Chega de panaceias

PorHumberto Cardoso, Director,21 out 2019 6:28

O discurso do governo particularmente pela voz do Vice-primeiro-ministro e Ministro das Finanças tem sido dirigido para os jovens e para a necessidade de investimento na formação profissional.

Nesse sentido, segundo Olavo Correia, até agora 7 mil jovens foram beneficiados com formação e estágios profissionais, mas a meta a atingir é de 10 mil beneficiários. A proposta do Orçamento do Estado para o ano de 2020 prevê 358 mil contos para financiar a formação e 387 mil contos como comparticipação do Estado em estágios profissionais. E a ideia é de se ter um centro de formação profissional em todas as ilhas. Com essas medidas o governo reitera a sua aposta nos jovens e sugere que está na linha de cumprir com a promessa de campanha, várias outras vezes repetida, de criação de 45 mil postos de trabalho e de ter uma economia a crescer a uma média de 7% até ao fim da legislatura. O facto de até agora só se ter atingido um crescimento de 5,1% em 2018 (o World Economic Outlook de Outubro de 2017 põe o crescimento numa média de 5 % nos próximos anos) e de ser baixado o desemprego para 12,2% revela as dificuldades e a complexidade da situação socio económica e laboral que não se compadecem com panaceias, voluntarismos e apelos motivacionais.

Mesmo com as melhores das intenções são vários os obstáculos a um aproveitamento adequado de um investimento massivo na formação profissional. Na sua página oficial do Facebook, o VPM e Ministro das Finanças começa por reconhecê-los ao apelar que se valorize a formação profissional ao mesmo nível de outras carreiras, ocupações e profissões. Depois constata a tentação de no processo de contratação se descartar os formados nas escolas profissionais a favor de trabalhadores sem qualificação e recomenda a adopção de carteiras profissionais para que possam ter emprego digno. Por último propõe que as empresas que recebem renúncia fiscal do Estado sejam obrigados a recrutar jovens formados. Outros problemas certamente existirão designadamente no ajuste entre as ofertas de formação e a procura real de qualificações, em conseguir a sinergia certa entre o centro de formação e o ambiente empresarial que favoreça a qualidade e em ganhar dimensão crítica em termos de número e rotatividade de formandos que permita aos centros consolidar-se como instituição de formação. 

Sucesso na implementação de políticas depende muitas vezes da devida articulação com outras e do encadeamento no tempo certo que se fizer das medidas previstas. Razão para que isoladamente não sejam tomadas como panaceias que vão resolver todos os males. No caso da política de formação profissional, é evidente que só se terá grande absorção de mão-de-obra formada se houver boa evolução da exportação de bens e serviços e do turismo tendo em conta que a procura interna é limitada e não suficientemente diferenciada. Para se conseguir isso porém é fundamental que o país seja competitivo apresentando entre outros factores uma mão-de-obra especialmente preparada para ser atractiva para investidores que tenham na mira mercados externos. Também internamente constrangimentos como a informalidade da economia e a resistência das empresas em contractar profissionais terão que ser confrontados decisivamente sob pena de se ver todo o investimento público na formação a perder-se ou a ficar subaproveitado. Não se pode ter uma situação similar àquela descrita pelo presidente da associação dos taxistas da Praia à agência Inforpress de já estarem a circular um número de táxis clandestinos quase igual aos legalmente estabelecidos depois de todo o esforço feito por várias entidades para regularizar a situação. 

Corre-se o risco de frustrar as expectativas das pessoas quando se extrapola os efeitos de certas políticas ou o impacto de certas obras ao mesmo tempo que se simplifica a realidade e não se dá à sociedade a dimensão real dos problemas. Quantas vezes se anunciaram obras que seriam estruturantes e catalisadores do desenvolvimento em ilhas ou partes do território nacional para depois se constatar que afinal “a montanha pariu um rato”. Não é que os investimentos feitos em portos, aeroportos, estradas, barragens, habitação social, escolas, etc, não tenham trazido algum benefício. O problema é que os benefícios são muito menos do que os prometidos e esperados e os custos são muito maiores do que inicialmente assumidos porque não acompanhados de outras acções e políticas com as quais deveriam criar sinergia e potenciar a criação de valor. 

O resultado por exemplo é, para as autoridades, como reconciliar os surtos de insegurança que acontecem na cidade da Praia com os investimentos de milhões feitos no âmbito da cidade segura e também em garantir à polícia nacional os meios e os incentivos para serem efectivos nas suas funções. Ou congratular-se com o sucesso já conseguido da CV Airlines no hub do Sal ao mesmo tempo que declara o governo sem poder para baixar preços das passagens aéreas como se não tivesse políticas para o sector de transporte aéreo e dever de dar combate a práticas monopolistas. Ou ainda assistir-se ao investimento na educação na ordem dos 12 milhões de contos na proposta do OE e se ter a sensação generalizada de que está longe o retorno desejável em termos de qualidade, de preparação dos jovens para o futuro e de assegurar uma base em termos de competência linguística, educação humanística e base científica e técnica.

Em Cabo Verde sempre se alimentaram sonhos do tipo: se o país chovesse ter-se-ia fartura e todos seriam felizes. Por causa disso a mobilização da água torna-se panaceia e investe-se em sistemas de captação, mas descuram-se os passos seguintes para se ter uma agricultura que não seja de simples subsistência. No fim do dia a precariedade persiste, as populações continuam vulneráveis e paradoxalmente não se alimenta uma cultura de poupança de água como deixam saber as revelações vindas a público de perdas escandalosas de água nas redes públicas. Talvez por razões similares tende-se a acreditar que mesmo ficando tudo o resto igual se houvesse crédito o país estaria a fervilhar de actividade com o empreendedorismo ou que se pode criar cyber islands com investimentos dos outros em data centers sem que no domínios das Tecnologias de informação (TICs) se se verificasse um esforço sistemático de formação nas escolas e universidades durante anos seguidos, a exemplo de outros países. 

Não devia ser assim. O país sem recursos, com população diminuta e localização geográfica não muito vantajosa apesar dos devaneios em contrário devia encarar a problemática do desenvolvimento com mais humildade, responsabilidade e abertura para o diálogo. A política infelizmente não tem servido para isso. Bem pelo contrário, tem-se prestado ao camuflar dos problemas, à insistência em panaceias de toda a espécie e em levar as pessoas numa montanha russa de expectativas altas e frustrações profundas. Há que dar um basta a isso.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 933 de 16 de Outubro de 2019. 

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Autoria:Humberto Cardoso, Director,21 out 2019 6:28

Editado porNuno Andrade Ferreira  em  7 jul 2020 23:21

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