"É preciso aprimorar a democracia em Cabo Verde"

PorSara Almeida,15 jan 2021 16:54

Bartolomeu Varela
Bartolomeu Varela

O 13 de Janeiro de 1991 foi um marco histórico em Cabo Verde. E como em tudo, há um antes e um depois daquele dia “D” (D de democracia). No âmbito das comemorações da emblemática efeméride, o Expresso das Ilhas conversou com quatro personalidades que viveram a data sob diferentes perspectivas. Nesta entrevista, Bartolomeu Varela, então dirigente do PAICV, fala dos antecedentes, da data e dos 30 anos de democracia em Cabo Verde.

Fez parte das negociações do MpD e PAICV, que ditaram as datas das eleições...

Eu agora não faço parte de nenhuma área política.

Certo. Mas o que destacaria no processo que levou a estas primeiras eleições multipartidárias?

Teria que ser um processo. Tinha de se criar condições, sendo a primeira a Independência. Uma das premissas básicas para um salto qualitativo no processo de aprimoramento do sistema político cabo-verdiano é que havia, desde logo, que afastar o espectro da morte pela fome, garantindo às pessoas a sobrevivência. Lançar as bases para o desenvolvimento. É certo que se pode questionar se o momento de abertura do regime para o pluripartidarismo não tardou, eu pessoalmente posso até ter a mesma opinião, mas havia, pois, que criar todo um conjunto de condições.

Atente-se para o facto de que na década de 80 ainda não era evidente qual o tipo de regime político que era o melhor, o que mais correspondia às aspirações dos povos. Havia uma luta entre sistemas políticos do mundo dito socialista e também do campo capitalista. E o campo dito socialista progressista estava em franco desenvolvimento, na verdade, com os seus problemas, como os há também no mundo de hoje. Só para ver que havia todo um processo. Internamente, devo dizer que muito cedo o próprio partido no poder se questionou sobre a permanência do regime de partido único. Lembro-me, eu era muito jovem, de ter participado em 1982... 7 anos depois da Independência, antes de se completarem esses 7 anos, de uma reunião do Conselho Nacional em que o tema de discussão era exactamente a natureza do regime, e com o reconhecimento claro e inequívoco de que o sistema de partido único continha germes de antidemocracia e que era necessário, então, combater essas tendências antidemocráticas com várias medidas, nomeadamente a participação popular no exercício do poder. Houve, pois, várias etapas, houve ensaios vários...

E, entretanto, houve também mudanças no resto do mundo, em finais de 80?

Sim, houve uma mudança no contexto internacional. A perestroika soviética, a queda do muro de Berlim ... foram factos fracturantes do sistema socialista de realce no sistema mundial e esse factor contribuiu de facto para que internamente se criasse, digamos, as condições políticas, psicológicas e outras para a mudança de regime. Mas note-se que o próprio PAICV já tinha estado a dar sinais da abertura do regime, quer no plano económico, quer mesmo no plano político. Já havia projectos de diplomas legais para eleições municipais pluralistas, com o PAICV, mas admitindo também a possibilidade de haver outros grupos a participar. O processo da revisão constitucional na Assembleia Nacional ... havia um grupo de trabalho, do qual eu fazia parte, para tratar da revisão constitucional, no sentido de se abrir o regime...

O que viria a culminar na queda do artigo 4º?

Claramente nós tínhamos consensualizado que ou haveria queda do artigo 4º, ou então a sua alteração, dizendo que para além do PAICV que era a força política da sociedade então, era livre a criação de outras forças políticas. Era um dado relativamente consensual, se bem que o processo não tivesse avançado. Digo mais, o Congresso do Partido de 1986 poderia inscrever-se nessa perspectiva, de abertura do regime, mas não houve consenso no seio do próprio partido relativamente à mudança de regime. Só para ver, como referido, que houve todo um processo de criação de condições, e que o contexto foi favorável para que, então, sobretudo o grupo de pessoas do próprio partido no poder que defendia a abertura do regime tivesse condições para defender de forma mais activa essa opção.

