Completou recentemente 4 décadas de uma bela e muito produtiva carreira musical. Em quarenta anos as coisas mudam bastante um pouco por todo o lado e o nosso país, não é excepção. Como via Cabo Verde quando começou a dar os primeiros passos como músico profissional e como vê hoje musicalmente estes nossos dez grãozinhos de terra?
A diferença essencial terá a ver com o ego. Éramos mais colectivistas. Eu, por exemplo, tive o meu primeiro contacto com a música, ainda à laia de brincadeira, descobrindo ritmos e sonoridades na percussão, na minha aldeia no Tarrafal de Santiago, com instrumentos dos outros. Mais tarde, por volta dos 10 anos de idade, fui morar para o quartel militar, onde me foram apresentados os mais diversos instrumentos harmónicos, por várias pessoas de variadas ilhas. Não só eu, como a maior parte das pessoas nessa época, aprendia e tocava recorrentemente nos instrumentos dos outros. Mesmo no grupo Abel Djassi, tanto no Tarrafal, como na Praia, nós tocávamos com os instrumentos de outros conjuntos, de outros músicos. Era normal na época. Lembro-me que quando os Tubarões, por exemplo, iam tocar no Tarrafal, havia uma espécie de regra de ouro de grande generosidade, de deixar que os miúdos tocassem com os instrumentos deles, durante os intervalos. Aqui na Praia, ensaiávamos na Achadinha nos instrumentos do Bulimundo. Havia outro espírito na época. Esse colectivismo era benéfico, pelo próprio partilhar e depurar de ideias e concepções musicais, que favoreciam a qualidade. Hoje, a música tornou-se mais isolada, mais rápida, até certo ponto egoista e muito mais mercantil. Evidentemente, toma-se cada vez menos tempo para se dedicar às letras, às melodias, aos campos harmónicos. O curioso é que como as coisas mudam, algumas delas com muita rapidez, aquelas que são feitas com mais ligeireza passam muito mais rápido. São mais efémeras. Mas a mudança é inevitável e o maior catalizador da mudança é a coerência. Nós vamos sempre mudando, mas não nos mudamos, não deixamos de ser nós mesmos. Sendo coerentes, adaptamo-nos, e aquilo que fazemos será sempre contemporâneo e moderno.
Há algum momento ou fase desta longa jornada musical que o tenha marcado mais em particular?
A minha descoberta do violão, aos 10 anos de idade, de forma absolutamente casual. Até então, nunca tinha tido um instrumento musical de verdade na minhas mãos. Na minha casa não havia, no meu bairro também não. Quero crer mesmo que em toda a aldeia houvesse apenas uma pessoa que tocava cavaquinho, algo que acabei até por referir na minha música Corri Xintidu, mas que na altura não me seduziu. Não como o violão, com o qual vivo desde sempre um caso de “amor à primeira vista”. Outro momento capital da minha jornada foi a entrada para o Grupo Abel Djassi, aqui na Praia. A meninada da época já era muito sofisticada; Carlos Modesto, Djinho Barbosa, Albertino Évora, Calú Lopes, Jorge Pimpa, o Totinho, que veio a entrar mais tarde, o próprio Chando Graciosa, Victor Bettencourt, Dedas, enfim, uma pequena constelação. Era uma música muito avançada para mim, que vinha do interior. De modo que tive que aprender rapidamente, com a ajuda dos meus amigos. Foi a primeira vez que tive a percepção que a música pode ser levada a sério. Já na época, havia quem vivesse exclusivamente da música. Aliás, o Chando, o Totinho e o Zé Mário entraram para o conjunto já como profissionais. A minha ida a Cuba foi também algo de muito especial. Foi lá que me enchi de música. Tive tudo aquilo que precisava para me desenvolver como músico. Em seguida, tive a sorte e a felicidade de ter feito parte dum colectivo chamado Simentera. Foi aí que atingi um maior estágio de desenvolvimento, como arranjador, como compositor e, sobretudo, como ser humano. Ganhei fortes noções de amizade, respeito e também de liderança. Acabei por liderar o grupo desde muito cedo, mesmo sendo um dos mais jovens, o que acarretou uma enorme responsabilidade. Foi um período intenso de formação pessoal, artística e profissional. Houve ainda uma época muito importante, que culmina justamente com o encontro com vários músicos do Mundo, que surpreendentemente conheciam o meu trabalho. Gente como Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Pablo Milanes, Harry Belafonte e, já mais tarde, o Caetano Veloso e o Djavan. Criei um ciclo interessante de amizade e respeito mútuo. Outro presente que a música me deu foi a minha grande amiga Cesária Évora, com quem tinha conversas transcendentais. Ela tinha uma percepção da música muito sui géneris e muito ligada à natureza humana. Ao fim e ao cabo, sou uma síntese de todos esses momentos. Assim tornei-me mais humilde, curioso, exigente. Tornei-me dono do meu tempo.
