Em Ponta d’Água, Iolanda reconhece que a maioria dos vizinhos tem instalação clandestina de electricidade. Mas, por ser uma das poucas com a ligação legal, não acha justo ter de sofrer os mesmos cortes que a maioria.
A comida que prepara para uma semana não tem aguentado devido aos cortes. Aos finais de semana, quando normalmente descansa, tem-se levantado cada vez mais cedo para poder lavar a roupa.
“No último fim-de-semana acordei às 06h30 para lavar a roupa antes de ficar sem luz. Quando terminei já não dava para descansar porque tinha que aproveitar para fazer tudo o que não posso fazer às escuras”, lamenta.
A dona de casa conta que deixou de fazer alguns pratos porque o forno da sua casa é eléctrico e não quer arriscar-se a ficar com comida meio cozida. A roupa que vai usar no dia seguinte para ir trabalhar também tem sido escolhida a qualquer hora do dia anterior, para ser passada a ferro antes de ficar sem energia.
“À noite temos outro problema. A minha casa é quente e, sem ventoinhas, não conseguimos dormir. Temos ficado até altas horas no terraço para diminuir o calor e tenho-me atrasado para o trabalho por causa disso. Agora que as aulas iniciaram, os meus filhos não podem ficar no terraço até tarde por quererem fugir ao calor”, vocifera.
Constrangimentos comerciais
Muitos constrangimentos. Define assim a sua rotina nas últimas semanas, Admir Monteiro, dono do Minimercado Marisol na zona de Quartel Escola, devido aos cortes.
Conforme relata, houve uma baixa na produtividade dos seus colaboradores porque, como não conseguem lançar facturas no computador, têm de escrever todas as compras dos clientes à mão, já que é necessário ter esses dados para serem lançados posteriormente no sistema e manter o controlo de stock.
Isso leva mais tempo e aumenta a demora no atendimento. O comerciante afirma que não registou perdas em termos de produtos congelados, já que tem evitado fazer compras desses produtos em abundância.
Fazem reposição de stock todos os dias em vez de a cada três dias.
“Queijos e fiambres, por exemplo, temos comprado em pouquíssimas quantidades. Perna de galinha tenho comprado todos os dias. Não dá para comprar 10 caixas e guardar, porque pode estragar”, revela.
É uma nova estratégia que tem adoptado, mas que tem gerado mais custos em termos de deslocação.
Outra estratégia ou necessidade, segundo Admir Monteiro, é comprar um gerador. Entretanto, está à espera apenas que um electricista lhe diga que tipo deve comprar conforme o nível de consumo.
Enquanto isso, vai-se adaptando às circunstâncias, tendo por vezes de fechar mais cedo devido à insegurança.
No que se refere à clientela, relata que uns entendem e outros parecem ter esquecido que há falta de energia recorrente. Reclamam que os refrigerantes e a água estão quentes.
Daí que isso tem gerado diminuição no volume de vendas. Numa percentagem de 100%, o comerciante fala de 20% a menos de vendas.
Pede alternativas por parte da Electra, para evitar essa penúria que tem vivido. “Devem procurar alternativas, estamos a sentir-nos mal servidos. Porque num país de desenvolvimento médio, com mais de oito horas de corte de luz por dia, é complicado”, reforça.
Governo garante reforço da capacidade eléctrica para ultrapassar cortes de energia em Santiago
O ministro da Indústria, Comércio e Energia, Alexandre Monteiro, assegurou no passado domingo, 14, que o Governo está a apoiar a Electra na resolução das avarias que provocaram cortes de energia na ilha de Santiago e que já estão em curso medidas para reforçar a segurança do sistema eléctrico.
Em entrevista à TCV, o governante revelou que, de um total de seis grupos em funcionamento na central de Palmarejo, três estão operacionais e três encontram-se avariados, a aguardar peças já encomendadas no exterior.
Um dos grupos poderá ser recuperado rapidamente, caso as peças cheguem por via aérea, o que permitiria estabilizar a situação, conforme relatou.
Alexandre Monteiro frisou que, em circunstâncias normais, três grupos são suficientes para abastecer a ilha de Santiago na maior parte do ano, mas admitiu que a coincidência de três avarias em simultâneo não é comum e exige uma resposta excepcional.
“Estamos a preparar também soluções temporárias de aluguer de grupos móveis para reforçar a produção de energia”, adiantou.
Alexandre Monteiro reafirmou ainda que a aposta do país continua a ser a transição energética.