É então um processo que começa bem antes do 19 de Fevereiro.

Eu diria que sim. O partido no poder na altura, o PAIGC, começou por ter vários problemas internos que chamaram a atenção da equipa inteligente de então para a necessidade de abertura. A saída dos chamados trotskista, com vários quadros de valor do partido fez com que o partido se tornasse mais monolítico e isso levou imediatamente à constatação da necessidade do partido se abrir a outros membros. Eu, por exemplo, entrei no partido. Era muito jovem ainda e entrei na direcção do partido, depois do grupo trotskista, porque se constatou a necessidade de desenvolver a abertura do próprio partido. E cito mais um exemplo, nas eleições legislativas de 1985, já depois da auscultação da população foram introduzidos alguns nomes de pessoas que não estavam, claramente, conotadas com o partido. Eu fui, na qualidade de 1º secretário do partido na Praia na altura, um dos principais dinamizadores desse processo de inclusão nas listas para as eleições legislativas, para o parlamento, dessas pessoas. O Carlos Veiga entrou nessa altura, o Carlos Veiga tio dele, o Tomé Varela, entre outros.

Pessoas que entraram no parlamento contribuindo para que este fosse menos monolítico e mais plural, com medidas muito interessantes. Houve várias decisões tomadas no parlamento que puseram em causa decisões tomadas pelo governo. Decretos-lei que não foram ratificados, petições que foram no sentido de dar razão aos peticionários levando a que o governo e outras estruturas públicas dessem satisfação a essas reivindicações. Enfim, só para dizer que houve, efetivamente, um processo. Em termos de crítica que falta fazer, eu direi que [a abertura] poderia ter sido mais cedo, eu gostaria que fosse mais cedo, mas sinceramente não havia condições para isso.

Eu pude auscultar militantes do partido, aqui na cidade da Praia, porque fui 1.º secretário do partido nessa cidade durante alguns anos, de 1985 ou 1986 a 1988 ou 1989, se não me engano, e ao auscultar os militantes sobre a possibilidade de abertura do partido ao pluripartidarismo as pessoas reagiam no sentido de que o pluripartidarismo seria uma confusão. Até porque no contexto internacional havia vários casos de sistemas políticos pluripartidários, mas que de democracia não tinham nada. O México - estou a falar do México como exemplo - tinha vários partidos, mas só um ficava no poder. Enfim, isto para dizer que o processo não é linear, mas Cabo Verde tinha de mudar. Tinha de mudar porque os quadros que se formaram lá fora já vinham com uma outra visão do regime.

Participou nas negociações com o MpD.

Tive muito gosto de participar com os colegas, os amigos do Movimento para a Democracia, em comissões paritárias em que discutimos as diversas questões do processo de transição democrática colocava com toda a abertura, com toda a lisura e transparência, cedendo lá onde era necessário. Por exemplo a reivindicação da despartidarização da administração pública, e da comunicação social, em particular, para que ela fosse isenta e não se posicionasse a favor deste ou daquele partido, para que houvesse uma livre expressão da pluralidade, e todas as questões, desde o calendário.

Houve uma cedência, estabelecendo-se legislativas anteriores às presidenciais.

Era tese do MpD. O PAICV pedir a primeiro as presidenciais. Porquê? Porque o regime tinha o seu Chefe de Estado que sendo eleito, então estaria na condução, no acompanhamento de todo esse processo. Não foi esse o consenso que prevaleceu ao longo das discussões. Nós, o lado do PAICV, não tínhamos a intenção de condicionar, de jogar à batota, de criar uma falsa perspectiva de segurança e, então isso foi aceite de forma natural, com descontentamentos etc, é claro, de alguma franja da direcção do partido, mas foi o consenso que se apurou. Nem tudo correu às mil maravilhas, houve o código de ética que foi aprovado pelas duas partes, mas que não foi cumprido. Podemos dizer que a responsabilidade, se calhar será de ambas as partes. Há quem atribua mais ao Movimento pela Democracia que alegadamente estava a utilizar procedimentos menos correctos como panfletos e outras coisas. Eu por mim entendia que não, que nessa matéria o PAICV também andou mal, porque se houvesse alguma questão que não era verídica, algum boato houvesse, alguma desinformação houvesse então era necessário contrariar isso, com luta política, democrática e o PAICV nem sempre correspondeu, porque pensando talvez que ia ganhar na mesma não foi à luta como devia.