Mário Lúcio Sousa é um nome que ficará eternamente ligado à AME. Há quem o apelide carinhosamente de “o Pai da AME”. Trata-se de um forte legado para Cabo Verde, para a nossa produção musical e cultural e que marca de forma indelével a sua passagem pelo Governo. Que avaliação faz do seu trabalho enquanto Ministro da Cultura?
Eu estava de sentinela. Tinha o meu horário de posto, depois tinha de passar o posto a quem o viesse assumir. Na verdade, há coisas em que sinto que tenho alguma mão: as minhas composições, o Simentera, os meus livros, os meus filhos, etc. No tocante ao AME especificamente, e não digo isto por falsa modéstia, não considero que tenha nenhum mérito em particular. Estava lá para fazer o meu trabalho. Era uma missão pública, construir um mercado de música e situar Cabo Verde, em termos de gestão pública, no nível em que verdadeiramente está a sua cultura. O nosso país há muito que é conhecido musicalmente no mundo todo, mas não tínhamos até então uma montra, uma vitrine. Tive a sorte de ter bons colaboradores, tanto colegas de governo, como também gente muito válida na oposição da época, que foi muito importante para a criação do AME. Foi um momento importante para a cultura de Cabo Verde. Demos um salto conceitual e cultural muito grande. Criaram-se bases sólidas que têm alicerçado um desenvolvimento no melhor sentido possível. Há muito ainda por fazer, mas o que já se fez, foi bem feito. Em termos de gestão pública da cultura, creio que é mais importante perpetuar-se o trabalho, do que evidenciar quem o fez.
A candidatura da Morna a Património Imaterial da UNESCO veio dar uma proeminência e popularidade acrescidas ao nosso estilo musical mais tradicional, o que tem levado ao surgimento dum número maior de intérpretes. Gostaria que lançasse um olhar pessoal sobre o momento que vive a morna e os outros ritmos tradicionais, como a Coladeira, o Funaná e o Batuco, por exemplo.
A música cabo-verdiana é de um vigor que nos ultrapassa. É parte intrínseca daquilo que nós somos. Teve um papel e uma importância fulcrais na conformação da nossa identidade e vem evoluindo. Nunca teve crises, embora hajam aqueles que querem a todo o momento implantar crises, mas isso é por querermos que o Mundo seja como nós pensamos. O mundo evolui! Tudo o que é novo causa espanto e provoca algum caudal de rejeição. Hoje diz-se que o Cotchi pô não é música, como lá atrás alguma coisa também já não o era. Ravel, quando estreou o Bolero, foi vaiado convictamente, e hoje é reverenciado pela genialidade da sua criação. Quanto à Morna, hoje tem mais visibilidade por causa de todo o esforço feito para a sua promoção, mas a morna nunca esteve em risco. A questão é que ficamos nos centros urbanos e dizemos que falta alguma coisa na música, que alguns géneros já não se tocam, porque não os ouvimos. Só por isso. Viajando pelas ilhas, Brava, Fogo, Santo Antão, Boa Vista, São Nicolau, etc., é frequente verem-se jovens de violino, violão e cavaquinho em punho, tocando morna. A morna está bem viva e a sua candidatura a Património Imaterial da UNESCO não foi por ela estar em risco, mas para lhe dar a conhecer à humanidade, porque a Morna tem uma Universalidade Única, passe o paradoxo. Espelha a densidade da síntese histórica e idiossincrática do cabo-verdiano. É uma música que encontra parentesco de forma muito harmoniosa com outros géneros, como o Choro, no Brasil, o Danzón, em Cuba, o Fado, o Tango. As primeiras gravações da Morna são naturalmente já do Século XX, e a morna assumiu uma conformação após o surgimento do grande Eugénio Tavares, mas toda aquela languidez que lhe é peculiar remonta à partida dos marinheiros para a pesca da baleia, nas primeiras décadas do século XIX, por volta de 1820 a 1830.
Qual é o espaço ocupado hoje por Cabo Verde no espectro da World Music?
Concebendo esse termo como a descoberta de todas as músicas que não eram conhecidas na Europa até à década de 80, Cabo Verde tem um apreço especial, pois tem uma das mais ricas e complexas músicas dentro desse espectro. A nossa música é muito “honesta” e é essa honestidade que a valoriza. Não fazemos músicas porque os outros gostam. Fazemos porque nós gostamos e fazemos o que nós gostamos.