Perdas
Durante uma conferência de imprensa realizada na semana passada, o presidente do Conselho de Administração da EPEC, Luís Teixeira, apontou que, a nível nacional, a perda é de cerca de 21%. A ilha de Santiago regista 31% e a capital mais de 36%, grande parte causada pelo roubo de energia.
“Mas nós, neste momento, como disse na minha intervenção, temos três grupos a funcionar, mas temos uma demanda onde um terço é roubo de energia. Temos bairros com 80% de roubo de energia. Mas eu, nesse bairro, tenho 20% de clientes e não posso deixar de dar energia a esse bairro devido aos 80%”, justificou.
Instalações clandestinas
Ana (nome fictício) vive em Eugénio Lima, bairro da capital, e justifica que, assim como muitos, já tentou o caminho correcto, mas que a demora na resposta da empresa responsável pela ligação de energia eléctrica obrigou-a a fazer instalações clandestinas.
“É muita injúria, a gente cansa-se de correr atrás deles para nos fazer a ligação e acabamos mesmo por roubar”, fundamenta.
Quando ainda tinha apenas uma barraca, a empresa pediu-lhe a construção de pelo menos uma parede de blocos para que pudessem fazer a ligação na sua casa e na dos vizinhos. Contudo, conta, ninguém quis gastar dinheiro.
Ana admite que paga entre 500 e 700 escudos para fazerem, outra vez, a ligação clandestina, sempre que a EDEC desliga os fios instalados no chão.
Fazendo as contas de todas as vezes que teve de comprar fio ou pagar para a nova instalação, acredita que já tenha gasto mais do que se tivesse ligado legalmente.
Contudo, admite que houve uma época em que vivia bastante aflita com os fios expostos em frente à sua casa, com medo de que alguma criança que passasse por ali levasse um choque.
“Era uma ligação perigosa”, reconhece. Por isso, Ana resolveu fazer a instalação dos fios dentro dos tubos e assim ficar mais segura para a circulação de pessoas.
Nunca teve um incidente grave, apenas o seu cão de estimação, muito querido pelos filhos, que acabou por falecer depois de uma descarga eléctrica.
Ana garante que não pretende viver sempre na clandestinidade. Por isso, apela à EDEC que seja mais rápida e eficiente quando lhe é solicitada uma ligação, evitando demora na resposta à população.
Hoje, com a situação dos cortes, esta moradora, que é peixeira de profissão, sente-se lesada porque ninguém quer comprar peixe sem ter como o armazenar e este estraga-se.
Renováveis e futuro
A empresa canadiana MRV Energy, especialista em energias renováveis, instalou-se em Cabo Verde em Junho de 2024 com o objectivo de supervisionar a implementação de projectos solares e de armazenamento de energia.
Para o representante da empresa no arquipélago, Richard Voisin, as energias limpas podem ajudar a minimizar os cortes de electricidade que afectam, de forma recorrente, a cidade da Praia e outras localidades.
“Em ilhas como o Maio, as centrais térmicas são muito antigas e, quando a temperatura sobe, as máquinas não conseguem operar a plena potência. Isso obriga a reduzir a carga e, inevitavelmente, a cortar o fornecimento. Com a integração da energia solar, é possível compensar essas falhas e assegurar maior estabilidade”, explica.
A MRV Energy actua como consultor de engenharia responsável pelo controlo e supervisão das obras de instalação de sistemas solares e de sistemas de armazenamento de energia por bateria nas ilhas do Fogo, Santo Antão, São Nicolau, Brava e Maio, bem como na modernização da rede na Boa Vista.
“O próximo passo será criar uma empresa em Cabo Verde para monitorizar e operar sistemas solares, algo que prevemos para 2027 ou 2028”, acrescenta.
Apesar de sublinhar que as perdas na rede e os consumos clandestinos não se resolvem com renováveis, o representante da MRV aponta a modernização da infraestrutura como passo essencial.
“A única forma de limitar o roubo de electricidade seria por meio da modernização da rede eléctrica e do reforço dos sistemas de medição. Só assim se garante sustentabilidade no sector”, afirma.
Richard Voisin reconhece, no entanto, que há cada vez mais interesse por parte de instituições e particulares em alternativas.
“Várias entidades públicas e privadas já procuram instalar painéis solares e baterias para reduzir custos e evitar a dependência de geradores a gasóleo. Também temos recebido contactos de famílias interessadas, sobretudo para baixar a factura da electricidade”, revela.
Segundo o responsável, caso ainda não exista legislação que permita a venda de excedentes de produção à rede nacional, seria importante que fosse criada, para que o investimento doméstico em energias renováveis possa ganhar maior expressão em Cabo Verde.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1242 de 17 de Setembro de 2025.