuem a dosagem correcta para tratar uma doença.

“Isso pode levar ao agravamento das condições de saúde, prolongar o sofrimento do paciente e, em muitos casos, gerar complicações graves”, explana Lenira Centeio.

Além disso, o consumo inadequado de antibióticos provenientes de fontes não confiáveis pode contribuir para o aumento da resistência a esses medicamentos, dificultando o tratamento de infecções no futuro.

Outro risco é a automedicação, que muitas vezes ocorre quando as pessoas compram medicamentos sem orientação de um profissional de saúde. “A prática da automedicação, aliada à aquisição de produtos de baixa qualidade, é uma combinação perigosa que pode levar a custos mais elevados para o paciente e para o sistema de saúde nacional”, acrescenta.

Medidas para combater o mercado ilegal

Em 2023, a ERIS realizou nove inspecções direccionadas ao mercado ilícito e trabalhou em conjunto com a Polícia Judiciária e as Alfândegas para monitorizar e controlar a entrada de medicamentos no país. Durante essas operações, foram apreendidas 14.554 unidades de comprimidos e 66 embalagens de medicamentos, incluindo xaropes e soluções líquidas.

A entidade também investe em campanhas de sensibilização através da televisão, distribuição de materiais informativos nas estruturas de saúde e acções educativas para alertar a população sobre os perigos de adquirir medicamentos fora das farmácias regulamentadas.

Quanto às penalizações, quem comercializa medicamentos de forma ilegal pode ser multado em valores que variam entre 5.000 e 3.000.000 escudos, dependendo se são indivíduos ou empresas. Além disso, a importação de medicamentos sem autorização prévia também é considerada uma contra-ordenação grave, sujeita a sanções financeiras significativas.

A ERIS aconselha os consumidores a adquirirem medicamentos exclusivamente em farmácias licenciadas e a verificarem cuidadosamente os produtos antes do uso. “Certifiquem-se de que a embalagem está intacta, o medicamento tem o prazo de validade actualizado e que todas as informações estão devidamente legíveis”, orienta Lenira Centeio. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1207 de 15 de Janeiro de 2025.

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Autoria:Sheilla Ribeiro,19 jan 2025 8:16

Editado porEdisângela Tavares  em  2 fev 2025 19:20

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