Num mundo contemporâneo onde há três grandes pólos decisórios: EUA, China e União Europeia, num momento de transição, onde o confronto entre os EUA e a China está para continuar, Durão Barroso defende a necessidade da Europa se reforçar, investindo em meios para a sua autonomia, desde a defesa até à tecnologia. E é importante para Cabo Verde, sublinha, conhecer esta agenda de uma União Europeia a chegar à maturidade.
O governo cabo-verdiano identificou como prioritários os investimentos nas áreas da ciência, tecnologia e inovação. É o digital o único caminho para um país sem matérias-primas?
É uma das saídas mais viáveis e mais importantes. Não uma plataforma digital em termos de mero adereço tecnológico, mas uma plataforma digital que ajude Cabo Verde a resolver alguns problemas que tem no seu desenvolvimento. Por exemplo, saúde e educação. Está visto, e hoje em dia há já alguns casos interessantes em África e na Europa, que um salto tecnológico na área digital pode apressar o percurso do desenvolvimento económico, social e cultural. Num país onde possa ainda haver falta de médicos, ou de cuidados de saúde, uma boa rede digital permite, até com a tele-medicina, acesso a esses mesmos cuidados. Um país que não tenha ainda localmente todos os recursos docentes para uma formação de nível superior, ou para uma formação profissional mais especializada, pode, através de redes digitais com universidades e instituições internacionais, ter acesso a um nível de competências que, à partida, seria mais difícil de assegurar endogenamente. É nesse sentido que eu acho que o desenvolvimento digital de Cabo Verde, que já tem actualmente algumas competências importantes nesse domínio, é uma via a trilhar. Digo isto, obviamente, não me procurando substituir às escolhas das autoridades cabo-verdianas, mas como observador empenhado e amigo, que me seja permitido esta opinião. É um caminho muito importante para o desenvolvimento e só assim poderemos ver Cabo Verde nos próximos anos a dar um salto tecnológico e de desenvolvimento que vai surpreender muitos. Aliás, hoje em dia, graças às tecnologias, é possível aos países avançarem muito mais rapidamente do que era antes.
Ao mesmo tempo permite a tão falada diversificação económica, principalmente a um país como Cabo Verde que tem a sua economia assente no turismo.
O turismo, a meu ver, é um grande investimento para Cabo Verde e só posso felicitar o país pelo progresso notável nessa área. Tenho vindo a Cabo Verde desde 1988, a última vez que estive cá foi em 2012 [como presidente da Comissão Europeia] e verifico que há um progresso notável, não apenas em quantidade, mas sobretudo em qualidade. Dito isto, é verdade que o turismo apresenta vulnerabilidades, nem quero pensar no que aconteceria se houvesse qualquer desastre em termos de segurança. Sei aliás que as autoridades cabo-verdianas estão muito atentas a isso, e devem estar porque aconteceu noutros países que tinham um desenvolvimento turístico assinalável e que perante incidentes de natureza securitária viram cair dramaticamente os resultados obtidos. Mais uma razão para que a área digital seja prioritária sem, obviamente, estar em competição com o turismo. Aliás, a área digital também pode ajudar muito no capítulo do turismo, por exemplo, encontrando ofertas específicas para Cabo Verde com aplicativos próprios que evitem um turismo meramente massificado e invista num tipo de turismo qualitativamente diferente. Penso, se me é permitido mais uma vez a opinião, que Cabo Verde deve explorar as suas especificidades. Cabo Verde é um milagre de originalidade. É um país único, que está no cruzamento entre África, a Europa e as Américas. Tem uma grande diáspora, tem uma cultura própria muito rica e muito original, no fundo, uma cultura crioula, baseada na miscigenação, e é isso que pode e está já a criar uma marca, como se viu recentemente com a, mais do que justa, atribuição do título de património da humanidade à morna. São essas características específicas que permitem diferenciar Cabo Verde no mercado turístico que está, por vezes, ultrassaturado. Há muitos países que podem oferecer praia e mar, mas praia e mar com cultura, com as características únicas da identidade cabo-verdiana, a hospitalidade, a maneira de ser, isso já não há muito. Também aqui a parte digital pode ajudar a diferenciar a oferta do turismo cabo-verdiano.
