Segurança em São Vicente: Manifestantes querem que autoridades olhem para lá da criminalidade visível

PorAndré Amaral,7 jun 2025 7:30

A manifestação realizada no passado fim-de-semana em São Vicente, centrada na questão da segurança, representa mais uma tentativa da sociedade civil de chamar a atenção das autoridades para uma realidade que, segundo os promotores da iniciativa, vai muito além da criminalidade visível. Ainda não houve uma reacção formal das autoridades à manifestação, mas os organizadores mantêm-se optimistas de que os poderes públicos irão reagir à situação que afecta a ilha. De acordo com os organizadores, o problema é, acima de tudo, de impunidade e de desajustamento das leis face aos tempos actuais.

O objectivo das manifestações, explica David Leite, um dos organizadores da manifestação, não é entrar em confronto com as autoridades, mas sim colaborar para que sejam tomadas medidas efectivas. "O nosso alvo é o poder legislativo. E quem diz o poder legislativo diz o Parlamento. E quem diz o Parlamento diz, por arrastamento, os tribunais, ou seja, o poder judicial, para que haja leis mais consentâneas com o nosso tempo e mais amigas do cidadão. Porque as leis que nós temos neste momento não são amigas do cidadão", afirmou.

A manifestação do fim-de-semana não foi um evento isolado. Já no dia 5 de Abril tinha sido realizada uma acção semelhante, descrita como uma “corrente humana”, mais simbólica, mas que serviu de embrião para a mobilização que agora se intensifica. A intenção, garantem os organizadores, nunca foi estabelecer uma relação de antagonismo com o Estado ou promover qualquer tipo de subversão. Pelo contrário, a mensagem transmitida é de cooperação e de alerta. “É bom que se note que aqui ninguém quer entrar num braço-de-ferro com as autoridades, não há crispação”, assegura.

A preocupação central prende-se com uma percepção crescente de insegurança, agravada por uma sensação de impunidade generalizada. Embora a vida quotidiana em São Vicente aparente normalidade, com turistas a circular e a população a viver com relativa tranquilidade, há, segundo os organizadores da manifestação, uma realidade oculta, que escapa às estatísticas oficiais e à cobertura da comunicação social. “À vista desarmada não se vê nada. São Vicente é um lugar muito interessante para circular e para se viver. Mas há muita coisa que não se vê, muita coisa que não passa na informação. A nossa comunicação social não diz tudo, longe disso”, sublinha o entrevistado.

O desinteresse crescente em apresentar queixas à polícia, motivado pela falta de confiança nas autoridades e no sistema de justiça, contribui para um cenário preocupante. “As pessoas já nem sequer apresentam queixa quando são vítimas de furto ou roubo ou de outro tipo de crime ou delito, porque já não acreditam na polícia, porque já perderam a fé na justiça. Então, fica a sensação — e há quem prefira assim — de que está tudo na santa paz dos deuses, o que não é verdade”, denuncia.

Um dos problemas mais destacados é o funcionamento do sistema judicial. Casos de furto e roubo acabam muitas vezes por ser arquivados ou resultam na libertação dos suspeitos, por ausência de flagrante delito ou de provas materiais. “O problema é quando, se porventura, o que é raro, um caso é averiguado pela polícia e chega ao tribunal, e o juiz decreta de maneira expedita, e sem ouvir os interessados, a soltura do indivíduo porque não foi apanhado em flagrante, porque não há prova material do crime e porque o indivíduo diz que não foi ele”, aponta.

Esse padrão tem causas estruturais. Os crimes, frequentemente associados ao consumo de drogas, tornam quase impossível a apresentação de provas materiais. O ladrão, explica-se, não guarda os objectos furtados, vendendo-os de imediato para comprar substâncias psicoactivas, como o crack. “É claro que a polícia não vai encontrar prova material do crime, porque o ladrão, mal roubou, já vendeu. Essa é a realidade”, reforça.

Outro factor que dificulta a investigação é a exigência legal de mandado do Ministério Público para aceder às imagens de videovigilância, o que retira eficácia às câmaras instaladas em zonas estratégicas. “Perguntamos: para que serve uma câmara de vigilância que filma uma pessoa a penetrar por arrombamento numa casa, se a polícia não pode usar essa imagem?”, questiona.

A criminalidade ligada à toxicodependência surge como um dos principais desafios. As operações policiais têm resultado, maioritariamente, na apreensão de drogas como haxixe, crack e cannabis, o que reforça a ideia de que o consumo e o tráfico estão na base de muitos delitos. “A toxicodependência é um problema real. E é um problema grave. Se não forem tomadas medidas para conter essa praga, corremos o risco de ter uma juventude completamente alienada e depravada”, alerta.

