O ano começou com os olhos postos num insólito (e grave) acontecimento nos EUA, a 6 de Janeiro. Na sequência da derrota de Donald Trump, e no dia em que o Congresso deveria ratificar a vitória de Joe Biden, um grupo de apoiantes do ex-presidente, incluindo integrantes do QAnon (movimento de extrema-direita), invadiu o Capitólio para forçar a anulação. O ataque à sede legislativa aconteceu após reiteradas acusações, sem fundamentação, do candidato vencido sobre uma alegada fraude eleitoral. Entre polícias e manifestantes, cinco pessoas perderam a vida. A investigação resultou em 658 acusados, com diferentes escalas de envolvimento no ataque.
Encalhado
O encalhamento no Canal do Suez de um “monstro” de 400 metros e 220 mil toneladas, carregado com mais de 20 mil contentores, teve consequências a nível mundial. A 23 de Março, o enorme navio “Ever Given” encalhou no canal, bloqueando uma das maiores rotas de tráfico marítimo do mundo – cerca de 12% do comércio mundial passa por aqui - e impedido o escoamento de todo o tipo de produtos, incluindo petróleo e gás natural. A certo momento, mais de 400 embarcações de diferentes tipos chegaram a acumular-se no Mar Vermelho e no Mar Mediterrâneo a aguardar a possibilidade de atravessar o canal.
Ao fim de seis dias, e tendo causado prejuízos, segundo a Bloomberg, de cerca de 9,6 mil milhões de dólares diários no tráfego marítimo, a passagem marítima foi desobstruída, mas os atrasos na cadeia de abastecimento fizeram-se sentir durante meses.
O navio, entretanto, retido em águas egípcias, foi devolvido a 7 de Julho à sua proprietária, a Evergreen, após assinatura de um acordo multimilionário, cujo valor não foi divulgado. Acredita-se, porém, que deverá ter sido à volta dos 550 milhões de dólares.
O incidente veio mostrar não só como o comércio está hoje muito mais globalizado e interdependente, mas também como a concentração de produtos importantes em mega-navios pode colocar as cadeias de distribuição em posição vulnerável, devido a eventos singulares.
Afeganistão
Uma das maiores derrotas do Ocidente e dos Direitos Humanos ocorreu em 2021, com o retorno dos Talibãs ao poder no Afeganistão. Olhando a cronologia, ao fim de 20 anos de presença militar no Afeganistão, a 14 de Abril Joe Biden estabeleceu que a (já prevista) retirada total das tropas americanas deveria ocorrer até 11 de Setembro. A 8 de Julho, em novo anúncio declarou que a retirada seria “concluída a 31 de Agosto”. As forças foram então sendo retiradas, e a 15 de Agosto, numa expansão fulgurante, já os Talibãs tomavam Cabul e assumiam o governo do país. O Presidente, Ashraf Ghani, saiu do país e o poder mudou de mãos, sem grande resistência ao fim de poucas horas. Nas imagens mais marcantes do ano está a de pessoas a cair de um avião das Forças Armadas Americanas, às rodas dos quais se agarraram para tentar deixar o país, logo após a tomada da capital. A 30 de Agosto, no último voo militar, sai do país o major-general Christopher Donahue, que é assim o último soldado americano a deixar o Afeganistão. Durante Agosto terão saído cerca de 200.000 pessoas entre muitas mais que tentavam desesperadamente abandonar o país. Entre as críticas e análises a este fracasso estão as de que os EUA não foram capazes de contruir uma Nação e de que o treino militar dados às forças armadas afegãs, compostas por 300.000 homens e equipamento moderno, não foi bom. A guerra do ocidente no Afeganistão foi, pois, perdida, e mergulhou o país numa crise humanitária profunda.
Rússia – Ucrânia
É mais uma crise antiga que se perpetua. Desta vez, o reforço da operação militar, com cerca de 100 mil russos colocados na fronteira entre a Rússia e Ucrânia levantou o temor de que Moscovo se preparava para invadir o país vizinho. Por trás desta mobilização está a exigência de Moscovo para que a NATO renuncie à adesão de à Kiev à organização, evitando assim uma aproximação da mesma às suas fronteiras. É exigida também a renúncia ao envio de armamento dos aliados ocidentais para a Ucrânia. A NATO, que não interveio durante a operação militar da Rússia na Geórgia em 2008, nem no decurso da anexação da península da Crimeia em 2014, rejeitou porém pedidos da Rússia. Moscovo conta, nas suas exigências, com o apoio da China e repudio da Europa e EUA.
Os líderes da União Europeia reagiram àquilo que consideram de “retórica agressiva”, avisando que qualquer investida terá “graves consequências e custos severos”. Os EUA também prometeram uma resposta “séria” a um ataque russo. Entretanto, foi decidido que a exigência russa será discutida em negociações com Washington, em Janeiro. A 25 de Dezembro, Moscovo, que tem vindo a negar qualquer intenção bélica, anunciou o fim de manobras militares em várias zonas da fronteira e afirma ter procedido à retirada de 10 mil soldados. O conflito entre Kiev e os separatistas pró-russos no Leste do país, que começou em 2014, já causou 13.000 mortos.
Migrações
O drama das migrações continuou em 2021, por todo o mundo, com destaque para a fronteira México-EUA, Calais, Polónia-Bielorrússia, Marrocos-Espanha …
Só este ano, foram interceptados mais de 1,7 milhões de migrantes de vários países que tentaram cruzar ilegalmente a fronteira entre o México e EUA. O número de famílias bateu recordes, e o de menores não acompanhados também ( 145 mil).
