Mau tempo em São Vicente : E do céu veio a morte e a devastação

PorNuno Andrade Ferreira*,16 ago 2025 8:59

Mortos, desalojados e enormes prejuízos. São Vicente vive um dos momentos mais dramáticos da sua história.

Pelo menos oito pessoas perderam a vida em São Vicente, incluindo quatro crianças, na sequência das chuvas fortes e inundações que atingiram a ilha na madrugada desta segunda-feira. Doze pessoas ficaram desalojadas e estão temporariamente abrigadas no Centro de Estágios. Os prejuízos materiais estão por contabilizar, mas ninguém duvida que são significativos. Não há memória de coisa assim.

De acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica, entre a meia-noite e as 05h00 de dia 11, foram registados 192,3 milímetros de precipitação – o que, traduzido para linguagem comum, significa “muita, muita chuva”. A onda tropical deixou a ilha de luto e provocou um cenário de destruição que levará tempo a reverter e ainda mais a esquecer.

Além de infra-estruturas públicas comprometidas, muitos viram água e lama entrarem casa ou loja adentro. Dezenas de carros foram levados pela enxurrada e são agora sucata. Comerciantes fazem contas à vida, com perdas quase totais. O momento é de tristeza, luto e incredulidade. O resto virá depois.

Relatos

A comunidade de Alto Bomba registou uma vítima mortal na sequência do desabamento de uma habitação. Alícia Gomes, moradora no bairro, abrigou-se para salvar a própria vida. Assistiu ao pior.

“Ouvimos um barulho, mas não imaginávamos que a casa ia desabar e que iria acontecer o que aconteceu. Primeiro, disseram que era uma casa nas redondezas, mas depois o meu pai, que tinha vindo aqui para casa, viu a casa de banho e um quarto de dormir desabados. Desesperados, chamámos as pessoas. A minha tia chamou o Elton para irmos ver como estava o seu pai, porque estava no seu quarto que ficava em cima, fomos ver, mas já tinha sido abafado pelas pedras”, lembra.

Graciete Martins mora sozinha. Incapaz de fugir, viu a situação piorar sem nada conseguir fazer. Pediu ajuda, não teve resposta.

“Fiquei aqui no meio de água. Ainda por cima, fiz uma operação recentemente, chamei os bombeiros e a polícia, para ver se me podiam tirar daqui, mas não foi possível. Fui aguentando no meio da água”, recorda.

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Por toda a ilha, o cenário é desolador. Há estradas que desapareceram, arrastadas pela força das águas, outras estão praticamente intransitáveis. Lama e pedras compõem o cenário urbano, um pouco por toda a parte. Árvores caídas, postes tombados. O relvado sintético do Estádio Adérito Sena foi destruído. A emblemática praia da Lajinha, um dos centros da vida mindelense, está irreconhecível.

No maior leito de cheia da ilha, que desce a Av. 12 de Setembro e entra no mar via Rua de Praia, a Praça Estrela é atingida sempre que chove, mas nada que se compare ao que aconteceu na última segunda-feira. Nas paredes do supermercado RVM são visíveis as marcas da água a quase dois metros de altura. A perda é praticamente total.

Ana Marques, uma das responsáveis do estabelecimento, fala de como a tragédia apanhou todos de surpresa.

“Ninguém estava a prever, porque mesmo que digam que vai chover fortemente, para termos cuidados, as nossas protecções são tábuas, pedaços de metal e sacos de areia, que colocamos nas portas. Infelizmente, a loja [retalho] ficou totalmente destruída, a loja a grosso, o supermercado, o bar… A água ultrapassou 1,80m”, comenta com voz embargada.

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Do outro lado da estrada, a situação é semelhante. O mercado de verduras está destruído. O mercado informal, com muitos danos. Taculite Costa viu a sua barraca inundada. Perda total.

“Mercadoria toda nova, mas não serve, porque a lama não nos deixa tirar nada (...). Vamos precisar de alguma ajuda, porque já não vamos conseguir reerguer o negócio sem apoio. É fechar as barracas e ir sentar em casa”, declara, consternada.

Na loja de venda e reparação de equipamentos electrónicos de Manuel Dias a situação é semelhante.

“A água entrou cheia de lama, está tudo inundado, os equipamentos são caros, tens aqui telemóveis, tablets para reparação. É um prejuízo enorme. A minha empresa tem seguro, mas não sei se o seguro cobre este tipo de situações, esta despesa. Levantar o negócio é difícil (...). Começar de novo vai ser difícil”, antecipa.

Na Bela Vista, o Centro de Saúde Reprodutiva ficou parcialmente destruído. O espaço está cheio de lama. A enfermeira Lucilene Cardoso fala de “catástrofe”.

“Não conseguimos sequer entrar lá dentro. Os nossos materiais de trabalho ficaram todos danificados, assim como vacinas, materiais de saúde reprodutiva, pílulas, injecções. Os trabalhos que fazemos com as grávidas e com os pacientes que vêm fazer curativos, já não conseguimos realizar. Tudo ficou destruído”, desabafa.