Na economia cabo-verdiana podemos enquadrar o crescimento verde, tão falado actualmente pela União Europeia?
A União Europeia declarou como primeiríssima oportunidade o chamado Green Deal, o pacto ecológico europeu. Cabo Verde tem também aqui problemas que podem ser virtuosidades, é um país que importa muita energia, não tem energias fósseis como recurso natural, mas tem dois grandes recursos que são o sol e o vento. Para a atracção de investimento directo estrangeiro há hoje muitas oportunidades neste sector, porque os países mais ricos, para poderem manter as emissões durante mais algum tempo, têm de ajudar os países que estão menos desenvolvidos do ponto de vista económico, mas vão fazê-lo se esses países derem garantias de sustentabilidade ambiental, nomeadamente no que diz respeito às alterações climáticas.
"Em termos de finanças públicas, Cabo Verde não terá no futuro previsível a margem que vai permitir fazer os grandes investimentos"
Falámos de economia verde, em Cabo Verde a aposta está também direccionada para a economia azul, mas estamos a falar de investimentos que não ficam baratos.
Pois não e esse é um problema essencial, daí eu ter referido a necessidade do investimento externo. Quando não há capital nacional suficiente, tem de se atrair investimento estrangeiro. E esse investimento é indispensável. Ainda há quem pense nisto em termos meramente ideológicos, eu acho que esse pensamento é algo totalmente ultrapassado. Desde que as autoridades do Estado garantam o quadro adequado, o investimento privado é um bem, cria riqueza, cria emprego e acho que é necessário atrair esse investimento privado, interno e externo, porque, obviamente, em termos de finanças públicas, Cabo Verde não terá no futuro previsível a margem que vai permitir fazer os grandes investimentos. Em algumas áreas de que falámos, principalmente a digital, não se pode esperar que surjam apenas por iniciativa do sector privado, porque o sector privado precisa de algumas infra-estruturas, nomeadamente as digitais. Aliás, há uma regra que cito sempre: os países para atingirem o nível de desenvolvimento mais avançado precisam essencialmente de três condições; Estado de direito, educação e infra-estruturas, e nas infra-estruturas incluo não só as físicas, como transporte e energia, mas também as de telecomunicações e digitais. Se Cabo Verde fizer isso, tem todas as condições para ser um caso espectacular de crescimento. Aliás, tem-se visto nos últimos anos um crescimento acima da média.
No entanto, há ainda um problema, o ambiente de negócios, o Doing Business, ainda não é o ideal.
Era bom continuar a investir nesse domínio. Aí não conheço em pormenor a realidade cabo-verdiana, mas o que me dizem é que há entraves de carácter burocrático, apesar das intenções, que a meu ver são sinceras, das autoridades. Cabo Verde tem vindo a subir nos rankings internacionais, mas há ainda algum trabalho a fazer. Por vezes são razões de cultura administrativa que levam o seu tempo.
Como acontece numa realidade que conhece melhor, e que seguramente enfrentou, quando foi Chefe do Governo em Portugal.
Portugal tem um sério problema – não sei como será em Cabo Verde, porque não conheço – que é um sistema de justiça, que é sério, mas é lento. O mundo dos negócios quer decisões rápidas. É uma das vantagens, por exemplo, que Londres tem por causa do sistema de Common Law, os nossos sistemas continentais europeus são mais lentos do que o sistema inglês ou americano, é uma questão que temos de melhorar.
A velocidade dos negócios é diferente da velocidade dos Estados, acha que, no futuro, terá de haver um encontro entre estas duas velocidades?
