Esquistossomose, também conhecida por bilharzíase urinária, é causada por um parasita que vive na água doce e parada, como explica o médico imagiologista Nuno Correia, que identificou vários casos enquanto realizava ecografias no Hospital Santa Rita Vieira, Santiago Norte.
“Eu fiz um vídeo sobre a doença porque fiz ecografias no Hospital Regional de Santiago Norte e apareceram muitas crianças com sintomas de infecção urinária: sangue na urina, dor, febre”, conta.
“Foram feitas análises à urina e confirmaram-se os casos de esquistossomose.”
Segundo o médico, a infecção ocorre quando a pele entra em contacto com água contaminada.
“É um verme que entra na pele das pessoas, especialmente quando tomam banho em água doce parada. O parasita vive nos caracóis, depois passa para a água e, em contacto com a pele, penetra e segue pelas veias até à bexiga, onde começa a libertar ovos. Quando a pessoa urina, os ovos voltam para a água e o ciclo continua”, explica.
Os sintomas iniciais podem parecer ligeiros, conforme Nuno Correia. “No início, pode haver comichão e vermelhidão no local de entrada do parasita. Mas o principal sinal de alarme é o sangue na urina, que costuma levar as pessoas ao hospital. Também pode haver dor na zona pélvica e febre”, alerta.
O diagnóstico, segundo o especialista, é simples: “Basta fazer um exame de urina e verificar se há ovos do parasita.”
Contudo, se não for tratada atempadamente, a doença pode deixar sequelas graves. “O parasita provoca alterações na parede da bexiga. Começa a formar calcificações, fibrose, e a bexiga deixa de funcionar normalmente. Isso leva a infecções urinárias recorrentes e, em casos mais graves, à obstrução urinária ou até ao cancro da bexiga”, avisa.
O tratamento existe e é eficaz, feito com o medicamento praziquantel. “É fundamental procurar ajuda médica logo que se notem os sintomas. Quando detectado um caso numa zona, é importante informar o centro de saúde para que se avalie a água do tanque e se evite a continuação do ciclo do parasita”, aconselha.
Nuno Correia alerta que os tanques de água das zonas do interior são os locais de maior risco, especialmente durante a estação das chuvas.
“Sempre que os tanques enchem, os caracóis surgem e, com eles, os parasitas. Quando não há água, não há casos. Por isso é que os surtos aparecem por períodos”, reforça.
Nesse sentido, Nuno Correia afirma ser importante que as mães fiquem atentas aos sintomas nas crianças.
“Se houver sangue na urina, dor ou febre, devem procurar o centro de saúde. Também é essencial evitar tomar banho em tanques onde já houve casos. E sim, qualquer pessoa pode ser infectada, não só crianças”, adverte.
O médico argumenta que a esquistossomose é uma doença evitável, mas que, muitas vezes, as pessoas não ligam por acharem que os sintomas vão desaparecer.
“Porém, se não for tratada, pode trazer problemas graves no futuro”, reforça.
Aumento de casos em São Miguel leva autoridades a reforçar prevenção nas escolas e nas comunidades
Foi na Ribeira de São Miguel que a doença foi diagnosticada pela primeira vez em Cabo Verde, em 2022. No primeiro trimestre deste ano, foram registados mais de 40 casos. As crianças continuam a ser o grupo mais afectado, sobretudo rapazes que tomam banho em tanques contaminados, conforme revela ao Expresso das Ilhas a delegada de Saúde de São Miguel, Antonieta Fonseca.
“Este ano tivemos um aumento de casos de esquistossomose desde o mês de Janeiro. De Janeiro a Março tivemos mais de 40 casos”, afirma.
Segundo explica, após o registo de casos, foi promovido um workshop em Calheta para informar a população e preparar intervenções mais abrangentes.
“Para que as pessoas estivessem mais atentas, para saberem a forma de fazer algum tipo de tratamento em massa, para fazer estudos de prevalência”, indica.
Posteriormente, foi organizada uma Feira de Saúde na Ribeira de São Miguel, a única zona do concelho onde foram confirmadas infecções.
“Fomos a São Miguel no dia da Feira e fizemos uma colheita de urina de todos os estudantes locais à procura de ovos. Corremos atrás, fomos várias vezes, mais do que um dia, à procura de amostras”, adianta a responsável.
Este esforço de diagnóstico, prossegue, contribuiu para a identificação de mais casos do que nos anos anteriores.
A delegada de Saúde esclarece que, apesar de a esquistossomose não ser um problema novo na zona, este ano a realização de rastreios massivos permitiu detectar mais infecções.
“Nos anos anteriores também tivemos casos, embora poucos. Mas este ano, como fizemos o exame de todas as crianças da escola local, encontrámos muitos casos positivos”, refere.
De acordo com Antonieta Fonseca, os casos incidem exclusivamente na localidade de São Miguel e, quando surgem em outras zonas do concelho, trata-se de pessoas que admitem ter tomado banho em tanques da referida localidade.
“Em São Miguel, às vezes, as pessoas, mesmo com sangue na urina, não procuram o médico”, lamenta.
O comportamento das crianças durante a época das chuvas é uma das principais causas de contágio, conforme Antonieta Fonseca. “Além do banho nos tanques, as crianças têm tendência a cavar o chão, fazer lagoa e tomar banho. E isso é outra forma de se contaminarem”, diz.
Antonieta Fonseca enfatiza que há a possibilidade de se infectar nas cachoeiras da ribeira de São Miguel, já que a água corre e os caracóis encontram-se nas ribeiras.