Foi a tal atitude sobranceira, demasiada confiança na vitória?

Sim, alguma sobranceria. Vou-lhe dizer uma coisa: eu era presidente da a comissão de assuntos constitucionais e jurídicos da AN e o Carlos Veiga era o vice presidente. Recebemos na casa parlamentar uma delegação da Amnistia Internacional. Essa delegação já tinha feito contactos, etc, e houve, na nossa reunião, o entendimento de que não obstante sermos um país de partido único, ainda estamos a falar nos anos de 88, 89... por aí - a AI dizia que não obstante alguns problemas, excessos de actuação policial, que ainda continuam, por exemplo, Cabo Verde estava à vontade em matéria de direitos humanos. Foi o que saiu do encontro que tivemos com essa delegação. Isto mostra que o regime, apesar de várias fraquezas, de excessos aqui e acolá, de erros, sem dúvida, teve um desempenho geral bom. Cabo Verde teve um bom prestigio internacional, dos PALOP se calhar era o que mais tinha. Lembro-me também de uma vez ter tido uma conversa com o então presidente do PS [Partido Socialista português], Mário Soares, a quem eu tinha levado uma mensagem do secretário geral do PAICV, e em que ele me dizia: ‘vocês estão muito bem, têm uma excelente imagem internacional, só vos falta é passar para o regime pluripartidário’. Cabo Verde gozava pois de um prestígio internacional interessante e isso fazia com que os dirigentes acreditassem que o partido ia ganhar essas eleições e que a oposição nascente ainda não tinha como convencer a população. Daí que a palavra de ordem do PAICV para essas eleições - que foi uma coisa de que não gostei nada - era de nada de aventuras, mas um povo mais aventureiro que o nosso não há...

Houve todo um processo, e chegamos ao 13 de Janeiro, quando o povo se “aventurou”. Como recorda esse dia?

O 13 de Janeiro foi um dia memorável. Devo dizer que o nascente Movimento para a Democracia não aspirava a essa vitória tão esmagadora. Inicialmente, propunha obter 1/3 para retirar ao PAICV a possibilidade de uma revisão, uma reforma constitucional ao seu gosto, mas depois evoluiu. De contactos que eu tive com pessoas do MpD, devo dizer que só se convenceram de que iam ter maioria, de que iam ganhar as eleições nas últimas semanas. Na última semana sobretudo. Foi uma surpresa e acabou por ter a maioria de 2/3 que lhe permitiu a revisão constitucional como achou por bem.

Foi uma surpresa para o MpD. E também para o PAICV...

Foi uma surpresa para todos. Eu mesmo, embora me tivesse distanciado da posição da direcção do partido na condução política do partido nesse processo. Achei que não se dava a devida atenção às críticas da nascente oposição. Eu estava à frente do departamento da informação no conselho nacional, acabei por sair dessa função porque não concordava com a forma como lidaram com isso. Eu entendia que as críticas contundentes da oposição nascente deveriam receber respostas à altura, e a verdade é que o partido, confiante na sua força, nas suas realizações, nas realizações do regime, não se quis colocar a essa altura. Teve uma postura um bocado arrogante, entendeu que não deviam dar resposta a todas as críticas, porque seria colocar-se [a esse nível].