Sim, mas sempre respeitando as soberanias e os princípios democráticos. Não sou a favor de sistemas de desregulação, porque já descobrimos o que isso nos traz. A crise financeira de 2008 foi um exemplo dramático do erro que foi ter-se acreditado num sistema financeiro desregulado. Tem de haver regulação, o ponto é como fazê-la? Tem de haver regulamentação, mas tem de ser regulamentação inteligente, não pode ser regulamentação que crie dificuldades às pessoas, quer para os cidadãos quer para as empresas.
A um nível mais global. Começámos esta década com a crise financeira. Hoje temos economistas que ainda dizem que procurar significados nos mercados financeiros é como tentar encontrar padrões num mar agitado. Há quem tema uma nova crise. Há quem tema que não estejamos a ver os sinais de alarme. Como vê o futuro económico daqui para a frente?
Em relação à situação económica actual, temos um dos mais longos períodos em que há crescimento em algumas das maiores economias. Temos até uma situação sincronizada de crescimento nos grandes blocos, por isso muitos economistas estão a prever, há vários anos, uma recessão. Para mim, é inevitável que vamos ter uma crise, não sabemos bem é quando, porque a economia é feita de ciclos.
Politicamente, e no final desta década, a Europa está a passar por um momento que irá marcar o futuro: o Brexit será uma realidade. Quando presidia à Comissão Europeia, este desenlace era já esperado, ou acabou por ser uma surpresa?
Disse, na altura, que a decisão de convocar o referendo naquela altura era muito arriscada e poderia ser um dos maiores erros políticos, disse isso aliás em Inglaterra, em 2014 [o referendo foi em 2016]. Acho que foi um erro do ponto de vista britânico e do ponto de vista europeu, porque a União Europeia vai perder um dos seus elementos mais importantes. Dito isto, há que virar a página. Haverá oportunidades que esse Brexit oferece. Por exemplo? Na União Europeia, a Inglaterra era o país mais relutante quanto ao aprofundamento de uma identidade europeia de segurança e defesa, tendo desaparecido, e havendo a preocupação que há, em muitos países europeus, com uma Rússia mais assertiva e uns Estados Unidos da América mais imprevisíveis, acho que estão reunidas as condições para que a Europa dê mais atenção às questões de segurança e defesa. E há um sector que se vai desenvolver e esse sector tem muita ligação à tecnologia. A inteligência artificial é tipicamente o caso, porque é uma tecnologia que tem uso dual, serve para fins militares e para fins civis. Quem não dominar estas tecnologias arrisca-se a ficar numa situação de grande inferioridade.
"O que me preocupa hoje é o aparecimento destas sociedades cada vez mais fechadas"
Por falar em Estados Unidos, esta é também a década de Trump, mas também de Orbán, de Bolsonaro. O populismo veio para ficar ou é um fenómeno passageiro?
Compreendo a pergunta, mas não poria todos esses nomes no mesmo saco. É verdade que há um fenómeno que designamos por populista, que tem elementos que são por vezes de nacionalismo, outras vezes de proteccionismo, outras ainda de nativismo, ou seja, a preferência dada aos nacionais contra os estrangeiros, às vezes até de xenofobia, ou até de racismo, mas este fenómeno tem causas e formas muito diferenciadas e, a meu ver, explica-se também por motivos diferentes. Há contudo, talvez, um aspecto comum, é uma reacção à globalização. As pessoas quando sentem que há fenómenos que ultrapassam os seus próprios países têm naturalmente a tendência, que todos os seres vivos têm quando há ameaças externas, que é fecharem-se. Continuo a defender a abertura. Acredito que as economias e as sociedades abertas são mais prosperas e mais estáveis no longo prazo, além de serem aquelas que mais de adequam à minha concepção, se quisermos usar uma palavra pesada, filosófica em relação ao ser humano. O ser humano exprime-se melhor e mais livremente numa sociedade aberta que numa sociedade fechada. O que me preocupa hoje é o aparecimento destas sociedades cada vez mais fechadas, que tem a ver, talvez, com esta reacção à globalização e com dois factores essenciais, principalmente no mundo ocidental: as consequências da crise financeira, que agravaram muito as condições sociais de grande parte da população e a percepção da desigualdade, que é um fenómeno que cria problemas terríveis às nossas sociedades e a rejeição das chamadas elites económicas, políticas e outras; por outro lado, a imigração ilegal e os refugiados criaram tensões em alguns países que não estão habituados a receber esses influxos, que é agravado quando se trata de receber pessoas de etnias ou de religiões diferentes.