O Cotchi pó é um autêntico fenómeno sócio-musical, cuja génese e bases harmónicas são talvez mal compreendidas pelo grande público. Há correntes que defendem tratar-se duma vertente do Funaná que, um pouco à imagem do que aconteceu com Katchás nos Bulimundo, veio introduziu um capital considerável de inovação, dando alguma modernidade a sons tradicionais. Qual é a sua perspectiva?
O Cotchi pó trouxe para o acordeão diatónico, a tradicional gaita, a sonoridade característica dum estilo musical muito apreciado ao longo dos anos, no interior de Santiago, o Soukouss, ou mais popularmente a Deka. No meu tempo, digamos assim, nós riamo-nos de quem dançava aquela música de “dois acordes”. A transposição daquelas harmonias da guitarra para o acordeão, e alguma aceleração no tempo da música, caíram no agrado popular e o resultado está à vista. Uma das coisas mais positivas do Cotchi pó é a sua energia libertina e libertadora. As pessoas dançam durante horas a fio, vibram intensamente, com música local. É nosso! Por outro lado, vem trazendo também muita versatilidade aos intérpretes do acordeão, que vão se tornando mais virtuosos por causa da exigência dos temas. Não sei se muita gente terá reparado, mas o Cotchi pó, de repente, substituiu a fúria do Kuduro. No fundo, é uma reacção espontânea da juventude, com a sua energia própria, que quer dançar a nossa música, mas com um beat mais acelerado. Algo libertador, ao fim e ao cabo. No fundo, é importante que haja abertura mental para acomodar a evolução que confere esse tal vigor à nossa música. Querer censurar à partida é matar a experimentação.
O Funanight é um disco absolutamente inovador, bastante abrangente e embora tenha uma forte identidade cultural, tem conseguido “tocar” aos mais diversos segmentos de consumidores. Quanto de si, temos nesse trabalho?
Toda a minha vida está lá. Por duas razões: o meu percurso musical ao longo destes 40 anos tem um chamamento e a tal chama acesa que arde continuamente. O chamamento terá ocorrido por volta dos 6 ou 7 anos de idade, num dia como muitos outros em que fui buscar água, com uma lata à cabeça. A data altura, ouvi um som fino de gaita, tocada por um senhor sentado a uma porta. Era Tchota Suari. Nesse momento tive uma realização. Parei e pensei: Eu vivo nesse Mundo ali. Eu pertenço àquele Mundo, um Mundo onde não há materialidade. Um Mundo onde só há som, onde só há música. E aquele som de Funaná marcou-me. Aliás, há um segredo sobre mim, que poucos conhecerão; todas as minhas composições têm um ar de Funaná na sua génese, assim como as minhas linhas melódicas têm algo de mandinga na sua essência, derivado da minha paixão pelo corá. Um legado da minha ancestralidade, do qual não me consigo libertar. O Funaná faz parte da minha vida, daí que tenha decidido fazer um disco que me lembrasse esse dia em que a música “me chamou”. Foram quase 22 anos de profunda pesquisa, de conversas, de partilha e trocas de ideias, até ter todo o material que precisava. Um belo dia senti que estava pronto, que estava na hora. Foi exactamente no dia em que saí do Governo. De modo que foi uma espécie de catarse, um grito de libertação, depois de cinco anos contidos e comedidos. O momento e as circunstâncias ditaram a natureza do disco. Se eu não tivesse passado pelo Governo não teria tanta coisa para tirar para fora, tanta energia para libertar. Veja os meus discos anteriores; é tudo muito mais tranquilo, mais relaxado, mais numa linha de trova. É paz em forma de música. Para me libertar de cinco anos de exercício de poder, senti necessidade de dar um “grito”, tanto assim é que em estúdio tive de subir a tonalidade de todas as músicas. Foi tudo gravado em tons mais alto do que havia feito até então. É um disco com uma presença fortemente vincada do rock, mesclado com o funaná, e que tem uma exigência brutal em termos físicos. Termino os espectáculos completamente exausto, mas com vontade de continuar.
O que nos reserva o Futuro? Teremos o privilégio de o ver gravar regulamente? Já pensa no próximo trabalho?
Sim. A música é a minha profissão e há por aí muita coisa pelo caminho. Vou lançar brevemente uma compilação de músicas que marcaram a minha carreira. Eram para ser 40 músicas para assinalar os 40 anos de percurso, mas como não conseguia escolher, acabei pedindo ao Júlio Verne o número 80 e vamos dar a Volta ao Meu Percurso em 80 Músicas. Fazer compilações é muito complicado e embora tivesse tido cuidado com os critérios de escolha, várias composições conhecidas, que as pessoas pedem que cante nos espectáculos, acabaram por ficar de fora, porque tive que colocar muitas coisas inéditas.