Para combater este fenómeno, o entrevistado defende a implementação de políticas sociais direccionadas à juventude, com o objectivo de canalizar a sua energia para actividades úteis. Contudo, critica a incoerência de políticas públicas que, ao mesmo tempo que restringem o consumo de álcool, promovem eventos de promoção de bebidas alcoólicas. “Nós somos um país que se gaba de ter uma lei do álcool e que, ao mesmo tempo, promove cervejadas e festivais de cerveja. Vivemos numa hipocrisia incrível. A hipocrisia política neste país é algo que nos ultrapassa”, observa.

Uma das propostas apresentadas para melhorar a segurança passa por um reforço do policiamento de proximidade, com uma presença mais activa e constante da Polícia Nacional nos bairros, mas também com uma abordagem mais comunitária. A ideia não é apenas aumentar o número de agentes nas ruas, mas sim criar uma ligação mais estreita entre os agentes da autoridade e os cidadãos. “Seria também uma aproximação maior com a população, não apenas do ponto de vista policial, com farda, mas que houvesse uma proximidade mais em sintonia com a própria população.”

O uso de agentes à paisana e a criação de parcerias com membros da própria comunidade são também apontados como soluções eficazes. “Porque não recrutar pessoas nos próprios bairros para colaborarem, não como delatores ou delinquentes baratos, mas para contribuírem para que haja uma maior serenidade e tranquilidade, maior segurança nos bairros”, sugere.

A passividade das forças policiais perante a existência conhecida de pontos de venda de droga, vulgarmente designados por “bocas de fumo”, é outra questão que gera perplexidade. “As pessoas sabem onde estão os locais chamados bocas de fumo, onde é vendida droga. Se as pessoas sabem, a polícia não sabe? Toda a gente sabe. Se a polícia não sabe, é só abeirar-se da população e fica a saber”, denuncia.

Essa falta de acção, segundo o entrevistado, levanta dúvidas difíceis de esclarecer e alimenta suspeitas que prefere não verbalizar sem provas. “Fico com esta incógnita. Por que é que a polícia não age com mais contundência? Por que é que a polícia não age com mais celeridade? Por que é que não é mais operacional? Esta é uma incógnita que me suscita outras perguntas que prefiro, por enquanto, magicar e guardar para mim, enquanto não tiver outros elementos”, conclui David Leite.

PN faz mega-operação

A Polícia Nacional, através do Comando Regional de São Vicente, realizou no dia 30 de Maio uma mega-operação policial na cidade do Mindelo, com acções de patrulhamento, abordagens na via pública e revistas a suspeitos em pontos considerados estratégicos.

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A operação, que teve como principal objectivo a prevenção geral da criminalidade, resultou em várias detenções e apreensões significativas.

Durante a intervenção, foram efectuadas cinco detenções em flagrante por posse de produto suspeito de ser estupefaciente, nomeadamente haxixe. Uma outra pessoa foi detida por posse ilegal de arma branca (faca), enquanto dois indivíduos foram detidos em flagrante por roubo com recurso à força física, tendo os bens subtraídos sido recuperados e devolvidos à vítima.

Ainda no decurso da operação, foi detido um indivíduo por condução sem habilitação legal.

A operação permitiu ainda a apreensão de diversos objectos e substâncias ilícitas, incluindo um baralho de cartas, um triturador, 4.640 escudos em dinheiro, duas facas, um gás lacrimogéneo, uma arma de fogo inutilizada (calibre 6,35 mm), 80 porções de haxixe, 11 porções de crack, seis porções de cannabis e 30 placas de haxixe.

No total, foram abordadas 236 pessoas na via pública, das quais 169 foram submetidas a revista. Cerca de 13 pessoas foram conduzidas às unidades policiais para efeitos de identificação, e 18 estabelecimentos comerciais foram alvo de acções de sensibilização.

No âmbito da fiscalização rodoviária, foram inspeccionados 291 veículos, incluindo 24 de aluguer, quatro do Estado, quatro com chapa de veículo não regularizado/registado definitivamente e dois com matrícula vermelha.

Ao todo, foram apreendidos 12 automóveis por falta de seguro, inspecção e outros documentos legais, bem como quatro ciclomotores e duas bicicletas.

Foram também realizados 16 testes de álcool, dos quais dois apresentaram resultado positivo. Um dos casos levou à detenção de um condutor com uma taxa de alcoolemia de 2,36 g/l, enquanto outro resultou na aplicação de uma coima no valor de 25.000 escudos, por condução sob o efeito do álcool com uma taxa de 1,18 g/l.

A operação mobilizou 82 agentes da Polícia Nacional pertencentes aos diversos ramos do Comando Regional de São Vicente, com o apoio de seis viaturas policiais e duas motos.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1227 de 4 de Junho de 2025.

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Autoria:André Amaral,7 jun 2025 7:30

Editado porSara Almeida  em  7 jun 2025 17:20

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