A obra feita [pelo PAICv] servia muitas vezes para as próprias populações dizerem: ‘vocês que fizeram o palácio tal, fizeram Cabnave ou os estaleiros navais... podiam também resolver o problema de chafariz aqui desta estrada e acolá’. Aquelas realizações que o regime não foi capaz de realizar em contraponto com grandes realizações, que serviram o país, contribuindo para os alicerçamento do desenvolvimento sustentável, que prossegue. Havia pequenas falhas que parecendo pequenas eram grandes na perspectiva das populações. E houve essa penalização. Houve factores que levaram a que as pessoas experimentassem uma alternativa. Até porque, e a mim disseram-me isso, “se foram vocês mesmos [do PAICV] que abriram o regime- porque Angola não fez, outros não o fizeram, é porque isto é bom’.

Mas foi um processo que correu bem, na estabilidade...

Acabou por ser uma transição pacífica.

Na altura da mudança houve alguns excessos na transição, com medidas tomadas em relação aos dirigentes no sentido de abandonarem, em prazos muito curto as casas do Estado que habitavam. Houve transferência de militantes de um sítio para outro que pareciam perseguições... houve alguns excessos, mas que cedo cederam lugar a uma postura, a um ambiente de maior estabilidade

E agora, 30 anos depois, que avaliação faz destas três décadas de democracia em Cabo Verde?

Estou moderadamente satisfeito. Não digo que isto seja o ideal, mas todos os que defendem a ideia de democracia madura e irreversível são confrontados quotidianamente com problemas, com situações, como o caso dos EUA, que nos dizem que a democracia é uma construção permanente. É algo sensível e então o que eu devo dizer é que houve avanços sim, extraordinários, no processo democrático. Acho que foi bom ter havido a mudança de regime em 1991. Note-se que eu na altura militante do partido, eu só vim a sair em 93 da militância político-partidária, mas havia necessidade de mostrar à sociedade que ela própria tinha recursos que lhe permitiam ter alternância, construir alternâncias. O país já se tinha desenvolvido em termos de consciência nacional, de preparação de quadros, etc, para que já pudesse haver alternância. E então o processo avançou. Mas é que precisamos aprimorar mais. Veja que em todo esse tempo ainda não realizamos um único referendo, quer nacional quer local, para auscultação das pessoas e esse é um sinal de que podemos explorar muito mais os instrumentos que a Constituição proporciona para o aprimoramento da democracia. A participação da cidadania, da sociedade civil, na vida política nacional, deve ser encorajada e os partidos políticos têm que o fazer. Acredito que se podia fazer muito mais, mas ... como se costuma dizer, cada pessoa tem o regime político que merece, portanto não se pode impor o regime à revelia da cultura política e do contexto social e político.

Então dá-lhe um “satisfaz”?

Eu acredito que o balanço é muito bom. Basta fazer a comparação com países que eram regimes pluralistas há muito mais tempo. Nós situamo-nos bem nos planos das liberdades por exemplo fundamentais, o nosso maior problema na constituição da democracia tem a ver com a participação que já referi da sociedade, que deve ser o mais ampla possível , mas sobretudo com a fruição dos benefícios do desenvolvimento porque é preciso aliar-se à democracia dita liberal, o acesso a bens, à chamada democracia económica. O nível de pobreza é muito elevado. Acho que há sinais de pobreza que já não aceitáveis no estado actual de desenvolvimento do país.

Mas, tudo isto para dizer que, não obstante as limitações e insuficiências, os sucessivos governos estiveram à altura. Não posso dizer que houve maus governos em Cabo Verde. Governos com limitações, sim, mas nós tivemos bons governos, em resumo, e uma sociedade civil que está a evoluir e que tem correspondido de uma forma satisfatória, fazendo escolhas globalmente assertivas e isso é o que importa. Temos é que dar o salto qualitativo. A democracia é uma construção permanente, é um dado de destaque.

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Autoria:Sara Almeida,15 jan 2021 16:54

Editado porAndre Amaral  em  14 out 2021 23:21

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