A vitória do homem e da sua circunstância

PorNuno Andrade Ferreira,23 out 2021 7:32

A comunicação falhada perante a comunicação eficaz, o peso do contexto e o que esperar da relação entre Várzea e Plateau. O resultado das presidenciais visto à lupa.

Uma “vitória pessoal” e uma prova da “notoriedade” de José Maria Neves, perante uma estratégia de comunicação que “falhou”, porque “não se ajustou” a Carlos Veiga. É desta forma que uma antropóloga, um jurista, uma empresária e um jornalista analisam os resultados da ida às urnas, a 17 de Outubro, que ditou a eleição de Neves à primeira volta, com 51.7% dos votos.

Para a antropóloga Celeste Fortes, o agora Presidente eleito provou que “é maior que o PAICV”. “É uma vitória pessoal. O PAICV pode tirar partido desta vitória, e bem, mas o capital político [é] de José Maria Neves”, acredita.

O jurista Belarmino Lucas recorda que a disputa pela presidência foi decidida entre duas das personalidades políticas mais relevantes das últimas décadas, com vantagem, ao nível da notoriedade, para o candidato que foi primeiro-ministro entre 2001 e 2016.

“Temos hoje a exercer o seu direito de voto muitos jovens, milhares de jovens, que não têm uma percepção muito viva daquilo que foi o período dos anos 90, o que significa que não têm uma ideia tão clara sobre Carlos Veiga, quanto têm sobre José Maria Neves, cujo consulado é posterior. Para muitos desses jovens, [Neves] é a referência que têm enquanto político”, destaca.

Esta diferença geracional terá justificado a estratégia de campanha de Veiga, rebaptizado ‘Kalu’, alicerçada na reconstrução da sua imagem e numa tentativa de aproximação ao eleitorado mais novo.

“Não foi de forma alguma inocente aquele recurso à figura do boneco ‘Kalu’ quase que um alter-ego do candidato”, relembra Belarmino Lucas.

Na mesma linha, a empresária Lúcia Cardoso viu uma campanha com muito marketing mas pouca comunicação.

“Não acho que a candidatura do Veiga tenha comunicado o candidato da melhor forma. Acho que podiam ter feito uma comunicação mais pessoal, mais centrada na serenidade dele, que foi o que ele mostrou na campanha e até no discurso da derrota. Não atacou ninguém nos debates, esteve tranquilo, falou da sua plataforma”, realça.

“O Presidente da República, de alguma forma, é como um ‘pai da nação’, que acalma, aconselha. Poderiam ter explorado mais esse lado, do que o ‘cool guy Kalu’”, acrescenta.

O jornalista e professor universitário João Almeida Medina repara que, já em 2011, quando Veiga se apresentou às legislativas, pelo MpD, o slogan, apesar de forte – “mesti muda” – estava desajustado da imagem que projectava, de político com vários anos de experiência governativa e não o rosto de uma mudança.

Em sentido contrário, a candidatura de Neves construiu uma mensagem que chegou às pessoas, virada para as emoções e para “uma união não declarada, mas simulada”, classifica.

Aqui e agora

Uma eleição faz-se de candidatos, propostas, mas também das circunstâncias. Celeste Fortes nota a erosão de parte da base de apoio do MpD.

“O governo e o partido que o suporta tiveram, nestes últimos meses, decisões que acabaram por nos deixar a todos mais preocupados com a situação do país. Num momento eleitoral, a possibilidade de aumento do IVA”, exemplifica.

Belarmino Lucas não tem dúvidas que, numa fase de agravamento do custo de vida, o envolvimento na campanha do partido no governo, e do próprio executivo, penalizou Veiga e favoreceu Neves.

“Há um acumular de factores, que derivam também da pandemia, com efeitos sociais e económicos que se têm agravado, e isso acabou por contaminar a performance de Carlos Veiga, devido à grande colagem ao governo”, julga.

Apesar de as eleições legislativas, que renovaram a confiança em Ulisses Correia e Silva e no MpD, terem acontecido há escassos meses, em Abril, o contexto parece ter mudado. A importância “do momento”, diz João Medina.

“Os políticos devem entender que as pessoas que vão votar votam em função, não só do candidato, como do momento e das possibilidades de desenho político que pode advir das eleições”, explica.

Coabitação

Com um governo de uma cor política e um Presidente do campo político oposto, o recado é claro, enfatiza Lúcia Cardoso.

“O eleitorado votou no sentido de haver um equilíbrio e também um travão. A simbologia de votar em José Maria Neves é dizer ‘calma, ainda podemos exercer algum controlo’”, admite.

Com a legislatura no início, a coabitação entre Várzea e Plateau será necessariamente longa. Belarmino Lucas antecipa um recurso mais frequente ao veto político, mas espera uma modulação do discurso para permitir compatibilizar duas visões de país.

“Se isso não acontecer, as instituições não poderão funcionar. Terá de haver mínimos olímpicos de colaboração. Agora, não sejamos ingénuos, José Maria Neves não será um Presidente tão acomodatício quanto Jorge Carlos Fonseca, até pelo carisma e pela experiência de governação. Tenderá a ser um Presidente mais interventivo, a questionar mais o governo”, antevê.

Por seu lado, João Almeida Medina aponta como grande desafio do Presidente eleito a capacidade de demonstrar “maturidade política e humana”.

“José Maria Neves não pode esconder-se do patamar de responsabilidade social que é atribuído ao Presidente da República. Que tenha um papel activo, para ajudar o governo a ultrapassar esta fase mais difícil, sem cair na tentação de partidarizar a sua estada”, conclui. 

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1038 de 20 de Outubro de 2021. 

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Autoria:Nuno Andrade Ferreira,23 out 2021 7:32

Editado porSara Almeida  em  26 jul 2022 23:29

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