Abraão Vicente na comemoração dos trinta anos da agência de notícias estatal teria dito que a Inforpress tem sido a base de toda a produção jornalística da imprensa escrita. Teria acrescentado ainda que mais de 50% das notícias dos outros jornais privados são notícias da Inforpress. Um juízo de valor sobre o trabalho dos jornalistas ficou implícito quando afirmou que o aproveitamento das notícias da Inforpress são feitas “sem nenhum esforço de reescrita e muitas vezes sem a necessária citação da fonte”. Como seria de esperar, houve imediata reacção da associação dos jornalistas. A AJOC num comunicado disse que há “um total desconhecimento por parte da tutela das condições materiais de produção de informações nos OCS privados e do próprio funcionamento do campo mediático de Cabo Verde”.
Um primeiro aspecto que salta à vista neste imbróglio é o que pretende o ministro com essas declarações. Começou por dizer que o maior contributo que o Estado pode dar ao sector privado é uma agência de notícias para logo depois passar a impressão de estar a destratar os jornais privados por alegadamente estarem a usar o fornecido pela Inforpress em cerca de 50% da sua produção. Aparentemente contradiz-se. Afinal quer ou não canalizar as notícias da agência para os outros órgãos de comunicação social? O sucesso das agências avalia-se pelo número de órgãos que fazem uso da matéria disponibilizada. Não deriva da competição directa com eles. As agências comerciais beneficiam da publicidade no uso do material fornecido às vezes gratuitamente para construírem uma reputação e vender produção exclusiva. As agências estatais, em regra criadas para passar uma imagem favorável do país no exterior e veicular a perspectiva oficial dos acontecimentos, certamente que ficam felizes quando a imprensa repassa as suas notícias. Por ai vê-se a gratuitidade e o contra-senso das afirmações feitas tanto em relação aos jornalistas como aos jornais privados.
E a grande verdade é que o governo não tutela a comunicação social e muito menos exerce sobre ela e sobre os seus profissionais uma tutela de mérito. Se do ponto de vista orgânico e funcional tal pretensão é despropositada, do ponto de vista político é contraproducente. Tudo o que de essencial diz respeito à comunicação social está directamente na Constituição da República no capítulo dos direitos fundamentais, em particular nos artigos sobre liberdade de expressão, direito de informação e liberdade de imprensa. A legislação ordinária não os pode esvaziar e mesmo em sede de revisão constitucional não podem ser limitados. Pode-se acrescentá-los, como aconteceu na revisão de 2010 em que se criou uma autoridade para a comunicação social, eleita pelo parlamento por maioria qualificada, para regular o sector. Procurou-se com isso afastar ainda mais a possibilidade de interferência a coberto do papel que sempre tem o Estado de assegurar as garantias fundamentais para o exercício das liberdades, no caso específico, de promover o pluralismo, impedir a concentração dos órgãos e cuidar da independência dos jornalistas.
Quanto à intervenção directa do Estado na comunicação social, a Constituição estipula tão-somente que deve existir um serviço público de rádio e televisão. Exigências específicas são feitas em relação ao ambiente no serviço público. Insiste-se no pluralismo interno nas notícias, reportagens e entrevistas em concordância com o princípio segundo o qual o Estado não deve impor uma corrente filosófica, estética ou política aos cidadãos. Outrossim, garante-se a independência dos jornalistas perante os vários poderes e impõe-se que os directores dos órgãos do serviço público sejam nomeados com parecer prévio favorável da entidade reguladora. Com este enquadramento restrictivo na intervenção estatal e muito aberto em relação à iniciativa privada o que pode causar estranheza é o facto de após largos anos de regime democrático o sector da comunicação social continue a ser esmagadoramente dominado pelos órgãos públicos. Para isso certamente que conta a história pós-independência em que o regime de partido único praticamente acabou com os privados no sector, como aliás aconteceu noutros sectores. Mais difícil de compreender é porque a hegemonia do público manteve-se até hoje. Só pode ter sido resultado de opções feitas, sendo uma delas certamente o acesso privilegiado dos órgãos públicos ao diminuto mercado publicitário cabo-verdiano deixando em desvantagem o sector privado. Parece que agora algo similar se pretende numa suposta competição entre agência de notícias e jornais online privados, beneficiando a parte estatal de vantagem inicial de investimentos públicos num jogo claramente de cartas marcadas.
O ministro em vários momentos usou expressões como “informação de qualidade”, “qualidade jornalista”, “qualidade de jornalismo” e “imprensa privada de qualidade”. Talvez isso queira transmitir uma preocupação com os chamados “fake news” e exprimir a urgência de os combater. O problema é que o epíteto de “fake news” popularizado por Donald Trump tem sido atirado contra os jornais e outros médias por autocratas e candidatos a autocratas em reacção ao escrutínio apertado em que na democracia estão sujeitos. Se se quiser fazer diferente não é aconselhável que se tenha posicionamentos que podem configurar ataques à imprensa privada e aos jornalistas. Já bem-vindas serão acções concretas no sentido de aumentar o mercado para as publicações com a aquisição para as bibliotecas e outras estruturas públicas e no quadro de campanhas da luta contra a iliteracia funcional. Quanto à questão se há bons ou maus produtos jornalísticos é melhor deixar o cidadão e o consumidor decidir por si próprio em ambiente de liberdade e pluralismo.
Hoje é notório um discurso partilhado por certos políticos e com eco em alguns sectores da sociedade que tende a pôr em questão todas as instituições de mediação, entre as quais os médias, que até agora viabilizaram as democracias, promoveram o desenvolvimento científico e mantiveram os poderes político e económico sob escrutínio. Podem estar desiludidos com a situação actual, mas o facto é que a alternativa – que já se pode vislumbrar na ascensão de autocratas, no crescimento de sentimentos de ódio e ressentimento e de racismo e xenofobia e no tipo de violência espontânea que se assistiu na França nas últimas semanas – não é a mais aconselhável. Há quem pense que plataformas como as redes sociais e formas de democracia directa poderão substituir a democracia representativa e a imprensa livre e plural com o seu papel de mediadores na relação entre o estado e os cidadãos. A história passada e recente mostra que não é assim tão simples. A verdade que dificilmente se pode ter diálogo sem mediadores é particularmente relembrada nesta época natalícia. Celebra-se o nascimento de Jesus Cristo, o mediador enviado por Deus, para restabelecer o diálogo com os homens.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do expresso das ilhas nº 891 de 24 de Dezembro de 2018.