“É uma hipótese perfeitamente possível”, disse Marcelo Rebelo de Sousa ao Expresso das Ilhas [ver entrevista], no final da cerimónia de comemoração do Dia de Portugal em Cabo Verde, a primeira vez que a data foi festejada num país africano, depois das celebrações no exterior, nos anos anteriores, em França, no Brasil e nos Estados Unidos da América.
O Dia de Portugal, este ano, teve uma comemoração que se esticou por mais de três mil quilómetros, começou em Portalegre – onde, pela primeira vez na história, um contingente militar estrangeiro (um pelotão cabo-verdiano) abriu a parada militar – e continuou na capital cabo-verdiana, na segunda-feira, e no Mindelo, na terça-feira.
A comitiva portuguesa – Presidente da República, Primeiro-Ministro, Ministro da Defesa, Ministro da Educação e deputados – chegou à Praia perto do final da tarde e às 19 horas entrava na Escola Portuguesa ao som de batucadeiras. Entre abraços, beijos e fotos, Marcelo Rebelo de Sousa ia dizendo aos jornalistas que todos se sentiam em casa. “Nem digo quantas vezes vim cá no último ano e fui encontrando o senhor Presidente de Cabo Verde. O senhor Primeiro-Ministro tem vindo imensas vezes. E o senhor Ministro da Educação está cá sempre”, dizia um bem-humorado Presidente da República portuguesa. Um tom que manteve durante o início do discurso oficial.
O repto de Jorge Carlos Fonseca
Presidente anfitrião do evento que assinalou o Dia Nacional de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o Chefe de Estado cabo-verdiano foi o primeiro a discursar e considerou o momento uma marca de um relacionamento entre dois países, entre dois Estados, mas sobretudo entre dois povos que é particular. “É especial. É como se partilhássemos os nossos percursos, os nossos valores e quiçá as nossas almas”.
No entanto, apesar de considerar “excelentes” as relações entre os dois países, uma relação que não é afectada por mudanças de governos e que se estende por uma cooperação “óptima e fácil”, em vertentes como a economia, a saúde, o ensino, ou a formação, o Presidente da República de Cabo Verde não deixou de realçar que há dois pontos que podem representar mais-valias para os cabo-verdianos.
“Primeiro, o acordo de mobilidade. Apostamos muito na mobilidade. A comunidade nunca será uma comunidade de povos e cidadãos se não houver a possibilidade de circulação sem necessidade de vistos. Portugal está tão apostado nesse acordo quanto nós e tão convicto quanto nós. Se Portugal está tão empenhado, se nós aqui abolimos os vistos para todos os cidadãos europeus, porque não antecipamos um acordo a nível bilateral entre Portugal e Cabo Verde? Sabemos que não é fácil, sabemos que a proposta portuguesa resulta de uma ginástica por causa da União Europeia, mas nestas coisas, com vontade politica e criatividade, poderemos chegar às soluções. A segunda questão, se Portugal estiver de acordo, com a colaboração do governo de São Tomé e Príncipe, poderemos a três encontrar uma solução razoável para a dolorosa e histórica situação de muitos cabo-verdianos que foram para São Tomé, nos anos 60 e 70, e estão numa situação difícil”.
E como a data é também de celebração das comunidades portuguesas, Jorge Carlos Fonseca deixou o final do seu discurso para os que vivem e trabalham em Cabo Verde, mas também aproveitou para convidar mais a virem para o arquipélago, “venham cá investir, venham ajudar-nos a edificar um pais mais livre mais competitivo, mais justo, mais igual. Vocês são o elemento que torna cada vez mais solidas as relações entre estes dois países ligados por um imenso mar. Creio que nunca como hoje tantos portugueses vivem e fazem turismo em Cabo Verde, o que quer dizer que devem sentir-se bem”, concluiu o Presidente da República cabo-verdiana.
António Costa e as diásporas que andam lado a lado
Onde há portugueses espalhados pelo mundo, geralmente também há cabo-verdianos, lembrou o Primeiro-Ministro português, para quem as comemorações em Cabo Verde têm um simbolismo particular. “Portugal e Cabo Verde são verdadeiramente próximos e irmãos. Os pontos de encontro são múltiplos e atribuem à nossa parceria uma dimensão única. São elo de ligação entre Europa e África e enriquecem-se com a cultura das diásporas”.
Num discurso mais direccionado para os portugueses que escolheram viver fora do país, Costa lembrou as mudanças legislativas, fiscais e eleitorais para facilitar a vida aos emigrantes. Hoje 5,7 milhões de portugueses e luso-descendentes vivem no estrangeiro (2,3 milhões com nacionalidade portuguesa).
Regressando às relações entre portugueses e cabo-verdianos, o Primeiro-Ministro de Portugal disse que as celebrações do 10 de Junho acontecem num momento auspicioso. Cabo Verde preside à CPLP e ambos os países querem criar um espaço de lusofonia. Os cabo-verdianos são a segunda maior comunidade em Portugal e participam em pleno no país, e os portugueses contribuem para a economia de Cabo Verde. Ambas as comunidades a beneficiarem dos laços partilhados, são diásporas que andam lado a lado”.
António Costa recordou ainda a importância que a Escola Portuguesa tem actualmente em Cabo Verde. “Em 2017 inaugurei a primeira fase da escola, antiga aspiração da comunidade. Regresso agora para assistir à concretização da promessa que fiz de fazer avançar gradualmente a sua expansão. Começou com 22 alunos e tem agora cerca de 400. O governo português já aprovou a construção da segunda, terceira e quarta fase, permitindo até 2020 ter capacidade para mil alunos”. No próximo ano lectivo haverá um crescimento gradual do número de turmas, de 16 para 22, e a escola terá 500 alunos.