Em Setembro, vídeos de guardas fronteiriços a caçar e a atacar migrantes com o que parece ser um chicote chocaram o mundo. O Departamento de Segurança Interna repudiou o acto, e a patrulha de fronteira abriu uma investigação.
Ceuta
Entre os dias 17 e 18 de Maio, mais de 8.000 pessoas fizeram a travessia de Marrocos para Ceuta, enclave espanhol vizinho, perante a passividade das autoridades marroquinas. O motivo que desencadeou este acontecimento terá sido a presença do líder saharaui, Brahim Ghali, em Espanha, onde segundo os seus familiares, estaria internado devido à covid. Rabat não quer renunciar à sua soberania no Sahara Ocidental, onde a Frente Polisário exige um referendo de autodeterminação previsto pela ONU. Em retaliação a Espanha terá então permitido aos migrantes que atravessassem, a nado, ilegalmente de Marrocos para Ceuta.
Bielorrússia
Uma crise migratória de contornos bélicos, ou seja, em que pessoas são usadas como arma de guerra, decorre neste momento na fronteira entre a Bielorrússia e a Polónia.
Esta crise terá sido provocada pelo Presidente Lukashenko e remonta à sua reeleição em 2020. As eleições decorreram sob suspeição de fraude e as manifestações contra as mesmas foram reprimidas. Vários abusos foram cometidos pelo regime acentuando as más relações com a União Europeia, que impôs sanções ao país. Em resposta às sanções, Lukashenko criou uma nova rota migratória.
A Lituânia terá sido o primeiro país a sentir o fluxo, tendo registado um aumento de migrantes, que chegavam ao país vindos de países como a Síria em pacotes turísticos. Mas é na fronteira com a Polónia que a crise despoletou. Desde pelo menos Novembro que milhares de migrantes se concentram ali, encurralados e guardados pelas autoridades bielorrussas. A pressão estende-se também às fronteiras com a Lituânia e a Letónia. A União Europeia considera que a crise está a ser provocada por Lukashenko, sendo que alegadamente este lhes permite a entrada na Bielorrúsia, encaminhando-os depois para a fronteira. Uma prova da intencionalidade da crise é o número de voos do Médio Oriente para a capital da Bielorrussia, Minsk, que aumentou exponencialmente, e que são divulgados como uma entrada confortável na Europa.
COP26
Com o mundo já em estado de emergência climática, decorreu entre 1 e 12 de Novembro, em Glasgow a 26.ª conferência das partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. O acordo daí saído é consensualmente imperfeito e apesar de alguns avanços em alguns objectivos o pacto não vai conseguir sustentar a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius até ao final do século.
Tigray
O estado de Tigray passou todo o ano em confrontos entre as tropas militares etíopes e eritreias e a Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF). Não se sabe ao certo quantas vítimas foram mortas desde que o primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, lançou a ofensiva armada contra o governo da TPLF em Novembro de 2020, mas serão milhares e há inúmeros relatos de violação de direitos humanos e crimes de guerra. Mais de dois milhões de pessoas tiveram de abandonar as suas casas durante este ano. As notícias são escassas até porque as autoridades etíopes e eritreias têm vedado o acesso à região, mais as mais recentes dizem que os combatentes se estão a dirigir para a capital e que a Etiópia corre o risco de colapsar. O governo decretou o estado de emergência e os estrangeiros fugiram do país.
Crise energética e de abastecimento
Um conjunto combinado de factores, muitos dos quais relacionados a pandemia, está a causar várias crises que estão a ter já impacto no acesso a produtos e serviços. Os preços de praticamente tudo têm aumentado, em todo o mundo, e um dos factores é a velha máxima da economia: a oferta e a procura. Tem havido uma redução da oferta, seja de produtos e matérias primas, seja de fontes de energia. Com os confinamentos derivados da pandemia, 2020 foi um ano em que quase tudo parou e as cadeias de abastecimento foram quebradas. E 2021 foi o ano em que o consumo aumentou rapidamente. Assim, o ritmo de produção não consegue acompanhar o da procura. Entretanto, há questões logísticas - como o desvio no ano passado de contentores para outros fins, que também afectam a cadeia de abastecimento. Outros factores como as alterações climáticas (secas, etc) e a luta contra as mesmas (transição energética) estão também a intensificar as crises. Por exemplo, a crise energética na China tem muito que ver com a sua dependência do carvão, e exigência de que este poluente seja menos usado. Tal como na China, também na Europa, as políticas não acompanharam a transição “verde”, o que resulta numa carência energética também neste continente e, aliás, no resto do mundo, com impacto em todo o tipo de consumo. Até a crise da Rússia e Ucrânia tem impacto, uma vez que é improvável que o gaseduto da Rússia para a Alemanha seja aberto e ajude a repor stocks do gás natural que já escasseia na Europa…
Quatro países - EUA, China, Japão, e Alemanha - realizam mais de metade da produção económica mundial por produto interno bruto (PIB) em termos nominais, Só o PIB dos EUA é maior do que o PIB combinado de 170 países, e juntamente com a China, os dois países correspondem a 42% do PIB mundial, que em 2021 foi de 94 triliões de dólares
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1048 de 29 de Dezembro de 2021.