De luto desde segunda-feira, a vila piscatória de Salamansa foi particularmente atingida pela tragédia. Três crianças morreram na sequência da derrocada de uma casa de tambor.

“A chuva começou por volta da meia-noite, a partir das 2h20 começou com vento forte, as pessoas começaram a levantar-se da cama, porque estava a entrar água por todos os lados, foi um momento de muita turbulência. Quando aconteceu o acidente, por volta das 3h da manhã, nem todos podiam dar um apoio, alguns é que foram. Por volta das 6h é que consegui ter noção da situação, embora já soubesse das mortes, não tínhamos luz, nem rede de telefone, estradas bloqueadas. Estávamos num beco sem saída”, lembra Auxílio Matias, da associação comunitária local.

Água, electricidade e estradas

Como consequência do temporal, e depois dos danos causados no centro de captação de João Ribeiro, a produção e distribuição de água na ilha de São Vicente está paralisada desde a madrugada de dia 11.

O administrador executivo da Electra, Antão Cruz, assegura que estão a ser feitos todos os esforços para a reposição da normalidade.

“Estamos impedidos de captar a água do mar para a produção destinada à ilha. Isso significa que não estamos a produzir e, com o passar das horas, esgotámos todo o stock disponível para distribuição. Neste momento, também não temos água a ser distribuída. Estamos a fazer todos os esforços para colocar a estação de captação novamente em funcionamento e, a partir daí, repor a produção”, indica.

Mesmo após o reinício da produção, fazer chegar água a toda a ilha levará tempo.

“Pedimos às pessoas que façam uso racional da água, poupando sempre que possível”, alerta.

No fornecimento da electricidade, depois dos cortes registados na madrugada de segunda-feira, a situação melhorou, mas não está normalizada, com cortes ocasionais e áreas que continuam sem energia eléctrica.

“Trabalhamos desde às três da madrugada [de dia 11], de forma intensa, para avaliar as condições de reposição do serviço, mas, infelizmente, as avarias são múltiplas, em quase todas as zonas. Os postos de transformação (PT) estão inundados de água e as avarias estão a ser reparadas, mas a reposição depende também de melhores condições atmosféricas e do escoamento da água dentro dos PT”, dizia ainda na segunda-feira o administrador executivo da EDEC, Osvaldino Silva.

Todas as estradas nacionais de São Vicente foram afectadas pela onda tropical, com a circulação a interrompida ou muito condicionada. A estimativa da Estradas de Cabo Verde (ECV) era de concluir a reabertura das vias esta terça-feira. António Tavares, da ECV, indica que os trabalhos começaram pela estrada que liga a cidade ao aeroporto e pela via Mindelo-Salamansa-Baía.

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“Estamos mobilizados na ilha, a implementar um plano de recuperação das principais vias. Tivemos a estrada do aeroporto que ficou afectada nas primeiras horas, estradas de Baía e Salamansa, que ficaram cortadas, e o acesso a Calhau, que também ficou cortado. Hoje [terça-feira], estamos a fazer um trabalho profundo na estrada de Calhau, para melhorar a ligação. Depois, haverá um trabalho mais profundo de intervenções, que iremos continuar a fazer”, sintetiza.

São Vicente e Santo Antão em calamidade

Horas depois de conhecida a escala da tragédia a norte, o Governo colocou São Vicente e Santo Antão (ver caixa) em “estado de calamidade”.

“O Governo já declarou estado de calamidade, para poder accionar o Fundo Nacional de Emergência, para fazer face aos estragos provocados nas estradas, ruas e outras infra-estruturas e acudir às pessoas em situação difícil, provocada pela intempérie”, lê-se em comunicado emitido na segunda-feira.

O Primeiro-Ministro deslocou-se a São Vicente na tarde de dia 11, para visitas a algumas das áreas mais atingidas. Terça-feira, anunciou a criação de um gabinete de crise e prometeu a mobilização de recursos para a reconstrução da ilha, incluindo junto de parceiros internacionais.

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Estradas cortadas em Santo Antão

Santo Antão também foi atingido pela onda tropical. Sem perdas humanas, a ilha registou prejuízos materiais.

No município de Porto Novo, a unidade de produção da Águas de Porto Novo foi particularmente atingida, ficando inoperacional. Algumas estradas ficaram intransitáveis, devido à queda de pedras.
“Tivemos duas estradas que ficaram interditadas: estrada Porto Novo-Janela e também estrada de Alto Mira”, destacou o vereador da Protecção Civil, Celso Medina.

Na Ribeira Grande também ocorreu queda de pedras. A situação é estável.

“Tivemos queda de pedra em várias localidades, por exemplo, na estrada Ponta de Sol -Ribeira Grande, mesmo no vale de Ribeira Grande. A estrada de penetração do vale de Caibros ficou danificada”, sintetiza o presidente da câmara local, Armindo Luz.

O edil lamenta a perda de culturas, por parte de alguns agricultores. 

com Fretson Rocha e Lourdes Fortes

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1237 de 13 de Agosto de 2025.

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira*,16 ago 2025 8:59

Editado porJorge Montezinho  em  16 ago 2025 20:19

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