Marcelo Rebelo de Sousa e o programa único
Nunca uma comemoração do Dia de Portugal foi tão intensa como a deste ano, confessou o Chefe de Estado português, “nunca tivemos um programa tão cheio como o de Cabo Verde. A sua imaginação [dirigindo-se a Jorge Carlos Fonseca] aliada à minha transformou os próximos dias num quebra-cabeças para o protocolo e a comunicação social”, disse Marcelo Rebelo de Sousa no início do discurso improvisado, de cerca de 20 minutos, na Praia.
Num discurso bem-disposto, mas sem fugir aos temas mais sérios, Marcelo Rebelo de Sousa respondeu ao desafio de Jorge Carlos Fonseca. “Falou na mobilidade. Sabe como Portugal acompanha Cabo Verde nessa preocupação comum. Falou do relacionamento com outros países e sabe que Portugal é sempre sensível nessa convergência. Essa ligação natural, que é muito resultado da comunidade portuguesa aqui mas também da comunidade cabo-verdiana em Portugal, faz a diferença. Temos em comum as diásporas, mas temos mais do que isso. Uma das mais-valias estratégicas de Cabo Verde, que é também uma das de Portugal, é sermos plataformas entre culturas, civilizações, oceanos e continentes. Muitos países têm diásporas, mas não há muitos com a nossa capacidade de fazer pontes entre realidades tao diversas. É por isso que nos entendemos”.
O Presidente da República português, que sabe bem o que é ter a família fora de Portugal [o filho e o neto são emigrantes actualmente] aproveitou para deixar uma mensagem mais emocionada dirigida Às diásporas tanto de Portugal como de Cabo Verde. “Antes de agradecer às comunidades portuguesas, queria agradecer à comunidade cabo-verdiana em Portugal pelo que tem feito há décadas. É uma comunidade exemplar, que vibra com a vida portuguesa. Mas compreenderão que fale de forma especial nas comunidades portuguesas em Cabo Verde. Têm sido excepcionais. É bom ouvir o presidente de Cabo Verde a dizê-lo. Estão a contribuir para o progresso de Cabo Verde e para o progresso da fraternidade Portugal/Cabo Verde, todos os dias”.
“Aqui os anfitriões são excepcionais, mas há comunidades que vivem em países em guerra, ou com crises económicas e financeiras, onde é difícil ultrapassar situações sociais. Por ventura, os problemas que mais nos afligem são aqueles que têm a ver com a sorte dos nossos compatriotas espalhados pelo mundo. A vossa felicidade aqui, não existe para muitos conterrâneos espalhados pelo mundo”, terminou Marcelo Rebelo de Sousa.
Quando tomou posse em 2016, Marcelo Rebelo de Sousa lançou um modelo inédito de comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, com as celebrações a começarem em território nacional e a alongarem-se a um país estrangeiro com comunidades emigrantes. Esta quarta-feira, o Presidente da República de Portugal viaja para a Costa do Marfim, para uma visita de Estado, depois de uma deslocação, de carácter privado, à ilha da Brava, com Jorge Carlos Fonseca.
“Portugal é uma sociedade inclusiva”
Foi uma conversa rápida, que o dia já ia longo. Esta segunda-feira à noite, depois dos discursos e durante o jantar, Marcelo Rebelo de Sousa falou uns minutos com o Expresso das Ilhas.
A mobilidade está sempre em cima da mesa, o presidente de Cabo Verde deu a ideia de avançar bilateralmente, acha que é possível?
É uma hipótese perfeitamente possível. A questão é esta: Cabo Verde tem uma ideia, que tem de passar na CPLP, que é estabelecer-se um quadro geral que abranja todos. Depois, dentro desse quadro geral, cada um avançar por acordo bilaterais até onde puderem. Agora, estamos a tentar evitar avançar já com protocolos bilaterais sem puxar pelos outros. Portanto, primeiro apresenta-se o quadro geral a todos, para ver se há uma onda. Logo a seguir, conforme a dimensão da onda, vamos até onde for possível, se é com dois, se é com um, se é com três, o que for possível.
Temos assistido em Portugal a discussões de historiadores sobre o racismo da sociedade portuguesa, houve também comportamentos menos próprios por parte das autoridades. Portugal é uma sociedade racista?
Portugal é uma sociedade inclusiva, um exemplo de comunidade inclusiva, e o que se passa é o seguinte: de quando em vez, o que é natural nos historiadores, há um debate sobre o passado. E como eu disse no discurso em Portalegre, o nosso passado, como o passado de todas as nações, tem coisas boas e más. E nós não podemos só olhar para uma parte ou para outra, assumimos tudo, tudo isso foi Portugal. Honramo-nos da parte melhor, mas reconhecemos a existência de tudo. Os historiadores têm uma perspectiva diferente, aos historiadores, naturalmente, cabe-lhes debater caso a caso, ponto a ponto, o que consideram melhor e pior e daí esse debate que vai sendo feito na sociedade portuguesa. Quanto à actualidade, aquilo que eu sinto na sociedade, olhando para os casos que foram falados, é uma reacção muito consensual no sentido de não tolerar xenofobias, não tolerar racismos, não tolerar intolerâncias, não tolerar exclusões, não tolerar marginalizações. É essa a sensação que eu tenho e isso é positivo.
No entanto, assistimos ao surgimento de movimentos políticos de pessoas que defendem um certo retrocesso social.
Mas até aí, olhando para os resultados daquilo que tem sido o debate e a manifestação da vontade dos portugueses, não há paralelo com o que se passa noutros países da Europa.
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 915 de 12 de Junho de 2019.