É uma tendência que irá continuar?
A meu ver, vamos continuar com estas tendências durante algum tempo. Já as vemos na Europa, nas Américas norte e sul, na Índia, na China, em África, na Turquia, portanto, não é um fenómeno exclusivamente europeu ou ocidental, é global, mas penso – e há quem diga que sou optimista – que as forças democráticas e de progresso, são mais fortes que as forças do retrocesso. Já tivemos casos em que ganharam claramente essas forças democráticas, por exemplo, em França, Macron ganhou à senhora Le Pen, e ganhou com um programa muito europeu, não se escondeu em discursos mais fáceis.
Então o que se passa?
O que se passa é que os nossos sistemas democráticos, normalmente, se considerarmos uma linha política da extrema esquerda, para a extrema direita, os extremos são mais duros e o centro é mais mole. E o que se passa é que hoje os extremos ganharam mais iniciativa. Na direita ganhou mais iniciativa a extrema direita, porque faz apelos mais simplistas e que podem mobilizar mais as pessoas, principalmente numa sociedade muito dominada pelo politicamente correcto. E a extrema esquerda está a ganhar à esquerda porque critica a falta de resposta que a esquerda, ou a social democracia, ou o socialismo democrático tradicional, não teve em relação à crise económica e à desigualdade.
Sendo assim, do que precisamos?
Do que precisamos é de ter um centro, esquerda, direita, ou centro-centro, que seja afirmativo, que não seja uma direita menos ou uma esquerda menos.
Usando as suas palavras, um centro que não seja mole.
Um centro que seja “durão” (risos), sem qualquer espécie de narcisismo. Um centro que seja duro no bom sentido da palavra. Que não seja complexado. Sou muito a favor de um centro reformista, enquanto político, e é isso que é preciso, políticos que tenham a coragem das suas convicções e que não se deixem vender. Quando dizem que as redes sociais são hoje em dia um argumento a favor dos extremos, principalmente da extrema direita, eu digo porque é que há-de-ser assim? Estamos a partir do princípio que as pessoas, por natureza, são racistas, chauvinistas, xenófobas? Não são, não aceito isso. Porque, caso contrário, mais vale desistir da democracia, se pensamos que a maioria das pessoas pode ser levada a essas posições extremas. O que tem de haver é uma mobilização do centro, teimar com argumentos racionais. É verdade que é mais difícil, um argumento racional é mais sofisticado, exige mais do que um tweet, mas continuo a pensar que é possível as forças da abertura, do progresso, ganharem sobre as forças do populismo e do nacionalismo.
Há o argumento que a democracia deve dar voz a todos, mas deve dar voz até aos que são contra a própria democracia?
Penso que sim, com certos limites. A apologia do racismo não pode ser tolerada, são valores humanos fundamentais. Ou nas redes sociais aparecer como fazer bombas para fins terroristas não é aceitável por razões mínimas de segurança das pessoas. O limite tem de ser o direito dos outros. Agora, que dentro do espectro democrático caiba a defesa de todas as situações, acho que sim, acho que a democracia é mais forte por isso. E acho que a democracia, no longo prazo, é mais estável. É um erro pensar que os regimes totalitários são mais estáveis, parecem mais estáveis, mas vimos o que se passou na União Soviética, ou em alguns países árabes, de um dia para o outro caíram sem perceberem bem porquê. Em geral, penso que as democracias devem aceitar o maior nível de variedade possível. É mais difícil? É! É mais complexo? É! Mas é mais recompensador.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 942 de 18 de Dezembro de 2019.