Contudo, o paradoxo deixa transparecer a noção bastante comum de que o acesso a água constitui um direito, mais exatamente um direito humano como aliás vem enunciado pela UNESCO[1]. Para as populações a água é muitas vezes conceituada como um bem de custo social zero ou quase, cujo desperdício ou degradação não acarreta consequências. Outrossim, em muitas das economias em desenvolvimento, especialmente em África, a questão da disponibilidade efetiva de água em quantidade suficiente para a produção, o êxito dos anos agrícolas ou o abeberamento do gado, é remetida à providência, descurando a antevisão necessária para lidar propriamente com os epifenómenos hidrológicos.
Daí que se coloca a questão de saber se as secas, ou mais precisamente as suas consequências pervasivas e por natureza persistentes, são fatalidades ou sintoma de falhas sociais sistémicas.
O Impacto das mudanças climáticas
No seus diálogos, Platão[2] assinala a referência à água pelo poeta lírico greco Pindar como “a melhor de todas as coisas”. Porém, o acesso a este liquido precioso vem sendo fortemente condicionado pelas mudanças climáticas que tem o efeito de tornar as chuvas cada vez mais erráticas e menos previsíveis.
Caso particular dos choques climáticos, os episódios de seca severa criam condições de choques económicos e sociais, que têm o potencial de degenerar em grandes perdas económicas e de criar instabilidade social. Por exemplo na zona da África austral a Namíbia perdeu em 2019 sessenta mil cabeças de gado num período de seis meses apenas[3], levando milhares de criadores de gado e suas famílias a pobreza absoluta. Por outro lado, vários conflitos têm surgido em zonas rurais de África (em particular nos países da zona saheliana) e da Índia nos últimos anos, tendo por pano de fundo a falta de água e a competição para o seu acesso.
Portanto é obvio dizer que a água faz parte dos bens estratégicos da sociedade e da economia, e importa que os efeitos da seca, que vêm cada vez mais acentuados pelas mudanças climáticas, sejam antecipados e acautelados. É verdade que dum ano para outro não é possível prever se haverá ou não ocorrência de seca, isto tem a ver com a realidade estocástica (ou seja, de imprevisibilidade interanual) do fenómeno; porém, sabe-se que mais cedo ou mais tarde a seca vai ocorrer, o que corresponde a sua realidade estatística (ou seja de certidão ao médio ou longo prazo).
Trata-se então duma questão de gestão de riscos relacionados à segurança hídrica duma economia ou duma sociedade, a semelhança da gestão de riscos que se pratica de forma rotineira em relação à cadeia de aprovisionamento dos bens de consumo ditos estratégicos, tal o trigo para a produção de pão. A natureza aleatória das chuvas é um dado que complica a gestão dos riscos de insegurança hídrica, mas o exemplo de alguns países dá para entender que se pode fazer bastante para prevenir ou amenizar os efeitos nefastos da seca.
As lições de Israel
Israel é conhecidamente um país que tem tido êxito em enfrentar os desafios causados pelos eventos de extrema escassez de água. Conforme vem salientado na literatura[4], este país soube fazer uso da ciência, da perícia técnica e do planeamento a longo prazo (num horizonte de 50 anos) para conseguir os seus sucessos.
Por um lado, Israel tem uma rede sofisticada de tanques e reservatórios que proporcionam água quando for necessário, os mesmos sendo alimentados com recurso a dessalinização e à água usada tratada e reciclada. Hoje em dia Israel recicla 80% das suas águas, em comparação a Espanha (2º no mundo) com somente 17% e os Estados Unidos com 5%. Israel faz altamente uso de água tratada e reciclada com técnicas melhoradas de tratamento e incentivos para os agricultores para passarem a usar água de esgoto tratada. A água dessalinizada abastece 50% das casas do país[5].