“Não existe esse risco nas cachoeiras de Principal, por exemplo. A única localidade onde existe é a Ribeira de São Miguel”, reitera.
No total, foram recolhidas mais de 100 amostras de crianças, sendo que a maioria dos casos positivos foi registada entre os rapazes. “Tivemos muito poucos casos do sexo feminino. Acredito que seja porque os rapazes tomam mais banho de tanque”, considera.
Depois da detecção dos casos, foram realizadas várias reuniões com a Câmara Municipal e representantes das comunidades locais para delinear estratégias de prevenção.
Apesar das resistências por parte de agricultores em permitir o acesso aos tanques, utilizados para irrigação, as acções de sensibilização continuam no terreno.
“Temos enfermeiros que se deslocam semanalmente para sensibilizar e atender as famílias, para falarem com as suas crianças e alertarem que não tomem banho de tanque”, assegura.
Crianças já foram tratadas com praziquantel, mas risco persiste
O tratamento das crianças infectadas já foi realizado com o medicamento praziquantel, mas a preocupação persiste.
“Se essas crianças voltarem a tomar banho nos tanques, voltam a infectar-se”, alerta Antonieta Fonseca.
Está ainda prevista a repetição dos exames no início do próximo ano lectivo para avaliar novamente a prevalência da doença.
A delegada de Saúde recorda ainda uma iniciativa anterior, realizada por uma antiga responsável da área da saúde, que envolveu a colocação de sapos nos tanques com o objectivo de reduzir os caracóis que transmitem a doença.
Com a chegada da época das chuvas, entretanto, apela aos pais para falarem com as crianças no sentido de não tomarem banho nos tanques.
“Também às pessoas que não são da comunidade e que visitam a Ribeira de São Miguel nessa altura, para não tomarem banho de tanque, porque todos os tanques estão contaminados”, pede.
População de Ribeira de São Miguel ciente
Fomos até à Ribeira de São Miguel. Rodeada por formações rochosas, a localidade transforma-se na época das chuvas. A água desce das encostas e enche tanques que servem para a agricultura. Mas há também água da nascente que, durante o ano, corre e a população usa para beber, cozinhar, tomar banho e outras tarefas domésticas.
Apesar da beleza natural e da importância destes recursos, a água desta localidade também pode transportar parasitas que provocam a esquistossomose.
Mário Mendes Furtado, 25 anos, conhece de perto os riscos. “Já não tomo banho de tanque. Fiquei com muito medo depois que apanhei a infecção. Comecei a sentir febre e depois passei a urinar sangue. Não fui ao hospital, preferi fazer um remédio caseiro com agrião e outras ervas. Tomava banho e bebia aqueles chás”, relata ao Expresso das Ilhas.
O jovem alerta que, no mês de Agosto, quando caírem as chuvas, “vai haver muitas infecções” e defende a desinfecção dos tanques.
Apesar da experiência, relata que continua a consumir a água da nascente que abastece a zona. “Todos nós aqui bebemos dessa água e há pessoas que vêm de Calheta, Pilão Cão e outras partes para a buscar”, conta.
Domingos Furtado, outro morador, confirma que, mesmo com avisos, as crianças continuam a correr perigo.
“Aqui há muitos tanques de água, mas agora estão secos. Quando enchem, as crianças tomam banho, mesmo sabendo dos riscos. Já ouvimos falar das infecções que acontecem com o banho nos tanques e nas águas paradas das ribeiras. Recomendamos que não o façam, mas, sempre que não há um adulto por perto, elas voltam a fazê-lo”, lamenta.
O morador lembra que só tomaram consciência da gravidade do problema após casos confirmados. “As crianças começaram a sentir sintomas, foram levadas ao hospital e recebemos o diagnóstico. As autoridades sanitárias vieram cá falar connosco e, desde então, tentamos impedir os nossos filhos. Os adultos já não tomam banho de tanque, são só as crianças.”
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Nos dias 13 e 14 de Março deste ano, realizou-se em São Miguel um workshop sobre esquistossomose, do qual saíram como principais recomendações o reforço da vigilância epidemiológica, vectorial e ambiental e a intensificação das acções de sensibilização junto das comunidades.
Foi proposto, entre outras recomendações, a curto prazo, criar um formulário de notificação e investigação específico de caso a caso; definir o conceito de caso suspeito e de caso confirmado; propor a ficha de notificação na plataforma DHIS2 para efeito de vigilância e definir uma estratégia nacional de intervenção para resposta.
A médio prazo, propôs-se o acompanhamento da incidência e prevalência; comunicar ao Gabinete de Assuntos Farmacêuticos sobre a disponibilização de medicamentos e insumos para diagnóstico e tratamento da doença; identificar e mapear a distribuição geográfica dos caracóis com importância para a saúde humana e animal; identificar e mapear as espécies de caracóis que são hospedeiros intermediários da esquistossomose hematúria (Schistosoma haematobium) — reservatórios de água, barragens, poços, tanques e córregos; identificar outros reservatórios.
Recomendou-se ainda a formação dos profissionais de saúde; a criação de directrizes de seguimento a nível ambulatório; a criação de critérios de internamento hospitalar; e a criação de critérios de encaminhamento para especialistas.
No workshop, sugeriu-se ainda a aquisição de materiais e consumíveis laboratoriais para efeitos de diagnóstico (reagentes, testes rápidos), bem como a realização de um estudo de prevalência de S. haematobium na população de São Miguel.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1237 de 13 de Agosto de 2025.