As declarações foram feitas esta terça-feira, dia 23, no âmbito da auscultação realizada nos últimos dias aos partidos políticos, instituições religiosas, organizações da sociedade civil e antigas altas figuras do Estado, relativamente à conjuntura política.
O objectivo foi, segundo o Chefe de Estado, recolher percepções sobre a tensão política que se tem acumulado no país.
“Fi-lo movido pelas preocupações que partilho com os cabo-verdianos relativamente à tensão política que se vem acumulando no país. Como principal Ouvidor da República, escutei com empenho este conjunto representativo de vozes, procurando captar as percepções e inquietações do país face à actual conjuntura”, afirmou José Maria Neves, acrescentando que este processo de escuta irá prosseguir.
Democracia em funcionamento, mas insuficiente
José Maria Neves reconheceu que a democracia cabo-verdiana tem funcionado como espaço legítimo de divergência e competição, regulado por regras aceites por todos.
Sublinhou ainda que as eleições se tornaram um hábito enraizado, com resultados respeitados e alternâncias de poder realizadas de forma exemplar.
“É verdade que não enfrentamos uma crise político-institucional: as instituições mantêm-se funcionais e os mecanismos constitucionais têm sido respeitados. Contudo, essa normalidade não nos deve iludir nem dispensar da reflexão sobre a inclusividade do sistema e sobre a necessidade permanente de consolidar os alicerces da democracia”, declarou.
Apesar deste cenário positivo, advertiu que tal não basta. “Tudo isto é necessário, mas não é suficiente. É nossa obrigação contribuir para dissipar tensões latentes e para fortalecer os valores democráticos”, disse.
Sinais de erosão e discurso de ódio
O Chefe de Estado alertou para a existência de sinais de desgaste silencioso, que põem em causa a confiança dos cidadãos nas instituições e no futuro do país.
Para Neves, esse enfraquecimento está associado a práticas políticas assentes em discursos de ódio e na intensificação de clivagens.
“Há sinais de erosão silenciosa que minam a confiança dos cidadãos nas virtualidades da democracia e no futuro do país. Deploro o desserviço prestado por aqueles que, instigando ódios e beligerância, procuram esgarçar o delicado tecido da convivência democrática”, afirmou.
Considerou ainda que o país não pode seguir um caminho de polarização extrema. “A política não pode ser transformada numa arena de extermínio simbólico do adversário, numa lógica amigo/inimigo que aprofunda polarizações e multiplica violências discursivas. Esse caminho não nos conduz a bom porto”, avisou.
Falta de diálogo e bloqueios institucionais
Outro ponto sublinhado pelo Presidente prende-se com a dificuldade de entendimento entre órgãos de soberania, entre o poder central e o local, bem como entre situação e oposição.
Segundo o Chefe de Estado, a ausência de diálogo tem tido consequências visíveis na paralisia institucional.
“Uma das consequências mais graves da falta de diálogo é a caducidade generalizada dos mandatos de órgãos externos ao Parlamento – alguns há mais de um ciclo completo. Acresce a dificuldade de entendimento entre órgãos de soberania, entre o poder central e o local, entre situação e oposição”, alertou.
Nesse sentido, José Maria Neves defendeu que, com a aproximação de um novo ciclo eleitoral, é essencial apostar na serenidade política e na negociação. “Mais imperiosa se torna a serenidade, apenas possível através do diálogo e da negociação, evitando a excessiva judicialização da política”, frisou.
O PR considerou que as próximas eleições devem ser um momento de afirmação cívica e pedagógica, centrado na apresentação de propostas claras e construtivas.
“É fundamental que os actores políticos saibam transformar esse período num espaço de pedagogia democrática, privilegiando a serenidade e a clareza das opções apresentadas aos cidadãos”, declarou.
José Maria Neves insistiu também na importância de reforçar a independência e a imparcialidade da Administração Pública.
“É crucial investir de forma séria e consequente na despartidarização da Administração Pública. A máquina do Estado deve servir a Nação e os cidadãos, e não interesses partidários de circunstância. O mérito, a competência e o desempenho profissional devem sobrepor-se à lealdade política”, defendeu.
Na sua intervenção, o Chefe de Estado apontou igualmente a urgência de desbloquear reformas estruturantes em sectores como a saúde, a educação, os transportes e as relações externas.
Sociedade civil, juventude e diáspora
Além dos partidos e das instituições, o PR realçou o papel da sociedade civil, dos jovens e da diáspora na revitalização da democracia cabo-verdiana.
“A vitalidade da democracia não se esgota nos partidos e nas instituições: precisa da energia crítica dos jovens, da participação activa das organizações cívicas, da criatividade dos agentes culturais e do contributo único da diáspora”, disse.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1243 de 24 de Setembro de 2025.