Por outro lado, Israel conseguiu forjar uma alta consciência pública do valor de cada gota de água, além de recorrer a várias técnicas de otimização das quantidades de água efetivamente usadas pelos consumidores. Por exemplo, fazem uso de lentos débitos nas redes de distribuição de água e são os inventores do sistema de rega gota a gota que reduz drasticamente as quantidades de água para a agricultura.
Com estes elementos de diversificação da oferta e de controle da demanda, a infraestrutura de conservação e abastecimento de água em Israel virou tão eficiente que pode virtualmente funcionar sem chuva[6].
Construindo um novo paradigma para uma melhor gestão dos riscos de seca
Pesquisadores salientaram recentemente que durante o período de 2014 a 2017 a Índia sofreu secas que afetaram mais de 500 milhões de pessoas em várias partes do subcontinente[7]. A conclusão dos estudos é que a Índia é a vítima das suas próprias políticas, que evoluem em torno de assistência humanitária depois das secas, em vez de por em prática, ex-ante, medidas de combate à seca ao longo prazo.
Em África subsariana, muitos países são sujeitos a secas recorrentes numa parte ou outra dos seus territórios, por exemplo os países do Sahel continental, a África austral incluindo a Namíbia, Moçambique ou Angola, ou os países insulares como Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe em que há indícios de prolongamento da época de gravana (estacão seca). As políticas e atividades de assistência técnica e humanitária ex-post que se costumam implementar têm o seu mérito e são incontornáveis; contudo, precisam de ser balanceadas de forma estratégica pela planificação de combate às secas ao médio e longo prazo, incluindo vertentes de construção de novos sistemas de captação, armazenamento e gestão de água, de diversificação da oferta e de controle da demanda, que constituem elementos chaves da solução.
Em suma, antevisão e preparação prática são imprescindíveis par combater os efeitos das secas e antecipar os fenómenos de ciclo longo tais as mudanças climáticas e a desertificação. As tecnologias, significativamente barateadas por países como Israel, e abordagens comprovadas de gestão deste recurso precioso, estão disponíveis para desconstruir o conceito de fatalidade. Daí que as secas, judiciosamente referidas como “o processo da miséria em câmara lenta[8]”, ou pelo menos as suas consequências, não serão forçosamente um destino.
*o autor escreve de acordo com as regras do AO90
Joseph Martial Ribeiro é cabo-verdiano, residente em Luanda, representante do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), Ph.D. em hidrologia (Ecole Polytechnique de Montreal, Canada, 1994); MBA (University of Cumbria, Reino Unido, 2017); Diplomado em ciências políticas (Universidade de Londres, Reino Unido, 2014); e Engenheiro Civil (Ecole Polytechnique de Thiès, Senegal, 1989). É autor de três livros em Gestão de projectos e de vários artigo de natureza científica no domínio da hidrologia). O artigo reflecte apenas as opiniões pessoais do autor.
[1]UNESCO. (2019). The United Nations World Water Development Report 2019: Leaving no one behind. Paris.
[2]Platão, Euthydemus, cit. The Lucid Manager (https://lucidmanager.org/price-of-water/)
[3]New Era - Namíbia. (2019, Setembro 27). Foresight needed to remedy recurrent drought. Retrieved from https://neweralive.na/posts/foresight-needed-to-r...
[4]Schwab, J. (2016, 12 02). Israel is the Unsung Hero of Water Management. Retrieved from huffpost.com: https://www.huffpost.com/entry/israel-is-the-unsu...
[5]Gazeta do Povo. (2019, 01 11). "Como Israel pode ajudar o "Nordeste a superar a seca. Retrieved from https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/como-israe...
[6]Ver Nota 4.
[7]Mahapatra, R., & Das, S. E. (2017). DROUGHT BUT WHY? How India can fight the scourge by abandoning drought relief. New Delhi: Centre for Science and Environment.
[8]Banco Mundial. (2017). Unchartered Waters: The new economics of water scarcity and variability. Washington DC